quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A palavra. O valor das palavras




Acho que estas palavras serão um agradecimento e uma despedida de mandato sindical em São Paulo, Osasco e região


Nos dias que correm, estou às voltas com a questão das palavras.

Assisti dias atrás ao filme “A menina que roubava livros”. Belo filme! A história nos põe a pensar na questão das palavras.

A palavra descreve. Descreve de forma fria. Descreve de maneira acalorada. A palavra cria. A palavra condena. A palavra salva. A palavra organiza e muda a realidade. A palavra engana e mantém as pessoas amortecidas na mesma realidade dura. A palavra conduz para qualquer lado.

Palavras. Pegam-se a substância, a ação ou sentimento e o que se quer informar daquilo. Acrescentam-se os complementos das palavras com outras palavras e temos a descrição do mundo real ou imaginário, do desejo e do sonho.

Os livros. São oportunidades abertas. Podem ser o mundo. Podem criar mundos. Descrever mundos, vidas, situações.

Eu sonhei em viver a minha vida lidando com as palavras. Quis ser professor. Queria ser intelectual, mas era trabalhador braçal.  

Viver da palavra! Apesar de gostar do silêncio. Mas uma coisa é complemento da outra. A palavra e o silêncio.

Hoje tenho uma certeza sobre minha natureza humana: tenho um espírito de servidor público, não de capitalista. Quero as coisas públicas funcionando bem para as pessoas, independente da condição econômica delas.


Pelo estudo das palavras, saí do trabalho braçal.

Pelo uso das palavras, me vi no mundo organizando estudantes, moradores e trabalhadores.

Pela prática das minhas palavras, fiz amigos e acho que ganhei o respeito de pessoas ao meu redor. Pela prática de minhas palavras, fiz adversários também... assim funcionam as coisas no mundo. Isso é democrático!

Por manter a palavra e cumprir o apalavrado, aprendi a fazer política no movimento sindical. A palavra deve valer muito mais que qualquer promessa ou posição de poder. No nosso espaço de movimento social, espaço da utopia muda-mundo, a confiança na palavra pode equivaler à própria vida das pessoas, dos militantes.

Há que se tomar muito cuidado com a palavra, principalmente no campo da esquerda, porque ela separa o limite entre o pragmatismo e os princípios que construímos. A palavra deve definir os limites da prática.

Vemos nos dias que correm que a “técnica” pertence, mais que nunca, às formas de poder da estrutura burguesa. Estão atacando militantes históricos nossos através de uma falsa “técnica” própria da estrutura burguesa (na “justiça”, nos parlamentos). A nós da esquerda, a palavra – e a prática - deve ser sempre mais que a técnica. Nós é que lutamos contra a estrutura burguesa, o status quo.

Estou fora da chapa que concorrerá à eleição de nosso sindicato nas próximas semanas. Não planejei encerrar assim abruptamente o fim de minha relação de amor e dedicação a este Sindicato e aos trabalhadores desta base como representante sindical deles. Foram doze anos, não doze dias.

Alguns não cumpriram o apalavrado comigo e estou encerrando meu mandato sindical no Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região com a certeza de dever cumprido para com os mais de 130 mil bancários desta base. Já são 25 anos como trabalhador bancário, já são 12 anos atuando e lidando com as palavras para buscar um mundo melhor para a classe trabalhadora e para os bancários de forma mais direta.

Desejo bom trabalho e muita dedicação aos bancários para os componentes da nossa chapa plural e unitária do Sindicato (porque acredito que vamos ganhar pelo bom trabalho que realizamos nos últimos três anos e pelo bom grupo que compõe a chapa). Desejo que todos trabalhem ao menos a jornada bancária para a nossa categoria nos próximos três anos e que o trabalho de base seja a prioridade de todos.

Pela palavra, eu defendo o Sindicato e sindicalizo bancários desde 1988, quando comecei a trabalhar no Unibanco, no CAU da Raposo Tavares, aos 19 anos de idade.

Pelas palavras e pela prática, eu brigava com as chefias nos locais de trabalho, pelo que achava correto e contra o que era injusto com os colegas dos bancos e das agências por onde passei no Unibanco e no Banco do Brasil.

