domingo, 6 de julho de 2014

A gravidade da tolerância às iniquidades



Em reunião com participantes da 
Caixa de Assistência (Cassi).
Foto: Guina, em 11.6.14.

Refeição Cultural



Iniquidade - É o ato de transgredir a lei ou os bons costumes, ato de mau caratismo, sacanagem, ação que desagrade alguém ou a muitas pessoas, ato malvado, transgressão às leis. A iniquidade vem sempre associada ao cinismo, ou seja, é a prática do mau ato sem que a pessoa que o comete assuma ou reconheça aquela ação como ato errado ou cruel. Iniquidade é o reconhecimento de normalidade em uma ação que é descabida e agressiva. (Fonte: dicionário informal - Franzé Lage)


Minha reflexão deste fim de semana é sobre a questão da permissividade às iniquidades diárias, do papel social de cada pessoa em processos que envolvem questões de intolerância, ódio, discriminação, falta de democracia e iniquidades várias.

Nesta semana fiz uma boa conversa com uma companheira dirigente sindical da base de São Paulo sobre a importância do papel do representante dos trabalhadores, do militante social, de não pactuar e não ser tolerante com os vícios e pequenos desvios diários no seio de qualquer espaço social, inclusive do próprio movimento.

A famosa assertiva da prática como critério da verdade deve ser perseguida diuturnamente por um militante de esquerda, sob risco de sua representação ser uma verdadeira fraude se ele pactuar com as iniquidades ou fazer de conta que não é com ele as coisas erradas e injustas que fazem com as pessoas ao redor dele.

Os textos que descrevem o papel dos estudiosos e intelectuais também falam muito sobre essa temática - gosto muito de Edward Said, por exemplo. 

À medida que a pessoa vai tomando consciência do que é certo e do que é errado, maior será a sua responsabilidade de tomar posição e não se esconder atrás de "neutralidades", "imparcialidades" ou dizer que ele ou o grupo dele não vai tomar "partido" em uma polêmica ou situação porque o lado de maior poder, o grandão, é quem está praticando a iniquidade etc.

Peguemos o exemplo da escravidão, prática social formal e "legal" que prevaleceu por séculos nas sociedades humanas. Poderíamos aceitar um militante dos direitos humanos, um dirigente de entidade da classe trabalhadora, um intelectual no sentido verdadeiro da palavra, concordar com a escravidão como algo correto, aceitável e que já que fazia parte da cultura ou do sistema era melhor deixar quieto e não tomar partido das vítimas - as pessoas privadas do direito à liberdade e tidas como gado e propriedade?




Assisti novamente ao filme Amistad (1997) nesta madrugada e fiquei pensando muito sobre a questão da posição das pessoas nos contextos sociais que preferem não tomar partido algum para não terem problemas e ficarem ali nas suas vidinhas cotidianas.

O filme é baseado em um fato real ocorrido entre 1839 e 1842 nos Estados Unidos da América. Um grupo de africanos de Serra Leoa é sequestrado, traficado como escravos e conseguem tomar o navio Amistad sob a liderança de um homem comum em seu país, pai de família, Sengbe Pieh (nominado Cinqué pelos traficantes de humanos). Eles acabam recapturados pela marinha americana e daí começa o julgamento com vários envolvidos reivindicando a posse do grupo, reivindicando a condenação do grupo por assassinar seus algozes no navio e para decidir o que fazer com aquelas pessoas (tratadas como mercadorias).

Após eles conseguirem vencer duas etapas jurídicas, o caso vira um problema político nacional porque os EUA aceitam a escravidão como sistema social necessário para a economia do país. A decisão de libertá-los pode iniciar o processo abolicionista e contrariar os interesses dos sulistas, inclusive levando o país para uma guerra civil. E aí, vocês acham que o ex-presidente John Quincy Adams, chamado para intervir no caso na última instância, tomou qual posição na Corte? Deixa o grupo de escravos à própria sorte e evita-se o conflito político de repercussões gigantes para os EUA ou não?

Fiquei pensando aqui no meu mundo onde temos divergências internas nos movimentos sociais e muitas vezes acaba-se permitindo iniquidades e vícios a troco de não se posicionar e tomar "partido" do lado que pode ser o correto, apesar de minoritário...




Assisti a outro filme nestes dias que também vai no mesmo sentido - 12 anos de escravidão. O caso de um homem livre enganado (negro), sequestrado e vendido como escravo nos Estados Unidos. Novamente, a mesma questão de tomar ou não tomar partido como cidadão e levar a vidinha tranquila de sempre, ou se meter naquilo que é errado e assumir a responsabilidade de lutar pelo que é justo e contra a iniquidade.

O filme é baseado na autobiografia (de 1853) do violinista Solomon Northup. 

Novamente, terminada a história fiquei pensando no papel de cada pessoa entre fazer de conta que não é com ela e interceder de alguma forma para mudar a situação de iniquidade que está ocorrendo ali naquele contexto.


É importante tomar partido nas coisas da vida, ter lado

Certa vez, logo que cheguei ao movimento sindical, vi uma situação que me pareceu errada, injusta e que era fruto de certa burocracia comum nas grandes estruturas. Um grupo de trabalhadores estava reunido em um espaço social e não tinha permissão para usar a máquina do cafezinho porque na requisição do espaço ela não havia sido descrita para uso. Eu não aceitei a proibição e fui na hora buscar solução com a dirigente responsável pela estrutura, a que estava na posição de liberar ou não as coisas naquele espaço social. Era o mínimo que minha consciência cobrava que eu fizesse. Aquela posição que tomei (partido) marcou minha chegada e assim fiz durante todos os anos de representação dos trabalhadores.

Um representante da classe trabalhadora, uma pessoa que se diz humanista, um estudioso que tem a informação do que é certo ou errado em relação às questões de igualdade, liberdade, democracia, cidadania, direitos humanos, jamais poderá fazer de conta que uma situação iníqua não é com ele e que o melhor é deixar como está. E não estou dizendo aqui que a pessoa também tenha que intervir em tudo que está errado ao seu redor porque senão ela não conseguiria fazer sua representação bem feita.

É importante que as pessoas fiquem alertas para a tomada de posição nas questões de iniquidade porque isso é o que diferencia o pequeno grupo das pessoas que lutam para construir um mundo mais justo e igualitário da grande massa de pessoas que ainda não se libertou da ideologia da classe dominante e que vive no entorpecimento das pequenas guloseimas e migalhas cedidas pelo status quo.

William

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