quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Sonhos: suas eras


De primeiro, sonhava meninices.
Sonhava mesmo! Dormindo.
Voava... voava... era o super-homem.
Às vezes, caía no vácuo.
Pesadelos...

De segundo, passei a sonhar acordado.
Sonhava amores. Sonhava posses.
Fui atrás... conquistei.
Às vezes...
Pesadelos...

Hoje, ainda sonho acordado.
Não sonho mais dormindo.
Não sonho mais amores.
Não sonho posses.

Sonho mudanças...
Realizações...
Sonho...
Sonhos...


Wmofox, 6.09.2002

domingo, 25 de setembro de 2011

A vida de David Gale - a questão da pena de morte


No dia 21 de setembro de 2011, os EUA assassinaram mais um homem (negro) no estado sulista da Geórgia: Troy Davis. Ele morreu com uma injeção letal aplicada pelo Estado. É um dos casos mais polêmicos dos últimos anos porque seu processo é eivado de senões e falsos testemunhos.
O texto brilhante de Eric Nepomuceno publicado na Carta Maior me deixou deprimido com o fato. Estava nos meus planos assistir a outra coisa neste fim de semana – vinha assistindo aos cinco filmes da série Planeta dos Macacos dos anos setenta. Mas busquei em minha estante o filme de Alan Parker sobre o tema pena de morte.
Quando vi o filme pela primeira vez, fiquei muito incomodado. Eu ainda estava repensando meu posicionamento a respeito do tema, pois até os anos noventa era favorável à pena de morte. Faltava-me muita cultura humanista, indispensável ao ser humano, e eu era muito ignorante.
Assisti ao filme desta vez com muito mais atenção. Como é importante assistir a bons filmes mais de uma vez! Além da direção de Alan Parker ser muito boa, as atuações de Kate Winslet e Kevin Spacey são brilhantes. Não conheço filme algum de Spacey que não seja de uma interpretação impecável.

Aula de filosofia do professor Gale
Anotei uma parte da exposição da aula do professor David Gale aos jovens universitários. Ele falava sobre os desejos e os objetivos em nossas vidas.
Explicava sobre a importância dos desejos serem quase inatingíveis, pois muitas vezes alcançamos os nossos sonhos e quando o objeto do desejo é conquistado já não nos interessa mais. Após mais algumas explicações, falou o seguinte sobre Lacan:
“A lição de Lacan é... viver de desejos não traz a felicidade. O verdadeiro significado do ser humano é a luta para viver por ideias e ideais... e não para medirmos a vida pelo que obtivemos em termos de desejos, mas pelos momentos de integridade, compaixão, racionalidade e até... auto-sacrifício. Porque no final, a única forma de medir o significado de nossas vidas é valorizando a vida dos outros”
Cara, essa cena da aula e este debate filosófico é a chave para tudo o que se passa no filme A vida de David Gale.
Não contarei o desfecho da história, pois assim como ocorre comigo ao não conhecer muitos filmes bons, várias pessoas podem ainda não terem visto esse excelente filme. Tem sido assim cada vez que busco um filme já antigo e inédito para mim que aborda um determinado tema. Fiquei muito impressionado quando assisti também sobre pena de morte o filme – Os últimos passos de um homem -, com Sean Penn e Susan Sarandon, de 1995.
Fiquei novamente cismando sobre várias coisas após o filme. Na primeira vez que o vi, busquei imediatamente em minha estante A apologia de Sócrates, texto que aborda o julgamento do filósofo grego Sócrates. Li as duas versões que tenho: a de Platão e a de Xenofonte.
Nesta vez, estou aqui pensando sobre ideias e ideais. Sobre fazer valer a pena a nossa existência, nem que seja para tornar a vida dos outros melhor.
A dura decisão das personagens desse filme nos ensina alguma coisa. Não tenho de forma alguma a vida que gostaria, não tenho. Mas procuro levar uma vida que ao menos tente melhorar o mundo em que vivemos e a vida das pessoas que nele habitam.
No final sei que somos só um fragmento ínfimo, mas pertencemos a um todo.


Vejam também o artigo de Eric Nepomuceno.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

UÉ, BRANQUEARAM O MACHADO DE ASSIS!



MarcFerrez_MachadodeAssis.jpg‎ (wikipedia)
  21/09/2011 (atualizado 25/3/12)

Caixa tira do ar propaganda que retrata Machado de Assis como branco

 
A Caixa Econômica Federal informou que suspendeu a veiculação de peça publicitária em que um ator branco interpretava o escritor Machado de Assis. Em nota, assinada pelo presidente do banco, Jorge Hereda, a Caixa "pede desculpas a toda a população e, em especial, aos movimentos ligados às causas raciais, por não ter caracterizado o escritor, que era afro-brasileiro, com a sua origem racial".

A propaganda fazia parte da campanha em comemoração aos 150 anos do banco. Na nota, "a Caixa reafirma que, nos seus 150 anos de existência, sempre buscou retratar, em suas peças publicitárias, toda a diversidade racial que caracteriza o nosso país. Esta política pode ser reconhecida em muitas das ações de comunicação, algumas realizadas em parceria e com o apoio dos movimentos sociais e da Secretaria de Política e Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do Governo Federal".