Pela confiança nas palavras e no apalavrado, aceitei tarefas que o movimento sindical me pediu e, por minha palavra, sempre cumpri com o maior empenho aquilo a que me comprometi. Mesmo quando me designaram para tarefas em estruturas políticas que me afastaram do contato diário com os bancários na base, que todos sabem que é o que mais gosto de fazer. Fiz e faço com dedicação aquilo que tem que ser feito (mas sempre que achei espaço na agenda, dei os meus pulos e estive nas unidades falando com os bancários também).


AGRADECIMENTOS

Pelas palavras e pela prática, me convidaram para participar da chapa da CUT em eleição do nosso sindicato em 2002. Pelas palavras e pelo uso delas, estive por doze anos à frente das lutas da categoria, principalmente na construção da Campanha Unificada entre públicos e privados, e foi pelas palavras que os bancários votaram e aprovaram comigo as conquistas apresentadas nas defesas das assembleias decisivas sob greve nas onze campanhas nacionais entre 2003 e 2013. Meu muito obrigado aos bancários e bancárias de nossa base pela confiança e pela parceria.

Pelas palavras e pela prática, continuo à disposição e na luta por um mundo melhor, principalmente o mundo do trabalho e da classe trabalhadora. Sou dirigente da nossa Confederação e estaremos contribuindo com a luta de classe nos espaços que os trabalhadores acharem que devo estar.

Com a palavra, peço desculpas às pessoas que magoamos e desagradamos nesse período. Isso acontece até sem querer. Busquei e busco ser leal com todos, mas às vezes nossas palavras magoam as pessoas. Sorry! Lo siento! Perdão!

Eu quero agradecer de coração aos bancários e bancárias de São Paulo, Osasco e região pela oportunidade que me deram de representá-los nesses doze anos em nossa entidade sindical. Só minha família para dizer o quanto mudei como ser humano, como sou uma pessoa melhor graças à convivência com as dificuldades, tristezas e alegrias que é ser diretor de um sindicato e de uma categoria tão intensa como a dos bancários. Acho que minha família agradece mais que eu aos bancários e bancárias por eu ser uma pessoa melhor após esses doze anos. Valeu!

Sigo sempre na LUTA!

William Mendes
Bancário do Banco do Brasil

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Conhecendo os Estados Unidos da América (1)



Essa é para quem achava que Forrest Gump era ficção...

Refeição Cultural


É interessante como a vida nos leva por aqui e por ali ao longo de nossa passagem pela Terra. Eu nunca pensei em viajar para os Estados Unidos a passeio, porque não me lembro de ter desejado conhecer nada neste país a não ser o Grand Canyon.

Politicamente, eu tenho muita aversão ao que chamamos cultura americana. Em termos de história do mundo e do imperialismo americano, também não suporto o que esse país fez e faz aos demais países subdesenvolvidos do Planeta.

Em dezembro passado (2013), vim pela primeira vez aos EUA. Fui à cidade de Nova York a trabalho. Voltei agora, também cumprindo uma agenda de trabalho. Estou em Orlando - Flórida e vou com meus companheiros para a cidade de Nova York neste domingo, se as tempestades de neve permitirem os voos para lá.

Nessas viagens que tive a oportunidade de fazer, a gente trabalha muito e quase não consegue parar para andar pelo local e conhecer alguma coisa.

Estivemos aqui em Orlando por quatro dias e basicamente eu só fui em um "Outlet" porque o pessoal queria comprar coisas.


Os americanos - mitos e tabus


Olhem o tamanho deste cruzamento na cidade de Orlando...

Uma das coisas que chamam a atenção aqui é o tamanho dos carros. São muito grandes! As ruas são enormes. A cidade de Orlando não foi feita para se andar a pé nela.


Essa é clássica. É verdade, mesmo!
Onde está o 13º andar?

Aquele negócio de não colocar o número 13 nos andares é verdade! É difícil de acreditar, mas é!


Essa do hambúrguer tirei em dezembro lá em Nova York.
Desta vez, aqui em Orlando, achamos comida "normal".

O hambúrguer dos americanos é gostoso, mas calórico pra burro! Em relação à comida, tudo é muito rápido. Comer, comer, comer... é o melhor para poder engordar...

