sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Ação, reflexão, romance e cinema - Carlos Heitor Cony


GOSTEI MUITO do texto de Cony a respeito de romances de ação e reflexão e as quebras de fronteiras entre eles e também suas adaptações para outras formas de arte.

Ele traduz muito bem os problemas inerentes ao tema.


CARLOS HEITOR CONY

Ação, reflexão, romance e cinema

José de Alencar foi um rio e Machado apenas uma bica d'água, como queria Glauber Rocha?


O GÊNERO romance tem duas vertentes básicas: a ação e a reflexão. Nada impede que o romance de ação contenha reflexão ("Guerra e Paz", "O Vermelho e o Negro", quase toda a obra de Zola, Balzac, Hemingway etc.). E também não impede que o romance de reflexão tenha ação ("Gulliver", "Montanha Mágica", quase todo o Machado de Assis, quase toda a ficção de Sartre, Camus etc.).

A transposição de um romance ou conto para o gênero visual só é compensadora em nível artístico quanto a ação. A reflexão contida numa obra literária é intraduzível para o visual que cria outro tipo de forma de reflexão, mas condicionada pela ação.

Amigos estrangeiros, quando sabem de minha admiração por Machado de Assis, perguntam por que ele não é devidamente traduzido em outras línguas. Alguns de seus principais romances têm versões em muitas línguas (inglês, francês, italiano, espanhol, alemão), mas são edições que raramente chegam ao grande público, ficando nos meios acadêmicos e universitários. Jorge Amado é traduzido até em servo-croata, tem edições de bolso e é um dos autores mais editados atualmente. Sem falar no recente Paulo Coelho, um caso à parte.

Respondo a esse tipo de pergunta acentuando a diferença fundamental entre as duas concepções de romance. Jorge segue a linha de José de Alencar, muita ação, ação que fez Glauber Rocha (um cineasta) dizer que Alencar era um rio caudaloso e Machado de Assis uma torneira.

Diante de um romance que prioriza reflexão, evidente que o estrangeiro preferirá os próprios autores. Ele terá curiosidade de conhecer os dramas da seca brasileira ou as trapalhadas de um turco em Ilhéus. Um francês, por exemplo, terá curiosidade de conhecer um Jubiabá, uma Gabriela. Mas, para buscar reflexão, irá buscá-la em Montaigne, Voltaire, Pascal, Sartre, Camus.

Se isso ocorre no campo editorial das traduções, na transposição do romance para um veículo visual, o romance de reflexão é descartável quando não solenemente desprezado. Não faz tanto tempo assim, Paulo Francis disse mais ou menos a mesma coisa a propósito de "Lolita", que ele considera "intraduzível" para o cinema, apesar de haver, agora, duas versões cinematográficas do romance de Nabokov (conheço a de Stanley Kubrick e, ao contrário do Francis, não a jogo inteiramente no lixo, apesar da monstruosidade da Lolita de Kubrick ser uma adolescente mais para mulher feita do que para menina.)

No meu caso pessoal, minhas tentativas no gênero são quase desprovidas de ação. A meu modo, com as minhas limitações, procuro refletir sobre a condição humana em vez de narrá-la. Uso de um mínimo de trama para expor minha visão de mundo. No passado, naquela que agora eu posso considerar "primeira fase", costumava ser procurado para vender meus textos a produtores e cineastas. Vendi dois deles ("Antes, o Verão" e "Matéria de Memória", que se transformou em "O Homem e sua Jaula"). Mas parei. Quando me procuravam eu sugeria escrever uma história original para eles. E assim fiz "Os Primeiros Momentos" (com Paulo Porto e Odete Lara), "Os Devassos" (com Jardel Filho e Darlene Glória), "Paranoia" (com Anselmo Duarte e Norma Bengell), "Vera Verão" (que virou "Intimidade", com Vera Fischer e Perry Salles, dirigida pelo inglês Michael Sarne).

Bons ou maus, eles tinham alguma trama, alguns conflitos. Mas nunca senti atração para escrever roteiros ou peças teatrais. Como não sou dono do destino, nem do meu e muito menos do destino dos outros, houve um tempo em que fiquei responsável pela teledramaturgia da Rede Manchete de Televisão.

Não aproveitei nenhum texto meu, preferi fazer sinopses de livros de outros autores, como Alberto Faria, Paulo Setúbal, Agripa Vasconcelos e outros, inclusive de uma ideia do Adolpho Bloch sobre uma gafieira da antiga Praça Onze ("Kananga do Japão").

Volto ao conceito da ação e da reflexão. José de Alencar foi mesmo um rio e Machado apenas uma bica d'água, como queria o Glauber Rocha? São duas abordagens distintas para duas coisas diferentes. Acho que a reflexão fica mais próxima da literatura. E a ação é a matéria prima do cinema, hoje ampliada pela fartura dos efeitos especiais.


Fonte: jornal FSP, 14/11/08

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