sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O grande mestre, 2008 (reflexões e reminiscências)



Imagem de divulgação do filme de 2008.

Refeição Cultural

Sinopse:

O filme narra a história de Yip Man, desde o ano de 1935 até o período da ocupação japonesa da China entre os anos 1937-1945. Yip Man foi um mestre chinês de Wing Chu - um estilo da arte marcial Kung Fu. Seu estilo, sua filosofia e seu exemplo de vida deixaram milhões de seguidores pelo mundo e um dos mais famosos alunos do mestre Yip Man foi Bruce Lee.


Reflexões e reminiscências

Por algum motivo, este filme me fez percorrer o túnel do tempo de minha vida e ver instantes de possibilidades que não foram realizadas porque ficaram do lado que não escolhi nas encruzilhadas diárias da vida. Neste caso, eu poderia na adolescência ter seguido a vida como um professor de arte marcial se não tivesse ido tentar a sorte na minha cidade natal, São Paulo. 

O filme me fez pensar muito também no que sou, na formação de meu caráter e de minha ética. A todo instante, estou buscando respostas no passado para compreender meu presente, meus valores.

A arte marcial na sua mais pura tradição oriental é uma arte filosófica. É uma forma de aprender a se conhecer, a se dominar, a se superar e resistir à dor. Também é uma filosofia de vida para se viver em harmonia com o mundo ao nosso redor (não é essa violência de ataque gratuito que se vê por aí na atualidade).

Vendo flashbacks de minha vida durante o filme, vi instantes de um garoto como tantos outros vivendo nos anos 70 e 80 em um país com má distribuição de renda, sem liberdades, sob o regime militar (instalado a pedido de uma elite civil tacanha nos anos 60). Um garoto filho de pais simples, sem formação alguma, costureira e taxista. Um mundo de dificuldades básicas de sobrevivência e de intolerância ao seu redor.

Fui viver em Uberlândia (MG) com dez anos de idade. A infância paulistana até ali era repleta de bons momentos. Deixei meus pais em MG e voltei para SP com dezessete anos para viver primeiro com avó e primos, depois em república com estranhos e por fim sozinho em vários locais. Assim como foi até ali desde uns doze anos de idade, trabalhava no que oferecessem de serviço, por tostões e sem carteira assinada.

A lembrança que tenho de minha adolescência é de raiva e ódio. Para me estabelecer e frequentar as ruas do lugar onde cheguei, precisei aprender rápido. Me lembro logo de uma briga de rolar no chão na porta da escola Hortêncio Diniz com outro moleque. Estava na 5ª ou 6ª série. Eu era magricelo e branquelo. Vivia com medo dos outros. Até que chegou o dia em que eu encarei o moleque mais temido da minha rua e o cobri de porrada até a mãe dele vir apartar. Foi minha libertação. Ganhei respeito e minha liberdade.


Kung Fu – aprender a lutar para não lutar

“Vencedor é aquele que vence sem lutar,
mesmo tendo o dom de vencer lutando”

(frase que li por anos na parede frontal do dojô que frequentei)


Entrei em uma academia de Kung Fu quando tinha uns doze ou treze anos*. Olhando para trás e refletindo a respeito da filosofia desta arte marcial, acredito que devo ter sido salvo pelos ensinamentos que tive naqueles 4 ou 5 anos em que pratiquei o Kung Fu. Não tenho dúvidas de que os ensinamentos de meus pais também me salvaram e me fizeram sobreviver a um dos momentos de maior risco na vida humana: a adolescência.

* um adolescente dos anos 2014 não deve se balizar nos 12 ou 13 anos de idade de hoje (atualmente, acho que se é adolescente até uns 35). Nos anos 80, já trabalhávamos com 12 anos entre 8 e 12 horas por dia.

Eu aprendi a administrar meu ódio e minha raiva contra o mundo miserável e injusto em que vivemos, ouvindo por centenas de horas naqueles anos o mestre e seus auxiliares dizerem que não devemos lutar sem necessidade. Que não era para bater em ninguém nas ruas. Que tínhamos que aprender a dominar o corpo e suportar a dor. Eram centenas de abdominais por dia. Dezenas de flexões, barras e exercícios de abertura e de chutes e socos até chegar à perfeição dos movimentos. “Sem dor, sem dor...”

Mas a lição era dura também em relação ao adversário: se tiver que se defender e dar um golpe, que seja o mais eficiente possível para derrubar de vez o oponente.

Meu ódio pelo mundo injusto não diminuiu, mas foi administrado com inteligência e canalizado para fazer o bem. Parei de brigar na rua. Andava no meio das turmas (gangues) que frequentavam as ruas dos bairros Marta Helena, Industrial, Brasil, Roosevelt etc. Nas brigas violentas, eu ficava na minha. Nunca tive a índole de dar chute na cara de ninguém, ferir as pessoas. Fico muito feliz quando olho para trás e reflito sobre isso. Hoje sou representante eleito pelos trabalhadores e busco mudar a vida das pessoas através da política.


“A prática é o critério da verdade...”

(ouço essa frase o tempo todo de pessoas do movimento sindical)


Meu grande mestre.
PAI - Eu acho que dei muita sorte pelo pai que tive porque ele me ensinou - com exemplos - a brigar pelo que é certo, e ele tem a 3ª série primária. Assim, vi meu pai frequentar os órgãos de defesa do consumidor quando era lesado. Vi meu pai organizar vizinhos para brigar por algo errado no bairro. Entrar na justiça contra safados donos de empreendimentos imobiliários que lesaram centenas de pessoas. Vi a vida inteira meu pai brigar com o mundo para tentar conseguir atendimento em hospitais públicos e privados.

Não deu outra. Desde a 5ª série, lá estava eu organizando sala de aula nas escolas por onde andei. Depois na primeira faculdade no FITO em 1992. No Náutico em 1997, comprei briga com o diretor por fechar o portão e deixar de fora dezenas de alunos que pegavam trânsito em São Paulo para chegar a Mogi das Cruzes; também achei cópia de carta que fiz lá defendendo alunos maltratados por estarem inadimplentes. Depois na FFLCH-USP em 2002 na greve de 104 dias... depois no movimento sindical onde me encontro.

Minha grande mestra.
MÃE - Eu acho que dei muita sorte pela mãe que tive porque ela me ensinou, no seu jeito simples, a não violência. Enquanto meus colegas de infância e primos eram espancados em suas casas e até na frente dos outros, eu nunca apanhei. Só ficava de castigo. O critério ensinado a mim para lidar com o ser humano foi: não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem com você. E assim acho que fui crescendo naquele mundo miserável e violento, passando por ele, mas de forma honesta, humana e inteligente. Eu nem religião tenho, mas acredito que os ensinamentos cristãos de minha mãe ficaram em meu caráter e é provável que os siga mais do que muito religioso por aí.


Grandes mestres: sou grato a meus pais e à filosofia do Kung Fu

É isso.

Olhando para trás, acredito que a filosofia e os ensinamentos da arte marcial influenciaram aquele garoto que fui, numa época e local difícil de minha vida. Nunca mais pratiquei Kung Fu depois da adolescência, mas quando a base é boa, não perdemos os valores que adquirimos.


Cada um de nós é o resultado de uma vida. É resultado de acontecimentos diários e fortuitos e da formação recebida, tanto em casa quanto pelas oportunidades e dificuldades ao nosso redor.

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