Tudo aqui é business. Nós fomos jantar num bar e o contratado era das 19 às 21 horas. Cara, quando deu 21 horas, nos pediram pra sair do local e começaram a limpar. Em minutos, o local onde estavam as mesas e o nosso pessoal do movimento sindical, ficou clean e pronto pra outra.

Em relação ao conceito que eu tinha das pessoas, eu estava equivocado. Uma coisa é a gente avaliar os Estados Unidos pelos seus governantes e multinacionais (o 1%). Outra, é você conhecer a classe trabalhadora e as pessoas comuns (os 99%). O povo é muito gente boa.

Tanto em dezembro quanto agora, o que percebi é que as pessoas comuns são cordiais como em muitos outros lugares. É muito legal conversar com os trabalhadores ou com pessoas em lugares públicos.

É isso! A oportunidade me permitiu ser um pouco menos ignorante nesta vida.

William

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Dom Quixote - Em quadrinhos



Capa da edição.

Refeição Cultural

Li neste domingo pela manhã, um HQ de Dom Quixote, da L&PM. Muito bem feito, tanto em relação às aventuras escolhidas quanto nas imagens.


Aqui temos a formosíssima Dulcineia e a figura do
valoroso cavaleiro andante.

O quadrinho respeitou as três saídas do cavaleiro da triste figura, a primeira onde ele sai sozinho e volta logo para sua terra. A segunda saída já com o seu fiel escudeiro Sancho Pança e a terceira saída, onde foi mais longe chegando a Barcelona e lá conhece seu maior infortúnio.


Por fim, a clássica dupla de cavaleiro e fiel escudeiro, 
com seus belos animais, o Rocinante e o burrinho.

- Oh amantes da leitura e dos clássicos, como é bom curtir momentos de prazer com as grandes obras!


Bibliografia:

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. Clássicos da Literatura em Quadrinhos. L&PM Editores. Tradução de Alexandre Boide. Adaptação e roteiro: Philippe Chanoinat e Djian. Desenhos e cores: David Pellet. Impresso no Brasil em 2012.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto





Refeição Cultural


Ganhei no amigo secreto de nosso curso de formação da Contraf-CUT nesta semana (a 8ª turma) um belo livro de João Cabral de Melo Neto com obras importantes e definidoras do estilo do poeta, produzidas e publicadas nos anos cinquenta. O livro contém os poemas O Rio, Paisagens com Figuras, Morte e Vida Severina, Uma Faca só Lâmina.

Já agradeci e agradeço novamente ao companheiro Alex, de Arapoti - PR. Valeu camarada! O presente é demais!!

Foi só chegar em casa e amanheci doido pra ler Morte e Vida Severina. Fiz a leitura do jeito que mais gosto de ler poemas. Em voz alta. Eu declamei o poema inteiro indo e voltando pra lá e pra cá nos meus 2 metros quadrados de sala. Meu filho e esposa e os vizinhos já devem achar que sou louco mesmo, então... normal!

É maravilhoso! Não tem como não se emocionar. Eu não posso dizer que as coisas por lá (região de Pernambuco) estão no mesmo cenário de miséria dos anos cinquenta comparando com os dias atuais após os 3 mandatos de governos do PT porque até o mundo mineral sabe que seria difícil negar os avanços na região Nordeste do Brasil com os incentivos e programas sociais e focos de políticas públicas para reduzir um pouco a desigualdade daquela região em relação às do Sul do país.

A sonoridade, as imagens palavras do auto de Natal pernambucano é de arrepiar. Para aqueles que curtem poesia, vejam um pouquinho da obra abaixo. Abraços, William Mendes


Companheiro Alex, obrigado pelo belo presente!

MORTE E VIDA SEVERINA (1954-55)

(auto de Natal pernambucano)

João Cabral de Melo Neto


O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.


ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUE MATEI NÃO!"


— A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
— Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
— Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele feito,
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
— Ter uns hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
— Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
— E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
— E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente de chumbo
que tem guardada?
— Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
— E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
— Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
— E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
— Vou eu, que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.
— Mais sorte tem o defunto,
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
— Toritama não cai longe,
irmão das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
— Partamos enquanto é noite,
irmão das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.


(...)


ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO


—  Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
— Será de terra tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
— Será de terra e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.

— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
— Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
— Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos).
— Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).

— Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
— Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
— Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
— Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
— Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
— Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.

— Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.
— Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.
— Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.
— Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.

— Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.
— Na mão direita somente
o rosário, seca semente.
— Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha.
— Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.

— Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.
— De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito a viração.
— Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.
— E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
— Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
— Se abre o chão e te envolve,
como mulher com quem se dorme.


(...)


Bibliografia:

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas. Editora Alfaguara, 2013. Direitos Editora Objetiva.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

As palavras e as coisas - Emir Sader


Relendo artigos guardados em casa, este do professor Emir Sader de 2007 me chamou a atenção. Ele trata de semântica, do tratamento da linguagem na disputa de hegemonia nas sociedades. O texto é muito bom.

Fonte: Carta Maior, 22.03.2007


Prof. Emir Sader. 
Foto do blog do Altamiro.
Feitas para designar as coisas, as palavras podem perfeitamente escondê-las. Não fosse assim, o enunciado de algo desvendaria o seu significado. Mas quem trabalha com palavras sabe das armadilhas que elas podem conter. Elas podem se prestar para manipulações ideológicas. Vamos abordar um caso muito significativo e difundido nos discursos contemporâneos, reproduzidos usualmente pela mídia.

Um jornalista holandês aborda a utilização de algumas palavras para se referir ao conflito entre Palestina e Israel, e como elas revelam operações ideológicas que precisam ser decifradas. Joris Luyendijk usa exemplos da cobertura desse conflito para demonstrar como a forma pela qual se denominam as coisas imprime imediatamente um caráter ao noticiário e ao sentido mesmo do conflito.

Devemos usar “Israel”, “entidade sionista”, “Palestina ocupada”? “Intifada”, “novo Holocausto”, “luta de independência”? Os territórios são “questionados” ou “ocupados”? Devem ser “cedidos” ou “devolvidos”? Trata-se de uma “concessão” se Israel chegar a cumprir as decisões de tratados internacionais que caracterizam os territórios como ocupados e que devem ser devolvidos?

Não há palavra neutra, diz ele. E nos convida a um exercício de múltipla escolha, diante da notícia de uma agência internacional:

Hoje na Judeia e na Samaria / nos territórios palestinos / nos territórios ocupados / nos territórios disputados / nos territórios liberados, três palestinos / inocentes / terroristas muçulmanos foram eliminados preventivamente / brutalmente assassinados / mortos pelo inimigo sionista / pelas tropas de ocupação israelenses / pelas forças de defesa israelense.”

Reescreva como lhe parece que deva ser dada a notícia e eu te direi quem és, qual a visão que tens do conflito, das forças que se enfrentam e, ao mesmo tempo, das agências de notícias e da imprensa que reproduz suas versões.

E Joris se pergunta: por que um judeu que reivindica a terra que foi dada por Deus é um “ultranacionalista”, enquanto que um muçulmano que pensa da mesma forma é um “fundamentalista”? Por que um governante árabe que escolheu uma política diferente daquela dos ocidentais é um “anti-ocidental” e um governante ocidental que escolheu uma política diferente daquela dos orientais não é chamado de “anti-oriental”? Alguém já viu um líder político estadunidense ser chamado de “radicalmente antiárabe”? Já viram o governo Bush qualificado de “um governo radicalmente antiárabe”?

Um dirigente israelense que acredita no diálogo é chamado de “pomba”. No entanto um palestino que acredita na mesma via é chamado de “moderado”, para dar uma ideia de que a violência se instalou no coração de cada palestino, com alguns dentre eles conseguindo “moderar” essa natureza profunda. E enquanto Hamas “odeia” Israel, nenhum partido ou líder israelita jamais “odeia” os palestinos, mesmo quando pregam sua expulsão. Neste caso trata-se de uma “limpeza étnica”? Ou de uma “deslocação involuntária”? Ou simplesmente de uma “transferência”?

A grande mídia ocidental não usa a palavra “ocupação!” para designar os territórios palestinos sob controle militar de Israel. Pedem à Autoridade Palestina que modere a resistência, procurando que ela “demonstre que não fez o suficiente contra a violência”. Mas não se explica aos ocidentais o terror, a opressão, a humilhação que se esconde por detrás das palavras “ocupação”. Os correspondentes ocidentais falam dos “sangrentos atentados suicidas”, mas nunca da “sangrenta ocupação”. Os mortos israelenses - três vezes menos que os palestinos - têm nome, sobrenome, cara, família, emprego, amigos, bairro e casa em que mora, enquanto que os palestinos desaparecem sob a expressão - terroristas palestinos e outras versões afins.

