domingo, 9 de novembro de 2014

O Tempo e o Vento – A mesma crítica política um século depois





Refeição Cultural

O Retrato II – 4º volume

Ao ler as críticas dos personagens lá nos primórdios da República Brasileira após a frustração do embate político para a eleição presidencial entre o candidato situacionista, Hermes da Fonseca, e o da oposição pela campanha civilista, Rui Barbosa, vemos comentários muito semelhantes aos que presenciamos em 2014 nas eleições presidenciais entre a candidatura de Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB). As críticas são semelhantes, mas os contextos completamente diferentes. Vemos a mesma agressividade à flor da pele, embate político marcado por certo ódio e com possibilidades remotas de conciliação entre as partes.


DESDE SEMPRE, REPÚBLICA SEM POVO

(Rodrigo Cambará, conversando com a tia Maria Valéria, revoltado pelo candidato dos militares ganhar a eleição do civilista Rui Barbosa)

“- Palavra de honra. Esse país não tem jeito. Só uma revolução.
Soergueu-se na cama, e, como se a frase anterior tivesse sido dita por ela e não por ele, perguntou:

- Fazer uma revolução com quem? Com o povo? Mas não é possível ir contra as classes armadas! (Na verdade não se estava dirigindo à tia, mas aos leitores d’A Farpa.) Neste pobre país parece que nada se pode fazer sem o concurso dos militares. Foram civis como Castilhos, Patrocínio, Bocaiuva e outros que fizeram a república com ideias. Mas na hora de dar o golpe, desgraçadamente recorreu-se ao Exército. O primeiro presidente foi um marechal. E que fez ele? Dissolveu o Congresso. Agora, pra mal dos pecados, parece que vamos ter outro soldado na presidência. Outro Fonseca! Este país está perdido. Só uma revolução!” (pág. 299)


GAÚCHOS: ASPEREZA ESPARTANA, SEGUNDO DESCRIÇÃO DA OBRA

“(...) Pensou no pai... Como acontecia com quase todos os homens do campo, Licurgo Cambará desprezava o conforto. Gaúchos como ele em geral dormiam em camas duras, sentavam-se em cadeiras duras, lavavam-se com sabão de pedra e pareciam achar indigno de macho tudo quanto fosse expressão de arte, beleza e bom-gosto. Isso explicava a nudez e o desconforto de suas casas, a aspereza espartana de suas vidas.” (pág. 301)




RUI BARBOSA X HERMES DA FONSECA

“Chiru e Saturnino entraram a discutir animadamente as eleições. Nos primeiros dias de março o Correio do Povo publicara alguns resultados parciais das cidades, que acusavam pequeno saldo de votos favorável a Rui Barbosa. Agora, porém, vinham de todo o País telegramas desanimadores para os civilistas: o Marechal estava vitorioso na maioria das urnas, e tudo indicava que o candidato oposicionista se encontrava irremediavelmente derrotado. Rui Barbosa lançara um manifesto, afirmando que as eleições haviam sido feitas sob pressão do governo, à sombra da fraude: os hermistas subtraíam as atas ou as falsificavam. A propalada neutralidade de Nilo Peçanha – clamava o candidato civilista – era como as saias postas em moda na França por Mme de Maintenon para esconder a barriga das mulheres grávidas.” (pág. 303)


O PENSAMENTO DA ELITE TACANHA SEGUE O MESMO UM SÉCULO DEPOIS

“- Mas que absurdo! – protestou Rodrigo – Para principiar: como por em prática esse individualismo aristocrático?
- Muito simples – replicou Rubim, com sua voz de flauta. Tomou um gole de champanha. – Nietzsche preconiza, e nisso estou plenamente de acordo com o Mestre, a formação do Estado militar.
- Tenente! – repreendeu-o Jairo, sorrindo.
- Estamos entre amigos, coronel. Mas, como dizia, só esse Estado militar é que poderá consolidar o domínio da casta superior, usando a força para organizar disciplinarmente todos os recursos sociais...
- Mas será uma ditadura insuportável! – atalhou-o Rodrigo. E tomou com fúria um largo gole de champanha, enchendo logo em seguida a taça com vinho branco.
- isso mesmo. Uma ditadura. E insuportável, sim, para as classes inferiores. Porque será preciso esmagar sempre todas as tentativas de insurreição das massas.”


