domingo, 22 de novembro de 2009

Refeição Cultural 39 - Dias de luto

Dias de luto – percepção da Depressão

Uberlândia, 16 de novembro de 2009, pós-enterro de minha querida tia Alice.

1. A fase é de luto. Eu estou me recordando do texto de Sigmund Freud sobre Luto e Melancolia. Pelo que andei cismando sobre as explicações do doutor, percebo que sou um melancólico - um ser com depressão - há uns trinta anos. A fase da pena no luto é normal e até necessária. É o momento de desligar-se do objeto libidinal externo. Lembrando-se que este objeto libidinal pode ser uma pessoa, um ideal, alguma coisa. Mas, o comportamento normal após o luto é a pessoa se apegar novamente a vida e ao viver.

2. Vi outro dia uma entrevista sobre a depressão, doença que acomete a milhões de pessoas no mundo, que falava de alguns sintomas característicos do mal. Tenho quase todos eles desde sempre. Muito rapidamente é possível lembrar-me de algumas crises que tive nestes trinta anos e ver claramente os sintomas presentes ali. Exponenciar problemas comuns como algo do fim do mundo, do seu mundo; perder o amor à própria vida constantemente e ter crises e explosões de ódio ou de tristeza profundos de tempos em tempos são alguns dos sintomas da depressão, presentes em minha pessoa. O fato é que eu sofro de depressão há três décadas.

3. Ao constatar que tenho depressão há tanto tempo e perceber que estou vivo e que sou um cidadão ativo e produtivo, vê-se que é possível driblar a doença e lidar com ela de várias formas. A maneira que sempre encontrei de lidar com minha depressão, involuntariamente por suposto, foi sempre estabelecer objetivos e ir em busca deles desde a adolescência. Na pobreza quis comprar uma bicicleta, um som, um tênis; depois quis arranjar um emprego em que sofresse menos que com o serviço braçal; quis ter uma moto; uma casa própria; e por aí vai. Por sorte e por esforço, cheguei aos quarenta anos com pai e mãe vivos; tenho um apa(e)rtamento de cooperativa; esposa (com um carro popular) e filho; tenho um bacharelado em Ciências Contábeis feito e outro em Letras eternamente inconcluso. Ah, tenho emprego fixo há dezessete anos em banco. Mas, estou muito infeliz, apesar de cumprir todas, todas!, as minhas obrigações sociais. É fato que não sou feliz.

4. Sobre a questão do Valer à Pena. “Tudo vale à pena, quando a alma não é pequena!”. Que bonito! Estou me perguntando o que vale à pena, pois quando olho para trás e vou procurando o valido à pena, fico cismando se valeu ou não à pena as opções feitas por mim nas encruzilhadas diárias que a vida nos apresenta. Como reconheço minha melancolia, devo ter claro que minha cisma é marcada, definida por isso também. Mas, estou olhando para trás e buscando compreensão até para achar maneiras de seguir para este amanhã indefinido de todos nós. O que vale à pena para mim no amanhã que sou responsável? O que vale à pena ainda?

5. Por exemplo, valeria à pena lutar por uma ocupação que rendesse um bom salário para poder cuidar da saúde e das necessidades dos meus queridos pais sexagenários? Eles não têm plano de saúde e não têm conseguido atendimento público e a qualquer hora morrem à míngua, como ocorreu com a minha tia Alice. Morreriam à míngua por eu não ter me preocupado em ganhar dinheiro e dar o conforto que eles precisam. Mas, veja o problema: se eu resolver passar em algum concurso, agora, para ganhar um bom salário, vou precisar de uns anos de preparação e pode ser que, quando eu passar, eles já tenham morrido. Que merda! Sempre fiz as opções erradas e nas horas erradas. Minha tia morreu em três meses com o mesmo câncer que tem há vinte anos o empresário e vicepresidente da república. E os dois casos, quando tratados no Brasil, têm os custos pagos pelo SUS, mas o José Alencar tem atendimento pago no começo e então usa o SUS. No caso dele, há vinte anos vale à pena combater e extirpar as partes com câncer. No caso da minha tia, uma varredora de rua, aposentada, da prefeitura de Uberlândia, não valia à pena tentar arrancar as partes com câncer. Foi fechar o abdome e deixar morrer em casa com tratamentos paliativos. O mundo é dividido assim. São assim as questões da referência na importância, no VALER À PENA.

