domingo, 11 de fevereiro de 2018

Leitura: Nada de novo no front (1929) - Erich Maria Remarque



Refeição Cultural

"Dois homens morrem de tétano. A pele fica lívida, os membros enrijecem e, por fim, só os olhos teimam em viver. Muitos têm o membro atingido suspenso no ar por uma espécie de roldana; embaixo, colocam uma bacia, para onde escorre o pus. De duas em duas, ou três em três horas, eles esvaziam-na. Outros ficam em tração, com pesados sacos de areia que pendem da cama. Vejo ferimentos nos intestinos, que estão constantemente cheios de fezes. O auxiliar do médico mostra-me radiografias com ossos do quadril, joelhos e ombros totalmente esmagados.

Não se consegue compreender como, em corpos tão dilacerados, ainda há rostos de seres humanos, em que a evolução da vida prossegue normalmente. E, contudo, isto aqui é um único hospital, uma única enfermaria. Na Alemanha, há cem mil, cem mil na França, cem mil na Rússia. Como é inútil tudo quanto já foi escrito, feito e pensado, mentiras e insignificâncias, quando a cultura de milhares de anos não conseguiu impedir que se derramassem esses rios de sangue, e que existam aos milhares estas prisões, onde se sofrem tantas dores. Só o hospital mostra realmente o que é a guerra.

Sou jovem, tenho vinte anos, mas na vida conheço apenas o desespero, o medo, e a mais insana superficialidade que se estende sobre um abismo de sofrimento. Vejo como os povos são insuflados uns contra os outros, e como se matam em silêncio, ignorantes, tolos, submissos e inocentes. Vejo que os cérebros mais inteligentes do mundo inventam armas e palavras para que tudo isto se faça com mais requintes e maior duração. E, como eu, todos os homens da minha idade, tanto deste quanto do outro lado, no mundo inteiro, veem isto; toda a minha geração sofre comigo. Que fariam nossos pais se um dia nós nos levantássemos e nos apresentássemos a eles, para exigir que nos prestassem contas? Que esperam de nós, se algum dia a guerra terminar? Durante todos estes anos, nossa única preocupação foi matar. Nossa primeira profissão na vida. Nosso conhecimento da vida limita-se à morte. Que se pode fazer, depois disto? Que será de nós?"

(Nada de novo no front, Erich M. Remarque, 1929)


Reflexões como essa do jovem personagem Paul Bäumer, personagem inspirado nos jovens dilacerados na realidade bárbara dos campos de batalha da 1ª Guerra Mundial, são as reflexões que têm permeado meus pensamentos já faz algum tempo, principalmente depois que se desenhou a estratégia vitoriosa da direita capitalista de desestabilização dos governos democrático-populares da América do Sul dos anos 2010 adiante, incluindo o gigante Brasil, que sucumbiu a Golpe de Estado em 2016 e que vai se desfazendo enquanto país soberano nas mãos de uns quinhentos humanos lesas-pátrias (e os 200 milhões de cidadãos não fazem nada contra eles!)

Com a nova etapa de crise do sistema capitalista, com um marco importante a partir das consequências do crash das bolsas no evento subprime em 2008, e somando a secular questão da disputa de hegemonia e domínio da produção e distribuição de petróleo no mundo, tenho a impressão que não passaremos sem algum tipo de conflito armado de escala mundial ainda na primeira metade do século 21.

Um século atrás, homens de Estado (os "impérios") definiam as guerras, definiam as fronteiras, organizavam e distribuíam as colônias e humanos de exploração no tabuleiro mundial e colocavam seus jovens filhos, os proletários e os despossuídos nos fronts de batalha.

Um século depois, pátria e países são questões secundárias. Homens e suas corporações definem as guerras, o destino do mundo; definem os orçamentos públicos; definem as fronteiras, regiões e humanos a serem explorados no tabuleiro mundial. Patrocinam mercenários de ternos e camisas de marca nos espaços da burocracia estatal para darem canetadas com efeitos de bombas na vida de milhões de cidadãos civis.

O mundo pertence a algumas corporações da indústria armamentista, farmacêutica e de ciências, de tecnologia, do entretenimento, das comunicações. Além dos bancos e banqueiros, Google, Microsoft, Facebook, Aple, Amazon e mais algumas corporações detêm as ações mais valiosas da história.