(COMENTÁRIO: ler esse sujeito falando é o mesmo que ver em 2014 o que a elite e os tucanos pensam sobre governar para poucos e o tratamento do povo como caso de polícia)


SEGUE

“Don Pepe levantou-se, avançou para o tenente de artilharia e, erguendo a mão que segurava o copo, como se fosse atirar vinho na cara do militar, bradou:
- Pero no hay fuerza humana que pueda detener las masas!
Rubim limitou-se a lançar para o espanhol um rápido olhar neutro.
- O Brasil – continuou – é um país novo e informe, que só poderá ser governado mediante uma ditadura de ferro.
Jairo estava escandalizado.
- Tenente, o senhor está se excedendo!
Rubim sorriu e encheu o cálice de vinho.
- Coronel, estou apenas dizendo o que penso.
- Deus nos livre de ter o tenente um dia na presidência da República! – exclamou Rodrigo.
Olhou para Pepe, que começava já a dar seus passinhos para diante e para trás, e viu nos olhos do anarquista duas bombas prestes a explodir.
- Essa casta superior – prosseguiu Rubim, cruzando as pernas – não deverá de maneira nenhuma preocupar-se com a educação das classes populares. O cultivo das massas pode prejudicar os objetivos mais altos do Estado, isto é, a formação da aristocracia...” (pág. 304/305)


ARROGÂNCIA DE PARTE DA CLASSE MÉDICA VEM DE LONGE (FELIZMENTE HÁ EXCEÇÕES)

“Isso não vai lhe custar nada. A consulta é grátis. Os clientes balbuciavam agradecimentos e se iam. Rodrigo então abria as janelas para deixar entrar o ar fresco, lavava as mãos demoradamente com sabonete de Houbigant, tirava do bolso o lenço perfumado de Royal Cyclamen e agitava-o de leve junto do nariz. Concluía que o sacerdócio da medicina, visto através da arte e da literatura, era algo de belo, nobre e limpo. Na realidade, porém, impunha um tributo pesadíssimo à sensibilidade do sacerdote, principalmente ao seu olfato. Rodrigo comovia-se até as lágrimas diante da miséria descrita em livros ou representada em quadros; posto, porém, diante dum miserável de carne e osso – e em geral aquela pobre gente era mais osso que carne – ficava tomado dum misto de repugnância e impaciência. Achava impossível amar a chamada ‘humanidade sofredora’, pois ela era feia, triste e mal-cheirante. No entanto – refletia, quando ficava a sós no consultório com seus melhores pensamentos e intenções – teoricamente amava os pobres e, fosse como fosse, estava fazendo alguma coisa para minorar-lhes os sofrimentos. Não tens razão, meu caro Rubim. Podemos e devemos elevar o nível material e espiritual das massas. Tenho grande admiração por César, Cromwell, Napoleão, Bolívar; foram homens de prol, dotados de energia, coragem e audácia, figuras admiradas, respeitadas e temidas. Mas para mim, meu caro Cel. Jairo, é mais importante ser amado que respeitado e mesmo admirado. O tipo humano ideal, o supremo paradigma, seria uma combinação de Napoleão Bonaparte e Abraão Lincoln. O ditador perfeito, amigos, será o homem que tiver as mais altas qualidades do soldado corso combinadas com as do lenhador de Illinois. O diabo é que a bondade e a força são atributos que raramente ou nunca se encontram reunidos numa mesma e única pessoa. A menos que essa pessoa seja eu – acrescentou, um pouco por brincadeira e um pouco a sério.” (pág. 312)


