domingo, 24 de fevereiro de 2019

O Capital, de Marx, apresentado por Engels




Refeição Cultural

"'O que fazer com os desempregados?' Enquanto se avoluma, a cada ano, o número deles, não há ninguém para responder a essa pergunta; e quase podemos prever o momento em que os desempregados perderão a paciência e encarregar-se-ão de decidir seu destino, com suas próprias forças'." (Engels, no prefácio à edição inglesa de O Capital, 1886)


Os prefácios e posfácios das edições de O Capital (publicado em 1867), nas palavras de Karl Marx enquanto estava vivo, e depois de sua morte nas apresentações de Friedrich Engels, nos dizem muita coisa a respeito do próprio filósofo e autor e da obra que o leitor vai ler e estudar.

Marx justifica na 1ª edição de O Capital um grande intervalo entre a obra anterior e esta, que diz ser continuação daquela, por ter sido acometido por enfermidade por um longo período.

"Entrego hoje ao público o primeiro volume da obra que continua meu livro 'Contribuição à crítica da economia política', editado em 1859. Houve este grande intervalo entre as duas publicações em virtude de enfermidade que me acometeu durante muitos anos, interrompendo frequentemente meu trabalho." (Prefácio à 1ª edição em 1867)

Temos aqui um estudioso obstinado da história das sociedades e dos sistemas econômicos e de produção humana, mas um ser de carne e osso. Como um leitor que vai encarar a leitura desta obra que influenciou a história humana, eu não encaro Marx como um deus, um mito, alguém acima de qualquer suspeita. Pretendo fazer uma leitura como leitor crítico.

Depois da publicação em alemão - uma edição em 1867 e outra em 1873 -, Marx edita a obra em francês, e diz no prefácio de 1872 que a fará em fascículos, respondendo a um cidadão: "Concordo com sua ideia de publicar a tradução de O Capital por fascículos. Desta forma, a obra será mais acessível à classe trabalhadora, e para mim importa mais este motivo que qualquer outro". 

E no posfácio da edição francesa diz que fez acréscimos importantes na revisão da tradução. Vale dizer que Marx e Engels têm muita preocupação com a manutenção dos conceitos desenvolvidos nos estudos da economia política por causa das dificuldades de tradução dos conceitos em alemão para outras línguas: "Deste modo, esta edição francesa, quaisquer que sejam seus defeitos literários, possui valor científico próprio, independente do original, e interessa mesmo aos leitores que dominam a língua alemã." (Posfácio da edição francesa, 28 de abril de 1875)

Na 3ª edição alemã, em 1883, uma década depois da 2ª edição, Engels anuncia a morte de Marx e fala a respeito da obra: "Marx não logrou a satisfação de preparar, para ser impressa, esta terceira edição. O estupendo pensador, diante de cuja grandeza até os adversários agora se inclinam, morreu no dia 14 de março de 1883".

PREFÁCIO DA EDIÇÃO INGLESA

Engels inicia o prefácio justificando a demora em sair uma versão da obra O Capital em inglês, lembrando que a primeira edição em alemão é de 1867 e a edição inglesa só aparece em novembro de 1886, quase vinte anos depois. As questões de tradução imperam, novamente. Foram necessários mais de um tradutor para o inglês e coube a Engels a responsabilidade de alinhavar tudo.

Conceitos novos na ciência econômica: "Persiste uma dificuldade, e dela não podemos livrar o leitor: o emprego de certas expressões em sentido diferente do usual na vida quotidiana e do consagrado no domínio da economia política. Isto era inevitável. Cada concepção nova de uma ciência acarreta uma revolução nos termos especializados dessa ciência".

A questão da mais-valia não existia dentro da lógica da economia política:

-------------------------------
"Assim, a economia política clássica - embora tivesse consciência plena de o lucro e a renda serem apenas subdivisões, frações da parte não paga, saída do produto que o trabalhador tem de fornecer ao patrão (o primeiro que dela se apropria, ainda que não seja seu último e exclusivo dono) -, apesar disso, nunca chegou a ultrapassar as ideias usuais de lucro e renda, nunca examinou esta parte não paga do produto (chamada, por Marx, de mais-valia), em seu conjunto, como um todo, e, por isso, nunca atingiu uma compreensão clara, nem de sua origem e natureza, nem das leis que regem a posterior distribuição de seu valor."
--------------------------------

MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA: "ESTÁGIO TRANSITÓRIO"

Outro conceito importante que Engels destaca no prefácio à edição inglesa é que a obra O Capital entende o modo de produção capitalista como mais uma etapa da história econômica da humanidade e não o modo de produção final, definitivo das sociedades humanas.

"Uma teoria que considera a moderna produção capitalista mero estágio transitório da história econômica da humanidade tem, naturalmente, de utilizar expressões diferentes daquelas empregadas por autores que encaram esse modo de produção como imperecível e final."

A NECESSIDADE DE SEMPRE AUMENTAR A PRODUÇÃO E CONSEGUIR MAIS MERCADOS CONSUMIDORES

"(...) O funcionamento do sistema industrial da Inglaterra - impossível sem permanente e rápida expansão da produção e, portanto, dos mercados - está emperrado (...) Enquanto a produtividade cresce em progressão geométrica, a expansão dos mercados, na melhor das hipóteses, se realiza numa progressão aritmética..."

E então, Engels faz a pergunta que é mais atual que nunca, apesar de ter sido feita em 1886, há 133 anos: "O que fazer com os desempregados?"

-------------------------------

Amig@s leitores e leitoras, neste momento da história humana, vamos tentar ler O Capital com parcimônia, com olhar crítico, e sobretudo, atento à necessidade de entender porque as coisas estão como estão nesta quadra da história da humanidade.

Abraços e se gostarem das postagens e dos comentários de minha leitura, compartilhem com aquel@s que tiverem a mesma curiosidade e necessidade de compreensão de nossa realidade.

William
Um leitor


Post Scriptum:

Já fiz duas postagens sobre os prefácios feitos pelo próprio Marx nas edições alemãs. Ler AQUI sobre a 1ª edição e AQUI sobre a 2ª edição.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Diz Marx sobre O Capital na 2a edição de 1873




Refeição Cultural

"Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento - que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de ideia - é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado." (Prefácio à 2ª edição de O Capital, em janeiro de 1873)


No primeiro prefácio a "O Capital", em 1867, Marx afirma o objetivo capital de sua obra - "descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna". Neste prefácio de 1873, ele avalia as repercussões de sua obra e fala um pouco sobre seus métodos de pesquisa e trabalho, bem como a reorganização de partes da obra.

"A melhor recompensa para o meu trabalho é a compreensão que O Capital rapidamente encontrou em amplos círculos da classe trabalhadora alemã", diz Marx.

Diz que inexiste na Alemanha estudos sobre economia política, que o tema é estrangeiro e que só a partir da segunda metade do século XIX vai haver no país o modo de produção capitalista e a consequente formação da sociedade burguesa.

"Faltava, portanto, o material vivo da economia política. Ela foi importada da Inglaterra e da França como produto acabado; seus professores alemães não passavam de discípulos".

A LUTA DE CLASSES

"Quando o modo de produção capitalista atingiu a maturidade na Alemanha, já tinha rumorosamente revelado antes, na França e na Inglaterra, através de lutas históricas, seu caráter antagônico, e o proletariado alemão já possuía uma consciência de classe mais pronunciada que a burguesia alemã...".

O proletariado, segundo Marx: "a classe cuja missão histórica é derrubar o modo de produção capitalista e abolir, finalmente, todas as classes".