"A Caixa nasceu com a missão de ser o banco de todos, e jamais fez distinção entre pobres, ricos, brancos, negros, índios, homens, mulheres, jovens, idosos ou qualquer outra diferença social ou racial", acrescentou.

No último dia 19, a Seppir também divulgou nota sobre a campanha da Caixa, lamentando que Machado de Assis tenha sido representado por ator branco. "Uma solução publicitária de todo inadequada por contribuir para a invisibilização dos afro-brasileiros, distorcendo evidências pessoais e coletivas relevantes para a compreensão da personalidade literária de Machado de Assis, de sua obra e seu contexto histórico", diz a secretaria.

Segundo a Seppir, o episódio ocorreu no momento em que a Seppir e a Caixa se uniram para elaborar "um termo de cooperação que envolve, entre outros, aspectos relacionados à representação de pessoas negras nas ações de comunicação".

A Seppir informou que recebeu por meio da Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial denúncia sobre a peça publicitária. Foram, então, encaminhados pedidos de providências para a presidência e ouvidoria da Caixa, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e o Ministério Público Federal.

Nessa nota, a Seppir pediu a correção da produção do vídeo, como forma de a Caixa reconhecer "o equívoco" e considerar "o diálogo que vem mantendo com a sociedade ao longo da sua trajetória institucional".

Fonte: Agência Brasil
VEJA ABAIXO O VÍDEO DO BRUXO "BRANCO" DO COSME VELHO:


COMENTÁRIO POSTERIOR:

Após o ridículo do episódio, a Caixa corrigiu a mancada de sua agência de publicidade de mercado - onde negro não tem vez (ou alguém já viu negros em propagandas de revistas como Veja, Tam, Gol etc?).

NOVO VÍDEO DO BRUXO DO COSME VELHO:


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Refeição Cultural 77 - Sindicalismo

COMPROMISSO DE BUSCAR O HUMANISMO E DE SEGUIR OS PRINCÍPIOS DA CUT

Atuo no movimento sindical como secretário de formação e como dirigente do Banco do Brasil. Tenho um mandato dos trabalhadores no Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região. Também estou na executiva da Confederação eleito no congresso da mesma, mas sabendo claramente que se trata de uma indicação política à vaga, haja vista que as estruturas verticais no movimento sindical são representações políticas dos sindicatos, estes sim os detentores dos direitos conferidos pelos trabalhadores em suas eleições. Ninguém representa a si mesmo na política.

Por que estou digerindo isto como refeição cultural? Não sei ao certo, mas o certo é que se aprende muito culturalmente sendo um sindicalista, ou seja, um representante político de pessoas. Também cismo aqui sobre o papel de um representante dos trabalhadores porque cultura é todo o acúmulo que um determinado grupamento social constroi a cada dia. Somos partícipes de cultura, todos nós. Não existe produtores e consumidores de cultura.

Desde que entrei no movimento em 2002, convidado para compor a chapa eleita naquele ano, aprendi exponencialmente muito sobre política, movimento sindical e social, humanismo, de como funciona a hipocrisia nas relações sociais, questões de gênero, princípios de grupalidade, solidariedade e seu inverso, enfim, se aprende muito quando se está na política. A lição mais importante e mais difícil é aprender a manter o foco naquilo que é melhor para os representados, os trabalhadores.

Quando eu entrei no movimento, comecei a mudar diariamente. Eu diria que comecei a me lapidar. Porque é fato que chegamos, em geral, "voluntaristas" - pois enfrentamos as situações injustas e o status quo, e não aceitamos a realidade como é -  e temos que nos transformar em dirigentes de movimento social organizado, o que exige bem mais que a vontade inicial que nos move. Temos que aprender os princípios que norteiam o movimento que participamos, aprender sobre tática e estratégia, sobre como organizar batalhas contra o poder instituído de maneira a ter um mínimo de correlação de forças entre nós movimento social e eles o status quo. Temos que aprender a organizar a maioria real - judiada e massacrada - para enfrentar a minoria que detém os meios e o poder de mantê-los. Deve-se aprender rápido que não existe inocência, nem aquele papo de ser neutro, imparcial, isento, independente. Todos e tudo têm lado. Mas também não se pode tratar o mundo de maneira maniqueísta e binária. A vida social é complexa.

Cada vez que deixei minha vaga à disposição ao final de meus mandatos sindicais, fui convencido de que deveria continuar contribuindo com o meu trabalho de representação, provavelmente por ter uma avaliação positiva dos trabalhadores que represento, além da avaliação interna.

Entrei neste mandato do Sindicato e neste período de campanha salarial dos bancários mantendo meu compromisso de combater as mazelas do capitalismo em sentido latu, ou seja, lutando pelo seu fim e pela implantação de um sistema social sem exploração do homem pelo homem e numa sociedade mais democrática, justa, solidária e que respeite a alteridade. Irei combater em qualquer espaço social aquilo que a Central Única dos Trabalhadores fala e escreve, enquanto princípios que nos norteiam.

Aprendi que o mundo pode mudar através da formação e da união solidária. Eu mudei muito nesta década. A geração que está chegando nas lutas sociais deve inverter a lógica da corrosão do caráter implantada pelo neoliberalismo como forma de conduzir o mundo a partir do ponto de vista do umbigo e do momentâneo.