Fidel Castro é invariavelmente “ditador”, não sendo chamado assim o presidente egípcio Moubarak* ou o presidente paquistanês Mousharaf ou os dirigentes de países árabes aliados do Ocidente. Como tampouco os ditadores brasileiros - Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo -, todos ex-presidentes brasileiros, segundo a imprensa local.

Os canais de noticiário costumam caracterizar seu trabalho com lemas como “Nós informamos, você decide”. Mas fica claro que o tipo de informação - e de palavras para designar quem é quem em cada conflito e qual sua natureza -, condiciona fortemente, quando já não contém em si as respostas daquilo que aparentemente está perguntando.


A vingança da história

Emir Sader aproveita o artigo para informar que saiu a nova edição do seu livro “A vingança da história” (Editora Boitempo - 021-38757250 - www.boitempoeditorial.com.br), com um capítulo novo, de balanço do primeiro governo Lula.


*PS do Blog: depois das "primaveras árabes", os empresários da imprensa comercial golpista (PIG) passaram a chamar Moubarak de “ditador” também. É a velha questão de conveniência dos empresários donos da mídia.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Don Quijote de La Mancha – Leituras (3)



El Quijote, obra que fotografei 
em Toleto - ESP.


Don Quijote de La Mancha – Leituras (3)

PRIMEIRA PARTE

DEL INGENIOSO HIDALGO DON QUIJOTE DE LA MANCHA

CAPÍTULO II


Que trata de la primera salida que de su tierra hizo el ingenioso don Quijote


"Hechas, pues, estas prevenciones, no quiso aguardar más tiempo a poner en efecto su pensamiento, apretándole a ello la falta que él pensaba que hacía en el mundo su tardanza, según eran los agravios que pensaba deshacer, tuertos que enderezar, sinrazones que enmendar y abusos que mejorar y deudas que satisfacer. Y así, sin dar parte a persona alguna de su intención y sin que nadie le viese, una mañana, antes del día, que era uno de los calurosos del mes de julio, se armó de todas sus armas, subió sobre Rocinante, puesta su mal compuesta celada, embrazó su adarga, tomo su lanza y por la puerta falsa de un corral salió al campo, con grandísimo contento y alborozo de ver con cuánta facilidad había dado principio a su buen deseo..."


Esta é a famosa primeira saída de nosso valoroso cavaleiro manchego. Ele saiu sozinho. Só na segunda saída é que ele estará acompanhado de seu fiel escudeiro Sancho Pança.


“Yendo, pues, caminando nuestro flamante aventurero, iba hablando consigo mismo y diciendo:

- ¿Quién duda sino que en los venideros tiempos, cuando salga a luz la verdadera historia de mis famosos hechos, que el sabio que los escribiere no ponga, cuando llegue a contar esta mi primera salida tan de mañana, de esta manera?: ‘Apenas había el rubicundo Apolo tendido por la faz de la ancha y espaciosa tierra las doradas hebras de sus hermosos cabellos, y apenas los pequeños y pintados pajarillos con sus harpadas lenguas habían saludado con dulce y meliflua armonía la venida de la rosada aurora, que, dejando la blanda cama del celoso marido, por las puertas y balcones del manchego horizonte a los mortales se mostraba, cuando el famoso caballero don Quijote de la Mancha, dejando las ociosas plumas, subió sobre su famoso caballo Rocinante y comenzó a caminar por el antiguo y conocido campo de Montiel’.

Y era la verdad que por él caminaba. Y añadió diciendo:

- Dichosa edad y siglo dichoso aquel adonde saldrán a luz las famosas hazañas mías, dignas de entallarse en bronces, esculpirse en mármoles y pintarse en tablas, para memoria en lo futuro. ¡Oh tú, sabio encantador, quienquiera que seas, a quien ha de tocar el ser coronista de esta peregrina historia! Ruégote que no te olvides de mi buen Rocinante, compañero eterno mío en todos mis caminos y carreras…


Cervantes e a técnica de simular a realidade no Quixote

O engenhoso autor usa uma estrutura narrativa onde o narrador, que se apresenta como não-autor original da obra, fornece dados e locais com o intuito de transparecer que a história que está contando é verídica e que está nos anais das localidades dos feitos ocorridos.


