sábado, 10 de março de 2012

A morte e a morte de Quincas Berro Dágua (1959) – Jorge Amado


Capa de minha edição.

CLÁSSICO BRASILEIRO de 1959


Li nesta semana (entre idas e vindas em transporte urbano) mais uma obra de Jorge Amado, para ver em seguida o filme brasileiro baseado na história, pois sempre que penso em assistir a um filme baseado em livros, gosto de ler o livro antes.

Tem filmes famosos que não vi até hoje porque não li o livro. Querem exemplos? Moby Dick, As vinhas da Ira etc. Outro exemplo recente é o filme também baseado na obra de Jorge Amado Capitães da areia. Agora já li o livro e posso ver o filme também.

Fundação Casa de Jorge Amado, 
Pelourinho, Salvador - BA.
Foto: William Mendes, 2011.

A LEITURA

A leitura é uma delícia. É leve e rápida. Como precisei comprar o livro para meu filho usar na escola, acabei pegando e lendo ele primeiro.


“Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia. Presenciada, no entanto, por testemunhas idôneas, largamente falada nas ladeiras e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca, representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor de nosso tempo)...”


“Não sei se esse mistério da morte (ou das sucessivas mortes) de Quincas Berro Dágua pode ser completamente decifrado. Mas eu o tentarei, como ele próprio aconselhava, pois o importante é tentar, mesmo o impossível.”


Assim começa e termina o primeiro capítulo do livro. Encontramos ali na frase final um EU que se identifica para TENTAR decifrar a ou as mortes de Quincas.

Ladeiras do Pelourinho, Salvador BA. 
Foto: William Mendes, 2011.

AS MORTES DE QUINCAS BERRO DÁGUA

São três as mortes de nosso personagem: “Cometendo uma injustiça (a família), atribuem a esses amigos de Quincas toda a responsabilidade da malfadada existência por ele vivida nos últimos anos, quando se tornara desgosto e vergonha para a família. A ponto de seu nome não ser pronunciado e seus feitos não serem comentados na presença inocente das crianças, para as quais o avô Joaquim, de saudosa memória, morrera há muito, decentemente, cercado da estima e do respeito do todos. O que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte, se não física pelo menos moral, datada de anos antes, somando um total de três, fazendo de Quincas um recordista da morte, um campeão do falecimento, dando-nos o direito de pensar terem sido os acontecimentos posteriores – a partir do atestado de óbito até seu mergulho no mar – uma farsa montada por ele com o intuito de mais uma vez atazanar a vida dos parentes, desgostar-lhes a existência, mergulhando-os na vergonha e nas murmurações da rua...”

Igreja de São Francisco, Pelourinho BA. 
Foto: William Mendes, 2011.

A MORTE TRAZ RESPEITO AO MORTO

Quando um homem morre, ele se reintegra em sua respeitabilidade a mais autêntica, mesmo tendo cometido loucuras em sua vida. A morte apaga, com sua mão de ausência, as manchas do passado e a memória do morto fulge como diamante. Essa a tese da família, aplaudida por vizinhos e amigos. Segundo eles, Quincas Berro Dágua, ao morrer, voltara a ser aquele antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da mesa de rendas estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob o braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política, jamais visto num botequim, de cachaça caseira e comedida.”


Comentário: Cara!, e não é que ao ler esta máxima sobre a morte me lembrei de um monte de gente falecida que para uma boa parte do mundo era um lixo de gente e que após a morte foi reverenciada como a melhor pessoa do mundo!

Até hoje, ninguém entende o ex-presidente Lula da Silva, sacaneado por trinta anos pelo Roberto Marinho, babando elogios ao morto em seu velório...

Belíssima construção da Faculdade
de Medicina de Salvador BA.
Foto: William Mende, 2011.

OS PARENTES

Os personagens parentes de seu Joaquim Soares da Cunha são a filha Vanda, seu genro Leonardo, seu irmão tio Eduardo e a esposa tia Marocas, e a falecida esposa Dona Otacília.

Para Quincas eram jararacas mãe e esposa, saco de peidos a cunhada, e pobre coitado o genro.