Essa foi uma reflexão cultural que fiz aqui e que faço diariamente ao acordar e sair para mudar o mundo.

William Mendes

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

ESAÚ E JACÓ - Lembranças eróticas e o caso do burro

Para quem já conhece a sutileza de Machado ao sugerir ou falar de sexo ou erotismo, pois talvez conheça seu conto "Missa do Galo", é sempre prazeroso trazer algumas linhas que abordam o tema.

O capítulo que cito abaixo vem após um momento de "RECUERDOS" (nome do capítulo anterior). O trecho melhor dos recuerdos lhes dou abaixo:

"Aires deixou-se ir rio abaixo daquela memória velha, que lhe surdia agora do alarido de cinquenta ou sessenta pessoas. Essa espécie de lembranças tinha mais efeito nele que outras. Recompôs a hora, o lugar e a pessoa da sevilhana. Cármen era de Sevilha. O ex-rapaz ainda agora recordava a cantiga popular que lhe ouvia, à despedida, depois de retificar as ligas, compor as saias, e cravar o pente no cabelo, - no momento em que ia deitar a mantilha, meneando o corpo com graça..."

ESSA É A LEMBRANÇA ERÓTICA DE UM VELHO CONSELHEIRO AIRES...


Machado de Assis c. 1905, pintado por Henrique Bernardelli.

CAPÍTULO XLI

CASO DO BURRO

SE AIRES obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele continuaria a andar, nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro, sem nunca mais acabá-lo. Mas não há na memória que dure, se outro negócio mais forte puxa pela atenção, e um simples burro fez desaparecer Cármen e a sua trova.

Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.

Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito invencível. Depois leu neles este monólogo: "Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não me chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar..."

- Vê-se, quase que se lhe ouve a reflexão, notou Aires consigo.

Depois riu de si para si, e foi andando. Inventara tanta cousa no serviço diplomático, que talvez inventasse o monólogo do burro. Assim foi; não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciência, mas não se pôde ter que lhes não desse uma forma de palavra, com as suas regras de sintaxe. A própria ironia estava acaso na retina dele. O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memória a esquecer Caracas e Cármen, os seus beijos e experiência política.

COMENTÁRIOS:

Cara, que coisa fantástica e atemporal qualquer texto do Bruxo do Cosme Velho.

Vimos ali, ele nos lembrando que não há lembrança e devaneio que resista a outro evento que chega de forma intempestiva e chocante. Até um caso de burro e violência faz ir embora da memória uma cena de luxúria do passado.

DUPLO SENTIDO: "este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar"

E AÍ, HEIM!? Gostaram da pegadinha? Eu nunca me esqueço de quando era criança e via o nosso vizinho de frente, lá em Uberlândia, espancando os cavalos para "amansá-los". O ASNO DO HOMEM os amarrava no poste e lhes batia violentamente, às vezes, por horas... que lixo ter visto aquilo na infância!

MAS O MONÓLOGO DO BURRO É MARAVILHOSO! me lembrou muito texto e muita sabedoria...


Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: Obras Completas. Editora Globo, 1997.

sábado, 10 de setembro de 2011

Dom Casmurro - Uma leitura das senhas para o drama ficcional


Dagnan_Bouveret_Une_Noce_chez_le_photographe.
 (ilustração da capa de minha coleção)

Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Literatura Brasileira IV
Professor: Hansen

Aluno: William Mendes de Oliveira
Matrícula: 3504053 - 2o semestre 2007


CAPÍTULOS I, II, E IX DE DOM CASMURRO DE MACHADO DE ASSIS: UMA LEITURA DAS SENHAS

ou
(Um encaixe perfeito como chave e fechadura ficcional)

Proposta: Fazer uma leitura dos capítulos I ao X, com base e referência nas aulas dadas em classe, de maneira a discutir a função dos capítulos I. Do Título e II. Do Livro, desvendando parte das “obscuridades” que encobre “muita vez o sentido por um modo confuso” através das alegorias sugeridas no capítulo IX. A Ópera.

INTRODUÇÃO

            Dom Casmurro é o romance onde Machado de Assis exercita com maestria o gênero dramático. É uma obra cuja técnica é teatral: o narrador Dom Casmurro põe em cena suas reminiscências ao mesmo tempo em que o leitor a lê.

            Os dois primeiros capítulos são chaves. É uma espécie de contrato feito entre narrador e leitor atento. Algumas frases e palavras serão determinantes. Veremos no capítulo IX o encaixe entre um conjunto de senhas deixadas pelos autores – Machado de Assis e Dom Casmurro.

Esse início fala da mimese, das cópias – casa do Engenho Novo, figuras e medalhões internos etc. Ele mesmo se declara um simulacro, um nome que não é nome, não tem identidade. Não é Santiago quem escreve, é o Dom Casmurro. Nos indica que é uma ficção que escreverá uma ficção. A história de Bentinho e Capitu é um produto do Dom Casmurro. Somos jogados dentro do palco, da encenação teatral que se apresentará. Mas a determinação é do Dom Casmurro - que é a alcunha de Santiago no presente. Ou melhor, é o rescaldo, a ruína, o que sobrou dele. Pior, ele nos dá dicas de que não tem memória. Ora, então só pode ser ficção, como a sugerida pelo velho tenor, aquilo que vai escrever e contar.