“Casi todo aquel día caminó sin acontecerle cosa que de contar fuese, de lo cual se desesperaba, porque quisiera topar luego luego con quien hacer experiencia del valor de su fuerte brazo. Autores hay que dicen que la primera aventura que le avino fue la del Puerto Lápice; otros dicen que la de los molinos de viento; pero lo que yo he podido averiguar en este caso, y lo que he hallado escrito en los anales de la Mancha es que él anduvo todo aquel día, y, al anochecer, su rocín y él se hallaron cansados y muertos de hambre, y que, mirando a todas partes por ver si descubriría algún castillo o alguna majada de pastores donde recogerse y adonde pudiese remediar su mucha hambre y necesidad, vio, no lejos del camino por donde iba, una venta, que fue como si viera una estrella que, no a los portales, sino a los alcázares de su redención le encaminaba. Diose priesa a caminar y llegó a ella a tiempo que anochecía…”


A cena das mulheres e do vendeiro dando de comer e beber a dom Quixote é a primeira aventura do cavaleiro porque com os arranjos e adaptações que ele fez em sua armadura e viseira, não era possível retirá-la para nada.


“Pusiéronle la mesa a la puerta de la venta, por el fresco, y trújole el huésped una porción del mal remojado y peor cocido bacallao y un pan tan negro y mugriento como sus armas; pero era materia de grande risa verle comer, porque, como tenía puesta la celada y alzada la visera, no podía poner nada en la boca con sus manos si otro no se lo daba y ponía, y, así, una de aquellas señoras servía de este menester. Mas al darle de beber, no fue posible, ni lo fuera si el ventero no horadara una caña, y, puesto el un cabo en la boca, por el otro le iba echando el vino; y todo esto lo recibía en paciencia, a trueco de no romper las cintas de la celada*. Estando en esto, llegó acaso a la venta un castrador de puercos, y así como llegó, sonó su silbato de cañas cuatro o cinco veces, con lo cual acabó de confirmar don Quijote que estaba en algún famoso castillo y que le servían con música y que el abadejo eran truchas, el pan candeal y las rameras damas y el ventero castellano del castillo, y con esto daba por bien empleada su determinación y salida. Mas lo que más le fatigaba era el no verse armado caballero, por parecerle que no se podría poner legítimamente en aventura alguna sin recibir la orden de caballería…”


*TRADUÇÃO DO TRECHO EM SUBLINHADO:


"Pratinho para boa risota era vê-lo comer; porque, como tinha posta a celada e a viseira alçada, não podia meter nada para a boca por suas próprias mãos; e por isso uma daquelas senhoras o ajudava em tal serviço. Agora o dar-lhe de beber é que não foi possível, nem jamais o seria, se o vendeiro não furara os nós de uma cana, e, metendo-lhe na boca uma das extremidades dela, lhe não vazasse pela outra o vinho. Com tudo aquilo se conformava o sofrido fidalgo, só por se lhe não cortarem os atilhos da celada..."




COMENTÁRIO

Fantástico, não é?

A literatura é uma das criações mais maravilhosas do gênio humano.

Eu sempre alimentei o sonho de ler muito e conhecer as grandes obras dos grandes autores universais.

Estou com quarenta e tantos anos. Teria muito tempo para ler literatura ainda. Mas a vida não é exatamente como a gente gosta ou planeja.

Desde adolescente, não pude ler muito porque era trabalhador braçal e fui um dos milhões de subproletários e proletários do mundo que têm que trabalhar até a morte e ainda estudar o mínimo necessário.

Não vou chorar as pitangas aqui e rezar aquele terço de lamentos. Terei ainda pouco tempo para ler nos próximos anos de minha vida. É assim.

Oh caros leitores e leitoras do mundo, não percam a oportunidade de lerem!



Bibliografia:

CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. Edición del IV Centenario. Real Academia Española y Asociación de Academias de La Lengua Española. Alfaguara 2005.


CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Edição da Abril Cultural, 1978, SP, sob licença do Círculo do Livro S.A. Tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo.