domingo, 12 de agosto de 2018

Romaria de Uberlândia a Água Suja (MG) - Reflexões



Igreja N. Sra. da Abadia. Foto: William Mendes.

Refeição Cultural

Todos os anos, a região do Triângulo Mineiro vivencia entre julho e agosto uma festa popular e religiosa que envolve milhares de pessoas e que tem seu ápice no dia 15 de agosto, dia da festa de Nossa Senhora da Abadia, no pequeno município de Romaria, também conhecido pelas pessoas da região como Água Suja.

Participar desta festa religiosa é uma experiência ímpar, seja como romeiro (independente da religião que se tenha ou não), seja ajudando os romeiros dando assistência ao longo de dezenas de quilômetros, dependendo de onde a pessoa saiu. Uma das questões que mais intrigam qualquer observador atento é como uma pessoa consegue percorrer distâncias absurdas à pé, não apresentando preparação física adequada.

Mesmo para o romeiro experiente, é possível afirmar que a caminhada de um ano nunca é igual à experiência do ano anterior. Nunca. Eu fiz minha primeira caminhada quando tinha uns 16 anos de idade, lá nos anos oitenta, quando morava em Uberlândia. Em 2018 fiz a caminhada aos 49 anos e confirmo o que disse: nunca é a mesma coisa.

Às vezes, chego a pensar que a tradição da Romaria na região do Triângulo Mineiro pode acabar algum dia, por diversos fatores como, por exemplo, questões econômicas e comerciais, ou mesmo políticas. Mas logo em seguida, ao participar da festa, vejo que ela segue firme e forte, independente das dificuldades para sua manutenção. Bastou ver o acostamento lotado de romeiros no sábado pela manhã, quando eu voltava de minha caminhada, para perceber que a tradição vai longe.

Neste ano, peguei a estrada na sexta-feira, saindo do Trevo de Uberlândia para Araxá, e caminhei cerca de 75 Km. Contei com a assistência de meu cunhado ao longo da jornada, e posso afirmar que ser acompanhado por alguém dando apoio faz uma diferença enorme, facilita bastante a vida do romeiro. Até porque o caminhante pode se dar ao "luxo" de não levar todos os apetrechos do romeiro na mochila nas costas.

Para a ampla maioria das pessoas que saem de suas casas para irem à pé até a cidade de Romaria os apoios ficam por conta de barracas de ajuda aos romeiros, montadas ao longo da estrada na BR 365. A mais conhecida e frequente todos os anos é a barraca da Antena, distante 47 Km do Trevo de Uberlândia para Araxá. Outras barracas também prestam apoios importantes aos romeiros, como a barraca Betânia, próxima ao Rio Araguari. Nada como chegar a uma barraca e tomar uma sopa ou comer um pãozinho com café e frutas.


Um homem na estrada, ipê amarelo
e o pensamento no filho amado.

Leituras

Ser romeiro ou fazer a romaria pode suscitar as mais diversas leituras, tanto dos próprios caminhantes quanto de seus amigos e conhecidos. O ato de caminhar dezenas de quilômetros é algo extraordinário, independente dos motivos pessoais para tal feito.

Se o caminhante pertence a uma comunidade ou região que não tem o hábito de caminhadas como essa, o romeiro pode ser considerado uma pessoa ousada, louca, forte, fraca das ideias etc. Se o romeiro é da própria região onde a tradição existe, ele é só mais um na estrada, simples assim.

Todos os anos, eu fico estupefato, intrigado, admirado com a grandeza das pessoas que fazem a caminhada. É um verdadeiro exercício de humildade para mim, saber o quanto a caminhada é difícil e ver que, mesmo assim, milhares de pessoas em condições menos favoráveis que a minha completam e chegam à cidade e à igreja. É impressionante!

Neste ano, cheguei a Uberlândia com dores no quadril e na perna esquerda, dores que estão me incomodando há semanas. Receei até não conseguir fazer a caminhada. Porém, peguei a estrada e fui caminhando, caminhando, fiz os 15 Km até o Rio Araguari, depois a subidona de 10 Km após o rio, e fui dialogando com meu corpo até a Antena, quase 50 Km depois. Cheguei lá por volta de 23h e estava bem. Tomei a sopa e nem parei para cochilar um pouco, segui direto.

Tem ano que os pés dão bolhas, tem ano que não. Isso porque eu sei preparar meus pés com proteções de esparadrapos. Neste ano, já cheguei à Antena sentindo bolhas nos dois calcanhares. Paciência! Da barraca da Antena até o destino final são mais quase 30 Km. Para cada caminhante, a experiência da caminhada dá o tom. Para uns, chegar à Antena é ânimo para continuar, para outros é o ponto final, por não dar mais.

Da Antena adiante, no meu caso, é que a caminhada tem se tornado difícil nos últimos anos. O corpo cansado passa a dificultar a etapa final. Neste ano, fez um frio incomum na estrada durante a madrugada. Depois das duas horas da manhã, fez cerca de 7 graus, segundo a meteorologia. Se eu não tivesse pego uma blusa a mais, emprestada de meu cunhado, eu estava lascado.

Não tive sono na madrugada. A semana de lua minguante mudando para lua nova no dia da caminhada significa breu total na estrada sem lua. Mas o céu estrelado é impressionante. Magnífico! Zilhões de estrelas até o alvorecer. Ao percorrer a etapa final, fora da estrada, na parte de terra e mato, cerca de 8 Km, os campos congelados foram uma novidade neste ano. Não tem mais o Atalho entre os eucaliptos. Ele foi fechado pelo novo dono.

Cheguei à cidade às 8h da manhã. Mais um ano, mais uma caminhada. Junto comigo, foram chegando dezenas de romeiros. Idosos, jovens, homens, mulheres, corpos que nos fazem duvidar que aquelas pessoas poderiam caminhar dezenas de quilômetros. Caminharam. Isso nos dá uma humildade tremenda. Fui só mais um na multidão. Mas cada um de nós é único! O ser humano é incrível!

Todos os romeiros foram e são incríveis. Os que chegam caminhando, pedalando; os que não chegam caminhando porque o corpo não permitiu; os que dão assistência e apoio. Todos compõem a mesma tradição, o mesmo rito. Cada um no seu tempo e na sua possibilidade. Todos na mesma tradição da Romaria.

Ano que vem tem mais.

William Mendes
Romaria 2018

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