O capítulo I. Do Título já começa dizendo que o narrador é uma alcunha, um pseudônimo que falará da vida do homem Santiago, ou seja, da personagem ficcional (da representação social Santiago, por sinal alcunhado Bentinho).
           
Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo.” C.I



            O que ele vai narrar?

            No capítulo II, nos diz a resposta: devido à monotonia, decidiu escrever um livro. Como lhe faltavam “as forças necessárias” para obras mais densas como jurisprudência, filosofia, política e algo de história “real” (dos subúrbios), buscou a inspiração nas suas cópias de medalhões do passado clássico.
           
            Quem é o autor?

... sendo o título seu (poeta do trem), poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.” C.I

            Essa questão da autoria é um traço marcante no Machado de Assis da segunda fase. Quem é o autor de suas narrativas? Quem é o narrador?
            A resposta alegórica está também no capítulo IX, onde se define a “regra da divisão” dos direitos autorais entre poeta e músico:

Deus recebe em ouro, Satanás em papel.” C.II

Autor do livro Dom Casmurro: Joaquim Maria Machado de Assis;
Autor de A história de amor de Bentinho e Capitu: Dom Casmurro.

            Os direitos autorais e seus rendimentos até hoje são de Joaquim Maria Machado de Assis. Também, até hoje, o famoso romance contado por Dom Casmurro é um dos que mais papel e tinta receberam discutindo se Capitu traiu ou não traiu Bentinho.

            Em Machado, a indeterminação é tudo. Ele brinca com o leitor. Trabalha com a ambiguidade. Desde Memórias Póstumas de Brás Cubas, sua técnica é delegar a narradores o caráter de autores de suas obras.

A história do amor de Bentinho e Capitu é uma indeterminação contínua. Não podemos confiar de jeito nenhum. Tudo o que o narrador produz no presente da enunciação é através do pseudônimo, que não tem identidade, não é um ser real, não é Bentinho.

            A senha está dada ao leitor. Um narrador fictício, ou pior, impossível - um pseudônimo que conta sua história de vida - irá narrar a história daquele que diz ser ele mesmo no passado, com a verossimilhança que o leitor espera. Mas será verdadeira sua versão?

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro.” C.II

            O tempo usado nessa enunciação diz ao leitor que ele criará sua obra, essa história (ou essa versão da história), no mesmo momento em que está enunciando.

            O dêitico agora também avisa ao leitor sobre esse presente narrativo.

Não alcanço a razão de tais personagens” (cópias das figuras de César, Augusto, Nero e Massinissa) C.II

            Ao mesmo tempo em que nos diz não saber o motivo de tais cópias, há toda uma sugestão que, evidentemente, só seria passível de percepção por leitores bastante cultos e conhecedores de história mundial. São como senhas.

            Essas personagens clássicas são todas marcadas na historiografia por grandes dramas ou pathos. Existem traições e mortes ao redor de todas elas: adultérios, assassinatos em família, traição por melhores amigos etc.

            As cópias dos bustos, quer dizer, essas cópias das cópias da casa antiga, que já eram representações, entraram “a falar-me e a dizer-me, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos”, aliás, impossível, pois esse narrador, que é um pseudo, uma alcunha, apareceu de há pouco “Uma noite destas”.

Eia, comecemos a evocação...” C.II

            No fim do capítulo, o narrador usará um substantivo bastante sugestivo, derivado do verbo evocar, para sinalizar ao leitor o que ele irá produzir a partir de então: uma história baseada na memória e na imaginação.

            Mas, seguindo a ideia, a sugestão das personagens clássicas, o narrador vai contar algumas histórias (pois talvez não existam esses “tempos idos”) com um intuito de ter “ilusão”. Ilusão do que?

Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta... Fausto. Aí vindes outra vez, inquietas sombras?...” C.II

            Após conhecer toda a história narrada, descobrimos que essas “sombras” que perpassam significam os ciúmes que a personagem da fábula (que a alcunha alega ser ele no passado) teve por Capitu.

            Ciúme este que levou às consequências mais graves possíveis em uma relação, pois Bentinho se separou, acusou Capitu de adultério, de que o filho não era dele e sim de traição dela com seu melhor amigo Escobar.

Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, Grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo.” C.II

            Os comentários citados por ele, podem alertar o leitor que ele vai contar a versão dele dos fatos, com a vantagem de que nenhum “envolvido” poderá contestá-la, haja vista que estão todos mortos.



            A vida é uma ópera?

            O narrador nos diz no capítulo X ter aceitado a teoria de seu velho amigo Marcolini, sobretudo pela verossimilhança com a vida dele. Novamente nos vem à tona a palavra evocação, que vem do verbo evocar - tornar (algo) presente pelo exercício da memória e/ou da imaginação; lembrar. (conforme Houaiss).