------------------------------
"A exposição, excetuadas algumas partes demasiadamente especializadas, distingue-se por estar ao alcance de todas as inteligências, pela clareza e, apesar da altitude científica da matéria, pela vivacidade acima do comum" (sobre O Capital. In: Jornal de São Petersburgo, 20/4/1872)
------------------------------

REPERCUSSÕES DE 'O CAPITAL'

A obra de Marx obteve avaliações positivas. Sieber diz que ao invés de "metafísico" o método de Marx é "dedutivo". Block afirma ser o método "analítico". Marx seria "realista" e não "idealista", segundo artigo no periódico de São Petersburgo "Mensageiro europeu".

Marx cita neste prefácio de 1873 trecho do próprio periódico que faz referência a sua obra para dizer que seu método tem "fundamento materialista":

"(...) todo o esforço de Marx visa demonstrar, através de escrupulosa investigação científica, a necessidade de determinadas ordens de relações sociais e, tanto quanto possível, verificar, de maneira irrepreensível, os fatos que lhes servem de base e de ponto de partida...".

E segue o artigo do periódico russo:

"Marx observa o movimento social como um processo histórico-natural, governado por leis independentes da vontade, da consciência e das intenções dos seres humanos, e que, ao contrário, determinam a vontade, a consciência e as intenções...".

O artigo diz que para Marx são os fatos que importam, mais que as ideias: "O que lhe pode servir de ponto de partida, portanto, não é a ideia, mas, exclusivamente, o fenômeno externo. A inquirição crítica limitar-se-á a comparar, a confrontar um fato, não com uma ideia, mas com outro fato".

AS LEIS ECONÔMICAS NÃO SÃO SEMPRE AS MESMAS

Segue o artigo sobre Marx e O Capital: "(...) É isto que Marx contesta. Não existem, segundo ele, essas leis abstratas. Ao contrário, cada período histórico, na sua opinião, possui suas próprias leis. Outras leis começam a reger a vida quando ela passa de um estágio para outro, depois de ter vencido determinada etapa do desenvolvimento..."

A pesquisa de Marx: "(...) esclarece as leis especiais que regem o nascimento, a existência, o desenvolvimento, a morte de determinado organismo social, e sua substituição por outro de mais alto nível. E esse é o mérito do livro de Marx", finaliza o artigo do periódico russo em 1872.

O MÉTODO DIALÉTICO

Marx explica seu método: "Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento - que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de ideia - é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado".

O filósofo termina o prefácio alertando para a diferença da "dialética mistificada" de Hegel em relação a sua forma racional, que "causa escândalo e horror à burguesia e aos porta-vozes de sua doutrina, porque sua concepção do existente, afirmando-o, encerra, ao mesmo tempo, o reconhecimento da negação e da necessária destruição dele; porque apreende, de acordo com seu caráter transitório, as formas em que se configura o devir; porque, enfim, por nada se deixa impor; e é, na sua essência, crítica e revolucionária".


Concluindo a leitura do prefácio à 2ª edição de "O Capital", ainda em 1873, é possível perceber o quanto se aprende e apreende só com a leitura atenta nas palavras do próprio Marx.

É isso. Abraços aos leitores amig@s!

William
Um leitor

Post Scriptum: 

Sobre o prefácio à 1ª edição, de 1867, ler AQUI.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Releitura: O último leitor (2005) - Ricardo Piglia




Refeição Cultural

"Um território devastado no qual alguém reconstrói o mundo perdido a partir da leitura de um livro. Melhor seria dizer: a crença no que está escrito num livro permite manter e reconstruir o real perdido..." (Piglia, na página 145 de O último leitor)


Li este livro do professor e escritor argentino Ricardo Piglia em 2008. É um livro de reflexões sobre leitores e leituras. Sobre atos de leituras. O autor faleceu no início de 2017 aos 75 anos de idade.

