domingo, 19 de julho de 2015

"mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter" (Riobaldo Tatarana)



O caminho do nosso viver é como cada ramificação nas
coisas da natureza, como vemos nas árvores, nas artérias,
nos vales, nos relevos, na vida. Basta escolhermos bem o caminho.

Refeição Cultural

"Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da vida, fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O senhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto - inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em força para não esparramar raivas...

(Riobaldo Tatarana, em Grande Sertão: Veredas. Guimarães Rosa, 1956. Editora Nova Fronteira, edição


Muitas reflexões, muitas.

A obra Grande Sertão: Veredas é atemporal, universal, porque aborda os grandes dilemas e agruras da natureza humana. Amor e ódio. Amor proibido. Medo. Matar ou morrer. O homem e o viver em meio à natureza hostil, dura. As encruzilhadas, veredas, na vida de cada um de nós, e as decisões a serem tomadas o tempo todo em nossa existência; que pode ser breve, brevíssima; pode ser longa. Pode ser longa em tempo breve (o sofrer), ou breve em tempo longo.

O que é uma vida humana em relação ao tempo de nosso planeta, de nosso mundo próprio?

Nossa natureza arrogante insiste em afirmar o tempo todo que somos donos de nosso destino e tudo planejamos e prevemos. Toleima. Somos escolhidos e pegos o tempo todo, quando vimos, já era!

Este que vos fala, autor deste modesto blog, já antigo e obsoleto pro tempo curto das coisas com atualizações instantâneas de tudo, enfim, grande parte de minha vida de proletário ou subproletário foi vivida alimentada por sentimentos de raiva e ódio. Desde a mais tenra adolescência.

Como diz o sábio Zé Bebelo, as raivas e ódios todos que senti faziam com que os alvos de minhas raivas - pessoas, grupos sociais ou pessoas jurídicas e sistemas -, fossem governantes de minhas ideias e tivessem soberania de meus objetivos, e então, de meu destino.

Depois de uma parte de minha vida assim, a vida me pescou e me vi em outra função social, representando gente: classe trabalhadora. Passei mais de uma década com muita soberania de minhas ideias. Delas pensei ações para liderar os trabalhadores e as lutas. Mas sem ódio, só determinação nas ideias.

Em 2014, ano deveras tumultuado no meu ser, por breves instantes, muitas raivas senti. Elas dominaram minhas ideias algumas semanas. Com apoio de ombros amigos, voltei o foco pras tarefas a seguir.

Hoje estou com total soberania das ideias, muito foco no fazer. Ciente que as tarefas são duras. Ganhar ou perder. Mas não tenho raiva nenhuma dominando minhas ideias. Isso é muito bom.

Mas lá fora, no meu país, no meu mundo, nos meios onde transito, no meu espaço dos movimentos sociais, tem muito ódio e muitas raivas nos destruindo, destruindo nossos focos na luta de classe contra os verdadeiros inimigos. Destruindo nossos laços de família e de amigos e conhecidos.

É pena, é triste! Minha gente pode voltar a ter soberania nas ideias a qualquer instante, basta querer. Juro pra vocês que fiz isso em poucos dias em um único mês, tempos atrás. E estou de coração leve e dono de minhas ideias.

William Mendes

2 comentários:

Unknown disse...

Olá William,
Bom saber que a raiva não habita mais em vocé. Bom saber que está inteiro e soberano de suas idéias. A isso, a essa mudança pessoal que você descreveu, chamam amadurecer, experiência de vida. Sabedoria enfim. Parabéns pelo texto e pela referencia no grande Rosa. Espero que a sabedoria de suas próprias idéias sejam soberanas e possam iluminar sua luta diária no front da CASSI. Fraterno abraço,
Maurilio

William Mendes disse...

Olá Maurílio, como vai? Obrigado pelas fraternas palavras.

A jornada tem sido dura, mas a cabeça e o coração estão leves porque a nossa missão pela Caixa de Assistência é justa e é boa para um conjunto muito grande de pessoas, quase um milhão delas.

Preciso de cada um de vocês, de onde estiverem, para termos um olhar pela nossa Cassi e interferir em seu entorno falando de nosso modelo de saúde e das dificuldades que a entidade enfrenta por ser contra-hegemônica no "mercado" de saúde em que está inserida.

A missão da Cassi é ter condições de disponibilizar Estratégia de Saúde da Família (ESF) ao conjunto dos participantes e hoje estamos na capacidade instalada com menos de 1/3 das pessoas no modelo. Já o mercado ganha e tem lucro com a pessoas estando doentes e procurando o mercado depois do ocorrido. Somos contra-hegemõnicos no sistema de saúde.

Abraços,