Eia, comecemos a evocação...” C.II

            Desde a era clássica, os poetas, os autores, clamavam e evocavam as musas para lhes darem inspiração em suas histórias.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.” C.II

            Se com a cópia material das coisas do passado não foi possível, ou seja, reproduzir a casa e os modos da antiga Rua de Mata-cavalos, quem sabe com uma narração criada agora no presente (da enunciação)?

...mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” C.II

            Aqui, o narrador está dizendo o que?

            Ele é o Dom Casmurro, uma alcunha nascida “Uma noite destas”. É evidente que esse pseudônimo não pode ter passado. É natural que haja essa lacuna a um falso-ser, um pseudo, criado há pouco.

... e, de memória, conservo alguma recordação...” C.II

            Já está dito que ele é um vazio, uma lacuna e que tem pouca, alguma recordação em sua memória. Mesmo assim, diz que escreverá a partir de suas reminiscências que vierem vindo.

Todas as senhas até agora nos levam à ideia de que a narração se mostrará um ato performativo e teatral por parte do “autor-narrador” Dom Casmurro.


BREVE LEITURA DOS CAPÍTULOS I AO X: ANALISANDO AS SENHAS


CAPÍTULO I. DO TÍTULO

Uma noite destas...
Não achei melhor título para a minha narração; Se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo.

Tempo: presente da enunciação.
Narração em primeira pessoa - EU, narrador alcunhado de Dom Casmurro.
CAPÍTULO II. DO LIVRO

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro...

Não passou, mudou de ideia e resolveu explicar o motivo: para variar a monotonia, lembrou escrever um livro.

Tempo: mesmo momento da enunciação:

... ainda agora me treme a pena na mão...

e depois completa:

... vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo...

Eia, comecemos a evocação...

CAPÍTULO III. A DENÚNCIA

Ia a entrar na sala de visitas...

Começa aqui uma sequência de capítulos com verbos no pretérito imperfeito do indicativo, tradicional construção do passado do tipo “Era uma vez...”.

CAPÍTULO IV. UM DEVER AMARÍSSIMO!

José Dias amava os superlativos...

Veja que frase interessante no que diz respeito à verossimilhança:

... um silogismo completo, a premissa antes da consequência, a consequência antes da conclusão...

CAPÍTULO V. O AGREGADO

Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido...

CAPÍTULO VI. TIO COSME

Tio Cosme vivia com minha mãe...

CAPÍTULO VII. D. GLÓRIA

Minha mãe era boa criatura...



No meio do capítulo interrompe a série “Era uma vez...” e volta ao presente da enunciação:

Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do do marido, tais quais na outra casa...

... Aqui os tenho aos dous bem casados de outrora...

Outra referência à questão de cópia e mimese, ideia de verossimilhança, que “parece dizer...”:

... São retratos que valem por originais...

CAPÍTULO VIII. É TEMPO

Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro...

Quer dizer, voltar ao capítulo III, onde começava a construir a história; é tempo de voltar às reminiscências do narrador sem-memória.

Este capítulo é enigmático. Começam a aparecer aqui as questões de “A vida é uma ópera”. Teoria aceita pelo narrador e explicada no capítulo seguinte, o nono.

Primeiro, afirma que aquela tarde “... foi o princípio da minha vida...

Lembremos que esse EU é o pseudônimo Dom Casmurro. Naquele momento, ele começa a criar seu passado, sua versão dos fatos. A criação da fábula, das personagens, do silogismo, em suma, da economia da obra.

Segundo, diz que antes “... foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena...

Os capítulos I e II falam sobre a questão da mimese, da cópia. Daquilo que não é o verdadeiro; do falso. Mas o que o leitor terá ali é a representação, onde “... o mais é também análogo e parecido...” e o que importa é a verossimilhança “... que é muita vez toda a verdade...”.

Por último, arremata confessando:

... Agora é que eu ia começar a minha ópera...

O narrador nos permite, com sua construção, fazer o paralelismo entre “A vida é uma ópera” e - essa história que vou contar é uma ficção, é minha versão da fábula.

Agora é que o EU – Dom Casmurro – ia começar sua ópera, história, narração ficcional.

No capítulo X, esse narrador explica que seu velho amigo Marcolini o fez crer que poderia ser aquele maestro, criador de partituras.


CAPÍTULO IX. A ÓPERA

Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha”. Volta a contar história.

Deus é o poeta

Alegoria do criador. Aqui é Machado de Assis.

A música é de Satanás... gênio essencialmente trágico

A música é alegoria de criação, peça de ficção; Satanás é alegoria do pseudônimo Dom Casmurro, do Bento velho (Santiago) – aquele que é todo ruína no presente da enunciação.

Rival de Miguel, Rafael e Gabriel...

Alegoria para Capitu, Escobar e Ezequiel, personagens da versão de história que ele criará para culpá-los.

... não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios...

Aqui, alegoria de quem está em sua posição de representante da elite, proprietário branco, católico e acima das leis feita para a “gentinha” como os Pádua. Também de quem fala a partir do momento da enunciação: um homem ressentido, que acredita ter sido traído e, morto de ciúmes, acha isso intolerável por se tratarem de “gentinha”.

Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico...