Em um mundo de mais de 7 bilhões de humanos, poucas corporações e seus donos, acionistas, CEOs ou seja lá que nome que adotem têm o poder de decidir sobre a vida e a morte (por miséria) do conjunto da população global e decidem sobre destruir mais rápido ou não o único planeta habitável para nossa espécie e milhões de outras.

Que chato ficar repetindo isso! É provável que os leitores digam que sabem disso. Então, pra que gastar tempo escrevendo isso, se dá tanto trabalho produzir um texto reflexivo sobre essas questões? Gasto tempo nisso porque se eu desistir de alertar e levar minhas reflexões para uns poucos que consiga acessar, a vida não terá sentido. Se não houver esperança e resistência na luta por um mundo melhor para todos, não valerá a pena viver. Mas, desistir não é uma opção!

Tenho atualmente pouquíssimo tempo livre para estudos e reflexões sobre os temas políticos que definem o mundo, o nosso mundo da classe trabalhadora. Consumo meu tempo integral na defesa dos direitos em saúde dos trabalhadores associados à entidade de autogestão em que atuo como representante eleito. Não deixa de ser um fragmento da luta maior da classe trabalhadora, mas meu front é esse e envolve quase um milhão de vidas humanas.

VOLTANDO AO LIVRO de Remarque que nos coloca no meio das trincheiras, lama, sangue, ratos, bombas, gás mortal, hospitais com gente dilacerada pela guerra, eu recomendo a leitura porque esse cenário não é uma estória da carochinha. A crise que o mundo enfrenta por causa de poucos donos do mundo que decidem sobre a vida de bilhões, e em benefício de alguns milhares deles, é uma crise que pode nos levar a guerras mais sangrentas que as já conhecidas na história.

A crise em que os golpistas colocaram o Brasil tem efeitos semelhantes à clássica abertura da Caixa de Pandora. Todos os males e demônios foram soltos e não se volta para a situação anterior com um aperto de botão. Eu não acredito que haverá solução institucional e democrática em 2018. Não há mais democracia no país, e as instituições da República fizeram e fazem parte do golpe de uma casta contra o povo todo. Por mais que haja gente correta e decente nos aparelhos do Estado, um conceito de casta/corporação tomou conta deles. Me parece que são eles contra o povo, e estão fazendo chacota do povo, por não verem reação alguma à altura.

Termino citando um trecho de excelente artigo de Maria da Conceição Tavares, no site Carta Maior, pois felizmente ainda temos fonte de qualidade para dar subsídios aos militantes por um mundo justo e solidário e que não concordam com o que está aí:

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"O Estado sempre foi a nobreza do capital intelectual, da qualidade técnica, da capacidade de formular políticas públicas transformadoras. O que se fez no Brasil é assustador, uma calamidade. É necessário um profundo plano de reorganização do Estado até para que se possa fazer políticas sociais mais agudas. Chegamos, a meu ver, a um ponto de bifurcação da história: ou temos um movimento reformista ou uma revolução. A primeira via me soa mais eficiente e menos traumática. Ainda assim, reconheço, precisaremos de doses cavalares do medicamento para enfrentarmos tão grave enfermidade. Os sintomas são de barbárie. Parece um fim de século, embora estejamos no raiar de um. Em uma comparação ligeira, lembra o começo do século XX. Os fatos levaram às duas Guerras Mundiais. Aliás, a guerra, ainda que indesejável, é uma maneira de sair do impasse..."

(Restaurar o Estado é preciso, ler artigo AQUI). O destaque sublinhado é meu.

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O que falta ainda para os jovens, que têm a energia vital em suas veias, e o povo trabalhador e simples, lesado pelo Golpe, acordarem para o fato que uns poucos humanos estão em alguns postos chaves do Estado nacional destruindo o passado, o presente e o futuro do Brasil?

Neste momento, passados quase dois anos de domínio dos golpistas, não vejo "nada de novo no front". Mas alimento a esperança de ver uma reação popular logo ali, na próxima batalha. E que não demore dezenas de anos, porque acho que não vai sobrar nada do país.

Abraços aos valoros@s leitores que conseguimos acessar, enquanto os donos das ferramentas de estabelecimento de ideologias das classes dominantes acessam milhões de leitores em suas plataformas de comunicação de massa.

William

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