Ao reler dias atrás uma postagem minha sobre um conto de Piglia - "A ilha" -, texto contido em seu livro "Cuentos Morales" (1995), acabei pegando em minha estante "O último leitor" (2005), livro muito reflexivo.

Nesta obra, Piglia nos leva a pensar sobre o mundo dos escritores e, consequentemente, nos leva ao mundo dos leitores, que complementam e dão sentido à produção literária, que nada seria sem o leitor.

Piglia aborda os atos de leitura de nada mais nada menos Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Ernesto Che Guevara, James Joyce, Liev Tolstói, dentre outros. Cada capítulo é uma viagem de conhecimento para nós leitores.

Não vou falar sobre cada um dos capítulos do livro, pois a intenção da postagem é despertar nos leitores do blog o interesse nas reflexões que Piglia registrou naquele que ele afirma ser seu livro mais pessoal, como leitor, inclusive.

Neste leitor que vos fala, a releitura do livro uma década depois da primeira leitura reacendeu algumas preocupações e sentimentos que trago comigo desde o fim da adolescência: meu tempo está passando e sigo sem ter lido grandes clássicos da literatura mundial. É desesperadora a tomada de consciência disso.

Quando Piglia aborda James Joyce, fico leve e transito bem pelo capítulo, afinal li "Ulisses" (1922) e "Dublinenses" (1914). Por outro lado, quando Piglia fala de Borges e de Raymond Chandler, me sinto mal, porque não conheço suas obras. 

Dois livros centrais nos ensaios de Piglia e de quase toda crítica literária que conhecemos, eu nunca acabei de ler, porque sabemos o final e isso dificulta muito a minha leitura de algum clássico: "Madame Bovary" (1857), de Flaubert, e "Anna Kariênina" (1877), de Tolstói. É um absurdo eu não ter terminado a leitura, mas não terminei.

Me lembro da birra que tive para terminar a leitura do clássico de Guimarães Rosa - "Grande Sertão: veredas" (1956) - porque quando adolescente tive acesso ao segredo de Reinaldo (Diadorim), segredo que o autor esconde dos leitores até as últimas páginas do relato do jagunço Riobaldo Tatarana.

Vejam abaixo um exemplo das questões abordadas por Piglia num dos capítulos do livro:

ANNA KARIÊNINA E TOLSTÓI

No capítulo "O lampião de Anna Kariênina", Piglia faz uma bela análise e reflexão sobre a leitura de literatura dentro da própria literatura. Grandes personagens da história literária nos são apresentadas como leitoras nos enredos de romances.

A personagem Anna lê romances ingleses no livro de Tolstói, publicado em 1877. Da mesma forma Emma Bovary é leitora de romances no clássico "Madame Bovary", de Flaubert, publicado em 1857. Piglia não faz referência a autores brasileiros, mas quem nunca leu em Machado de Assis ou José de Alencar personagens femininas que são leitoras incansáveis de romances?

Outra característica deste capítulo é pontuar a importância da luz e da forma de iluminação possível para os leitores de romances nos séculos passados - velas, lampiões, lamparinas, luzes fugazes em geral. Legal a ideia de uma luz que ilumina o romance assim como uma história de ficção que pode iluminar a nossa vida.

Neste sentido de busca existencial, Piglia cita Sartre, que diz: "Por que se leem romances? Falta alguma coisa na vida da pessoa que lê, e é isso que ela procura no livro. O sentido, evidentemente, é o sentido de sua vida, dessa vida que para todo mundo é torta, mal vivida, explorada, alienada, enganada, mistificada, mas acerca da qual, ao mesmo tempo, aquele que a vive sabe muito bem que poderia ser outra coisa.".

Não precisamos generalizar a tese de Sartre, pois muitos leitores leem por distração e simples prazer na leitura, mas que parte dos leitores leem com um sentido muito mais profundo, isso é fato.