Fatos que ele narrará em suas reminiscências (imaginações) que se vinculam à ideia de traição por parte deles. Olhares, afagos, aparências que levam a conclusões, um silogismo completo para ele – muito ciumento – e que pretende apresentar como verdades absolutas para:

... com o fim de mostrar que valia mais que os outros, - e acaso para reconciliar-se com o céu, - compôs a partitura...

Aqui estamos de volta aos motivos de contar a versão da história de amor de Bentinho e Capitu, narrada por Dom Casmurro.

Deus (Machado)... consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta...

Criou o espaço ficcional.



... e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.

Criou as técnicas ficcionais com todas as possibilidades pertencentes à economia de um romance.

E, para finalizar tudo o que se explica no capítulo I - “... Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.”, Deus (Machado) completa:

- Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo (Satanás – Dom Casmurro – criador da ficção) os direitos de autor.

Satanás afirma ainda que alguns desconcertos da partitura acabam “fugindo à monotonia” conforme o objetivo (motivo) de escrever-se o livro.

Também há obscuridades; o maestro abusa... encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso...

É a chave que estamos desvendando. O maestro (Dom Casmurro) abusa muitas vezes, pois, como lembra tanto dos detalhes do passado se disse haver uma lacuna que é tudo?

As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.

O narrador, de fato, constrói sua ficção com sinais que ajudarão na conclusão de sua tese – a traição. Olhares, afagos, muitas semelhanças ao longo da história. Toda a obra oferece verossimilhança à qual os leitores de seu tempo estão acostumados. (Locus social – seriam os imparciais?)

Os amigos do maestro (o segmento social ao qual pertence Dom Casmurro) querem que dificilmente se possa achar obra tão bem acabada...

Já não dizem o mesmo os amigos deste (poeta – aqui, o escritor Machado)... é absolutamente diversa (a obra) e até contrária ao drama...

Quer dizer, de fato, a produção literária que Machado vinha fazendo era bastante diversa e contrária ao estilo de literatura determinista e realista a que os leitores estavam acostumados.

... parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente é um plagiário.

Alegoria à técnica moderna criada por Machado de criar autores para suas obras.

No fim do capítulo, chama atenção o narrador ser chamado de “Caro Santiago” como se fosse para nos alertar desse emaranhado de nomes e alcunhas – Machado, Dom Casmurro, Santiago, Bentinho...

CAPÍTULO X. ACEITO A TEORIA

Aqui temos a confissão de Santiago, que aceita a teoria, poderia criar um livro, uma narração aonde viesse a contar a sua versão da história de amor entre Bentinho e Capitu, através de um pseudônimo - Dom Casmurro e, com uma boa imaginação (com a evocação das musas) poderia usar de técnicas retóricas para convencer aos leitores sobre suas razões.

... não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor...”

 

 

APÓS ANÁLISE DAS SENHAS, UMA CONCLUSÃO DE LEITURA


            Machado faz crítica à categoria da representação. Não é a memória confiável que será utilizada pelo narrador, é uma evocação. É um boneco falando do passado, é um fingido.

Toda literatura é ficção, não é realidade. Pode ter verossimilhança, pode parecer, mas é mimese, é criação ficcional.

            O narrador – o Santiago, já maduro, alcunhado de Dom Casmurro – usará da retórica que aprendeu com os padres e como advogado, e convencido da teoria de que a vida é uma ópera, para tentar nos convencer que as memórias que ele escreverá são verdadeiras e verossímeis (na verdade é ficção feita pela máscara, pelo pseudônimo, partitura feita pelo maestro). É o puro falso.

A arte é um exercício que brinca e joga com o leitor, mas, esvazia tudo. Como os leitores não acreditariam no personagem narrador? Ele pertence a um locus, busca fazer com que seus leitores acreditem nele, por saber que pertencem à mesma posição dominante dele, ou seja, ele é homem branco, católico, proprietário em um país – Brasil do século XIX, machista, escravista, católico, patrimonialista e de família patriarcal. Porém, não é Santiago quem narra e sim sua alcunha.

Machado de Assis mostrará as possibilidades da técnica literária. O escritor é um mestre em mostrar pontos de vista, de não fechar as leituras possíveis, os ângulos observados. Alguns críticos como Suzano Santiago e Alfredo Bosi apontaram essa indeterminação no autor.

Os dois primeiros capítulos evidenciam para o leitor, através do narrador – a máscara, o pseudônimo – de que ele vai produzir ficção. É uma espécie de contrato. É representação produzindo representação. O capítulo IX dá sentido às senhas apresentadas nesses dois capítulos.

E a técnica é fantástica: não é Machado quem conta; não é também Bentinho; É Santiago através de seu pseudônimo Dom Casmurro.

É uma representação final de Santiago (após todos os fatos passados em sua vida), que é, por sinal, uma representação social feita por Machado de Assis. Aqui é importante lembrar um conceito moderno fundamental: literatura não é ciência; é ficção. Pode ser verossímil, mas não é verdade absoluta. É técnica narrativa.

Uma das discussões da crítica literária é a respeito das possibilidades de leitura de um texto literário no que diz respeito à historicidade dele.