OS AMIGOS

Os amigos inseparáveis do paizinho são Curió, Negro Pastinha, cabo Martim e Pé-de-Vento.

Pé-de-Vento vendia anfíbios para a ciência. Ele vivia com uma jia na mão e no bolso. (“sapo não, jia”)

Quitéria do olho arregalado, que “nos momentos de maior ternura, dizia-lhe ‘Berrito’ por entre os dentes mordedores”.

Mestre Manuel, o dono do saveiro.

Maria Clara, Doralice, gorda Margô...

Outra bela igreja da região do Pelourinho. 
Foto: William Mendes, 2011.

AS ALCUNHAS

Rei dos vagabundos da Bahia, Cachaceiro-mor de Salvador, Filósofo esfarrapado da Rampa do Mercado, Senador das gafieiras, “o vagabundo por excelência” eis como o tratavam os jornais, onde por vezes sua sórdida fotografia era estampada. O Patriarca da zona do baixo meretrício.

Quincas se via como O velho marinheiro (“Velho marinheiro sem barco e sem mar, desmoralizado em terra, mas não por culpa sua”).

Panorâmica vendo a baía e o Elevador Lacerda. 
Foto: William Mendes, 2011.

O NOME QUINCAS BERRO DÁGUA

(...) Nos bares, nos botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável. Quem sabia beber melhor do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.

Não que seja fato memorável ou excitante história. Mas vale a pena contar o caso pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de “Berro Dágua” incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas. Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa do mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem auxílio do empregado. Sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a placidez da manhã no mercado, abalando o próprio elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte de um homem traído e desgraçado:

- Águuuuua!”.

Foto noturna do Elevador Lacerda. Até ele
sacudiu com o berro do Quincas.
Foto de William Mendes, 2011.

E AS DERRADEIRAS PALAVRAS?

Há várias versões. Um dos trovadores do mercado diz assim:


No meio da confusão
Ouviu-se Quincas dizer:
“Me enterro como entender
Na hora que resolver.
Podem guardar seu caixão
Pra melhor ocasião.
Não vou deixar me prender
Em cova rasa no chão.”
E foi impossível saber
O resto de sua oração.

Noturna do Elevador Lacerda, com detalhe de pintura.
Foto: William Mendes, 2011.

COMENTÁRIO FINAL

O defunto que não deixou de rir um momento sequer enquanto durou a sacanagem dele em desfazer a tentativa da família de ressuscitar o venerável e respeitável Joaquim Soares da Cunha é um dos pontos altos da história. Sem essa de manter a reputação social da família!

O humor, a ironia e a sensualidade nas obras de Jorge Amado na sua fase após os anos cinquenta são bem diferentes do estilo de forte denúncia social presente nos primeiros vinte anos de obras como Capitães da areia. Não estou dizendo que não há denúncia social em histórias como a de Quincas, mas na primeira fase, as histórias são bem duras.

Lembro-me de como fiquei tocado com a leitura de Mar morto, leitura de minha adolescência. Preciso reler este livro, mas na minha cabeça ficou uma história de marinheiros e mulheres do porto, que sempre vinculo à música de Chico Buarque “Minha História (Gesubambino)”.


“Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar,
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar,
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente,
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente...”


Capa do filme.
O FILME

O filme estreou em 2010 e tem direção e adaptação de Sérgio Machado.

Eu gostei do filme. A interpretação de Paulo José no corpo defunto de Quincas está muito boa. O filme ficou alegre e divertido. A sonoplastia também ficou boa.

A adaptação do Sérgio Machado também é satisfatória, já que ele não segue a história. Mas eu sei que transformar em arte visual obras literárias não é nada fácil.

As técnicas e os efeitos são completamente diferentes. Na literatura, a participação do leitor é obrigatória. Além de ler, cabe ao leitor ser o diretor de fotografia e sonoplastia. Toda a arte visual é dele – leitor - e é única.

Na sétima arte, ganhamos de mão beijada todo o visual. BUUMM! Lá está, é só sentar e ver, ouvir, sentir...


Gostei do filme. Tá bem levinho. É só sentar e assistir!

William


Post Scriptum (24/jan/17):

Releitura da postagem para escrever sobre a releitura de Mar Morto, de 1936.

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