6. Pensando a respeito de meu eterno e inconcluso Curso de Letras, novamente estou para abandonar, no momento de fechamento de semestre, as três matérias em que me matriculei. Somo o período que faltei mais o cansaço, mais o desânimo, mais a depressão e chego à conclusão que não vou nem fazer a prova de uma delas nem o trabalho final das outras duas. Não tem porquê fazê-lo. Eu não sei o suficiente sobre nenhuma delas para merecer passar. Eu não estou atrás de diploma – canudo – para enfeitar parede. Já tenho um e não uso para nada. Continuo sendo um não-técnico. Se um dia eu tivesse preparo para dar aula não seria o diploma de Bacharelado de Letras da USP que me habilitaria e sim um mestrado ou doutorado. A feitura de meu curso foi tão espaçada e sem sequência que, sinceramente, é como se eu não tivesse feito o Curso de Letras. Não sei gramática, não sei na ponta da língua sobre os conceitos básicos de nenhum movimento da literatura mundial e brasileira e não ajudaria ninguém a aprender mais do que se se buscasse no Google a informação necessária sobre o tema. Fracassei em meu projeto pensado no ano 2000 de sair do banco e ser professor. Não sei o suficiente para ser professor de nada. Só isso!

7. Passei a tarde na casa de minha avozinha, com meus dois tios e com minha mãezinha. Assim como minha mãe, que acordou às seis horas da manhã chorando muito por saudade do viver em companhia de minha tia falecida – cuidada com todo carinho por ela durante todo o período da doença-, minha avó também chora sempre que pára lembrando-se da filha que viveu com ela mais de sessenta anos. É tudo muito triste, tudo lembra nossa querida Alice!

8. A última cena que acompanhei, antes de pegar um táxi e ir para a rodoviária procurar passagem para voltar a São Paulo, foi um desabafo de minha mãe para os irmãos e vovó, do ocorrido dias antes da morte de minha tia (saída da casa de meus pais e volta para a casa de minha avó e tia). Foi humilhante assistir à minha mãe pedindo desculpas pelo fato de ter ocorrido uma desavença entre a família por estarem na casa de meus pais, cuidando de minha tia acamada, e meu pai andar preocupado com o aumento do consumo de água e energia. EXPLICO: como meus pais não têm condições mínimas de renda, vivem com um cadastro social para quase tudo. Para ter isenção da água, só podem consumir uma pequena quantidade no mês; para ter direito a algumas isenções na luz, só podem consumir certa quantidade de energia por mês; para ter direito ao Bolsa Família etc etc... Para mim, um filho de quarenta anos, ver àquela cena da minha mãe pedindo para a irmã não ficar chateada com meu pai, que não tinha culpa do ocorrido porque a situação de miséria deles é que levou à preocupação de perderem os benefícios sociais da miserabilidade, para mim foi uma dor profunda ver que eu não me preparei para cuidar de meus pais financeiramente. Me senti um fracassado total e egoísta por não ter pensado em ganhar dinheiro para viver nesta merda de sociedade capitalista. Chega!

9. Necrológio: Tia Alice, escrevi ontem no livrinho de lembranças em seu velório o quanto lhe amava e admirava. Ali, anotei que uma das coisas que sempre admirei na senhora foi ter e manter a curiosidade filosófica que a maioria dos jovens hoje já não possui. Admirável a senhora manter a curiosidade de saber sobre as coisas e de ter a humildade de sempre perguntar e ir atrás do conhecimento, mesmo em toda a sua simplicidade – simplicidade robusta em sabedoria. Outro dia a senhora estava me perguntando sobre o caso de Honduras, mesmo vivendo à custa de alimentação por sonda. Que fome de saber simples e bela! Como eram belas nossas tardes em família “filosofando sobre coisas do mundo”. Escrevi também que pessoas simples como a senhora é que nos incentivam de seguir lutando para mudar o mundo. Mas, confesso à senhora que, às vezes, eu me pego cansado e querendo partir para outra. Eu, por exemplo, represento uma categoria que ganha bem mais que a média da população brasileira e, muitas vezes, depois de toda a luta que organizamos, ainda nos ofendem. Quantas vezes já não ouvi de colegas, que ganham dez vezes o que ganho, me ofenderem e dizer que sou isso ou aquilo. Tia, sei que a senhora queria viver e viver de qualquer jeito e pensou nisso até anteontem. Pela manhã, queria estar curada para poder comer como todos da casa e, à tarde, seu corpo esfriou e a pressão caiu e o coração e pulmão lhe falharam. Eu só tenho que admirar pessoas apegadas à vida como a senhora. Tia Alice, obrigado por sua companhia nestes quarenta anos. Obrigado mesmo! Como escrevi ontem, a senhora viverá eternamente, ao menos enquanto eu viver, pois estará sempre em minha lembrança.

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