A verossimilhança de uma criação literária pode não ocorrer em períodos distintos, não contemporâneos a ela. Aliás, como exemplo, poderíamos citar os romances românticos do século XIX sendo lidos pelos jovens nos dias de hoje. Fica difícil dar credibilidade a tudo que os heróis e mocinhas românticos faziam ou deixavam de fazer pelo amor idealizado.

A partir do 1880, Machado faz uma trilogia de estudos de técnica literária. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, faz paródia das teorias científicas e sociais da época, através do Humanitismo; em Quincas Borba, estuda os limites do imaginário e da loucura; finalmente em Dom Casmurro, faz uma paródia com a linguagem literária, com as teorias da representação.


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Obras Completas. Editora Globo, 1997. (primeira edição em 1899)
e
Referências obtidas nas aulas ministradas pelo professor Hansen.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

ESAÚ E JACÓ - Leituras machadianas

Hoje estava relendo meu primeiro diário, que data de agosto de 2007. Na época, a agonia de divergir internamente em minha corrente política, em relação a uma proposta de remuneração variável para aquela campanha, deixou-me destruído. Fui buscar na escrita pessoal a reflexão sobre valer ou não a pena seguir em minha representação dos trabalhadores.

O romance Esaú e Jacó, do Conselheiro Aires, na verdade de Machado de Assis, é fruto de escritos pessoais. Vários volumes foram deixados pelo conselheiro, sendo os seis primeiros como parte de um Memorial e o outro em forma de Narrativa.

Acho que todos deveriam escrever com certa constância sobre as coisas. Isso, lá na frente, pode ser útil, senão ao próprio escritor, aos amigos e pessoas do amanhã. Felizmente, no passado anterior ao email e à rede mundial, os escritos eram em papel e hoje os temos analisados. Daqui a cinquenta anos, talvez não tenhamos nada registrado do que foi feito em palavras - orais e eletrônicas - e não em papel ou outro suporte mais duradouro que algo eletrônico.

Bom, reproduzo abaixo um excelente capítulo onde o autor dialoga com o leitor (no caso, a leitora) e faz algo pouco usual nos dias que correm. É muito interessante.

Nosso mestre Machado de Assis
CAPÍTULO XXVII

DE UMA REFLEXÃO INTEMPESTIVA

EIS AQUI entra uma reflexão da leitora: "Mas se duas velhas gravuras os levam a murro e sangue, contentar-se-ão eles com a sua esposa? Não quererão a mesma e única mulher?"

O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capítulo do amor ou dos amores, que é o seu interesse particular nos livros. Daí a habilidade da pergunta, como se dissesse: "Olhe que o senhor ainda nos não mostrou a dama ou damas que têm de ser amadas ou pleiteadas por estes dous jovens inimigos. Já estou cansada de saber que os rapazes não se dão ou se dão mal; é a segunda ou terceira vez que assisto às blandícias da mãe ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor, às duas, se não é uma só a pessoa..."

Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo escrito com método. A insistência da leitora em falar de uma só mulher chega a ser impertinente. Suponha que eles deveras gostem de uma só pessoa; não parecerá que eu conto o que a leitora me lembrou, quando a verdade é que eu apenas escrevo o que sucedeu e pode ser confirmado por dezenas de testemunhas? Não, senhora minha, não pus a pena na mão, à espreita do que me viessem sugerindo. Se quer compor o livro, aqui tem a pena, aqui tem papel, aqui tem um admirador; mas, se quer ler somente, deixe-se estar quieta, vá de linha em linha, dou-lhe que boceje entre dous capítulos, mas espere o resto, tenha confiança no relator destas aventuras.


COMENTÁRIO:

QUE DELÍCIA de capítulo! Vi um diálogo assim entre autor e leitor em Niebla, de Miguel de Unamuno. Aliás, aos que gostam de inovações em técnicas literárias, leiam e contem depois. O personagem de Unamuno saí de um mundo para ir ao outro, confundindo o leitor entre mundo real e mundo ficcional. É fantástico.

A brincadeira de Machado, ou de Aires, de pedir para a leitora parar de sugerir o que mais adiante virá é muito legal. Também vi dessa técnica em vários livros e contos do próprio Machado, de sua fase "romãntica".


Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: Obras Completas. Editora Globo, 1997.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

ESAÚ E JACÓ - Leituras machadianas

A leitura diária de Machado ou Cervantes nestes dias de campanha dos bancários é para mim um escape, uma refeição de alguns minutos para que eu me permita sobreviver, manter minimamente a sanidade e a subjetividade.

Vejam que coisa deliciosa este capítulo de Esaú e Jacó. Ele pode ser comparado à temática da mulher de trinta anos de Balzac. Aqui temos a mulher de quarenta. E que mulher!, segundo o narrador. E isto há mais de um século, onde a expectativa de vida era menor que cinquenta anos.