MÉDICOS NÃO SABEM NADA: VÃO MAIS É NA APALPAÇÃO

(conversa entre o velho médico de Santa Fé e Rodrigo Cambará, o novo)

“- Já fez alguma burrada?
- Acho que sim.
- isso é do programa. Não se impressione. Acontece com todos. No final de contas os médicos não sabem nada. Nem os grandes do Rio de Janeiro nem os figurões da Europa. Todos vão mas é no palpite, na apalpação.
- Eu sei.
- E se a gente fosse pensar no que não sabe e nas doenças que não têm cura, acabava ficando louco. Tu pensas?
- Faço o possível pra não pensar.
- Olha, vou te dar um conselho. Não vás muito atrás de conversa de doentes. Eles falam demais. E quanto mais falam menos a gente entende o que é que estão sentindo.
- Já descobri isso.
- E mesmo quando não for caso de dar remédio, dê remédio, porque o paciente desconfia do doutor que não receita muita droga. E quando estiver diante dum caso complicado e ficar no escuro, receite uma dose pequena de citrato de magnésia. Não faz mal pra ninguém. É só pra ganhar tempo e estudar melhor o caso. Mas não digas nunca que não sabes. O doente pode perder a fé... e adeus, tia Chica!
- Muito obrigado pelos conselhos, doutor.” (pág. 317)


MELHOR QUE MÉDICO, SÓ AS BENZEDEIRAS

“- E não te iludas com a clientela. No fundo essa gente acredita mas é nessas negras velhas benzedeiras e nos curandeiros. E quando a gente não acerta logo com o remédio pros achaques deles, procuram logo o índio Taboca, que vem com as suas aguinhas milagrosas e suas benzeduras.
- Em caso de aperto – sorriu Rodrigo – o recurso então é pedir uma conferência médica com o Taboca.” (pág. 318)


O DESPEITO DO DOUTOR BRANCO EM RELAÇÃO AO CURANDEIRO E AO PEÃO

(após contar que o Taboca salvou um peão picado de cobra)

“Olhando para o peão, Rodrigo fez reflexões amargas. Taboca, um curandeiro índio, acabara de salvar a vida do negro Antero, que no Angico partilhara com ele, Dr. Rodrigo, o amor da chinoca Ondina. Era o desprestígio da raça branca, da cultura e da ciência! – concluiu, sorrindo e achando tudo aquilo muito estranho. Chers Messieurs Richet et Charcot, estais convidados a explicar os mistérios das milagrosas aguinhas do Taboca! Porque moi, eu desisto.” (pág. 319)


DIGESTÃO CULTURAL

Relendo esses trechos do capítulo Chantecler, do quarto volume de O Tempo e o Vento, fiquei impressionado com a atualidade dos debates e dos discursos ao relembrar o horror que estamos vivendo na atualidade em nosso país, após as eleições presidenciais de 2014. O mesmo ódio, a mesma arrogância de classe “superior” versus a “massa inculta” e coisas do gênero.

Que dizer então dos últimos trechos sobre a arrogância de alguns médicos brancos, filhos da elite, que ao exercer a profissão, chegam a ter nojo dos pobres “mal-cheirantes” como disse o nosso herói Dr. Rodrigo Cambará?

Nas primeiras citações que fiz, é destaque e fica claro que por dezenas de anos, a política e o Estado ficaram na mão das elites, que disputavam entre si, o domínio e os bens públicos, para total apropriação do público para uso privado pelas elites brancas seculares. Até que no século XXI de nossa era surge um metalúrgico, oriundo das classes populares, e vindo da região mais explorada do país, o Nordeste, e vence as eleições presidenciais e começa a mudar o país, a contragosto das elites dominantes desde sempre.

É isso.



As coisas estão aí. É só abrir os olhos e ver. E vendo, compreender o que está em jogo. Há que se ter lado, e o meu é o da classe trabalhadora, é contra as elites históricas que tratam o povo como gente inferior. Eu detesto essa tal “aristocracia”!

William

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