CAPÍTULO XIX


APENAS DUAS. - QUARENTA ANOS. TERCEIRA CAUSA

Um dos meus propósitos neste livro é não lhe pôr lágrimas. Entretanto, não posso calar as duas que rebentaram certa vez dos olhos de Natividade depois de uma rixa dos pequenos. Apenas duas, e foram morrer-lhe aos cantos da boca. Tão depressa as verteu como as engoliu, renovando às avessas e por palavras mudas o fecho daquelas histórias de crianças: "entrou por uma porta, saiu pela outra, manda el-rei nosso senhor que nos conte outra". E a segunda criança contava segunda história, a terceira terceira, a quarta quarta, até que vinha o fastio ou o sono. Pessoas que datam do tempo em que se contavam tais histórias afirmam que as crianças não punham naquela fórmula nenhuma fé monárquica, fosse absoluta, fosse constitucional; era um modo de ligar o seu Decameron delas, herdado do velho reino português, quando os reis mandavam o que queriam, e a nação dizia que era muito bem.

Engolidas as duas lágrimas, Natividade riu da própria fraqueza. Não se chamou tola, porque esses desabafos raramente se usam, ainda em particular; mas no secreto do coração, lá muito ao fundo, onde não penetra olho de homem, creio que sentiu alguma cousa parecida com isso. Não tendo prova clara, limito-me a defender a nossa dama.

Em verdade, qualquer outra viveria a tremer pela sorte dos filhos, uma vez que houvera a rixa anterior ou interior. Agora as lutas eram mais frequentes, as mãos cada vez mais aptas, e tudo fazia recear que eles acabassem estripando-se um ao outro... Mas aqui surgia a ideia da grandeza e da prosperidade, - cousas futuras! - e esta esperança era como um lenço que enxugasse os olhos da bela senhora. As Sibilas não terão dito só do mal, nem os Profetas, mas ainda do bem, e principalmente dele.

Com esse lenço verde enxugou ela os olhos, e teria outros lenços, se aquele ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma dela. Ainda lhes não disse que a alma de Natividade era azul. Aí fica. Um azul celeste, raro tempestuava, e nunca a noite escurecia.

Não, leitor, não me esqueceu a idade da nossa amiga; lembra-me como se fosse hoje. Chegou assim aos quarenta anos. Não importa; o céu é mais velho e não trocou de cor. Uma vez que lhe não atribuas ao azul da alma nenhuma significação romântica, estás na conta. Quando muito, no dia em que perfez aquela idade, a nossa dona sentiu um calafrio. Que passara? Nada, um dia mais que na véspera, algumas horas apenas. Toda uma questão de número, menos que número, o nome do número, esta palavra quarenta, eis o mal único. Daí a melancolia com que ela disse ao marido, agradecendo o mimo do aniversário: "Estou velha, Agostinho!" Santos quis esganá-la brincando.

Pois faria mal se a esganasse. Natividade ainda tinha as formas do tempo anterior à concepção, a mesma flexibilidade, a mesma graça miúda e viva. Conservava o donaire dos trinta. A costureira punha em relevo todos os pensamentos restantes da figura, e ainda lhe emprestava alguns do seu bolsinho. A cintura teimava em não querer engrossar, e os quadris e o colo eram do mesmo estofador antigo.

Há dessas regiões em que o verão se confunde com o outono, como se dá na nossa terra, onde as duas estações só diferem pela temperatura. Nela nem pela temperatura. Maio tinha o calor de janeiro. Ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul.

Esta cor vinha-lhe do pai e do avô, mas o pai morreu cedo, antes do avô, que chegara aos oitenta e quatro. Nessa idade cria sinceramente que todas as delícias deste mundo, desde o café de manhã até os sonos sossegados, haviam sido inventados somente para ele. O melhor cozinheiro da terra nascera na China para o único fim de deixar família, pátria, língua, religião, tudo, e vir assar-lhe as costeletas e fazer-lhe o chá. As estrelas davam às suas noites um aspecto esplêndido, o luar também, e a chuva, se chovia, era para que ele descansasse do sol. Lá está agora no cemitério de S. Francisco Xavier; se alguém pudesse ouvir a voz dos mortos, dentro das sepulturas, ouviria a ele, bradando que é tempo de fechar a porta ao cemitério e não deixar entrar ninguém, uma vez que ele já lá descansa para todo sempre. Morreu azul; se chegasse aos cem anos, não teria outra cor.

Ora, se a natureza queria poupar esta senhora, a riqueza dava a mão à natureza, e de uma e de outra saía a mais bela cor que alma de gente pode ter. Tudo concorria assim para lhe secarem os olhos depressa, como vimos atrás. Se ela bebeu aquelas duas lágrimas solitárias, pudera ter bebido outras pela idade adiante, e isto é ainda uma prova daquele matiz espiritual; mostrará assim que as tem poucas, e engole-as para poupá-las.

Mas há ainda uma terceira causa que dava a esta senhora o sentimento da cor azul, causa tão particular que merecia ir em capítulo seu, mas não vai, por economia. Era a isenção, era o ter atravessado a vida intacta e pura. O Cabo das Tormentas converteu-se em Cabo da Boa Esperança e ela venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe derribassem a nau, nem as ondas a engolissem. Não negaria que alguma lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso de João de Melo, ou ainda pior, no de Aires, mas foram bocejos de Adamastor. Consertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da Índia. Agora lembrava-se da viagem próspera. Honrava-se dos ventos inúteis e perdidos. A memória trazia-lhe o sabor do perigo passado. Eis aqui a terra encoberta, os dous filhos nados, criados e amados da fortuna.

Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: Obras Completas. Editora Globo, 1997.