Outro ponto muito atual sobre leitoras de romances é a questão que Piglia nos traz sobre como eram vistas as mulheres leitoras durante muito tempo e que reflete sobre o papel e o lugar das mulheres na sociedade machista: 

"De alguma maneira, a feminização do leitor de romances confirma os preconceitos dominantes sobre o papel da mulher e da inteligência feminina. Os romances eram considerados adequados para as mulheres, vistas como criaturas de capacidade intelectual limitada, imaginativas, frívolas e emotivas. Os romances, circunscritos ao reino da imaginação, eram o oposto da leitura prática e instrutiva.".

É mole! Que sacanagem a sociedade machista passar séculos tratando as mulheres dessa forma.

POR FIM

O livro "O último leitor" é um livro de leitura para sempre, ou seja, para a vida inteira para aquele ou aquela que o tem na estante.

É inevitável ler um capítulo sobre Kafka e querer ler ou reler tudo que você tem dele e ir atrás do que falta das obras publicadas por ele ou postumamente.

É impossível não ficar martirizado com o peso na consciência de leitor por não ter lido clássicos como "Robinson Crusoé" (1719), de Daniel Defoe, ou "As viagens de Gulliver" (1726), de Jonathan Swift, ou ainda "Moby Dick" (1851), de Herman Melville. Sim, amig@s, eu ainda não li estes três livros!

Percebem como é difícil pegar para ler um livro de economia, história e política, como li recentemente "A desordem mundial" (2016), de Luiz Alberto Moniz Bandeira, um catatau de 600 páginas (ler sobre AQUI), e não ficar com certo remorso caso a maioria dos livros que eu optar por ler não sejam os clássicos que me faltam? Posso morrer sem ter lido grandes feitos literários da humanidade.

Enfim, sigamos adiante com as leituras, com os atos de leitura e como últimos leitores que estão sempre em busca das descobertas e, quem sabe, das respostas para as perguntas que temos ou que não sabemos que temos, apesar de elas estarem em nós.

William


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Palavras de Marx no prefácio a O Capital, em 1867





Refeição Cultural

"Nesta obra, o que tenho de pesquisar é o modo de produção capitalista e as correspondentes relações de produção e de circulação".

Marx afirma ser mais fácil analisar processos químicos, físicos e biológicos do que processos econômicos, pois aqueles se verificam com microscópios, reagentes químicos e demais meios científicos, estes precisam da capacidade de abstração humana.

"Porque é mais fácil estudar o organismo, como um todo, do que suas células. Além disso, na análise das formas econômicas, não se pode utilizar nem microscópio nem reagentes químicos. A capacidade de abstração substitui esses meios". 

Então Marx nos apresenta a célula "mercadoria":

"A célula econômica da sociedade burguesa é a forma mercadoria, que reveste o produto do trabalho, ou a forma de valor assumida pela mercadoria".

Os estudos de Marx terão por base o modo de produção capitalista inglês e ele faz um alerta aos alemães em relação a isso, dizendo que se eles acham que seus trabalhadores estão melhores que os trabalhadores ingleses, estão enganados, porque no modelo inglês daquele momento (1867), há minimamente o contrapeso das leis fabris, com algum tipo de fiscalização das péssimas condições de trabalho.

"Estremeceríamos diante de nossa própria situação, se nossos governos e parlamentos, como ocorre na Inglaterra, constituíssem comissões de inquérito periódicas sobre as condições econômicas, dando-lhes plenos poderes para apurar a verdade, e se se conseguissem, para esse fim, homens competentes, imparciais, rigorosos, como os inspetores de fábrica da Inglaterra, seus médicos informantes sobre saúde pública, seus comissários incumbidos de investigar a exploração das mulheres e das crianças, as condições de habitação e de alimentação etc".

O filósofo e estudioso Marx escreve isso em 1867 e no Brasil de 2019 o governo do momento extingue o Ministério do Trabalho, os direitos mínimos dos trabalhadores são extintos ou reduzidos e, o que impressiona, vem coisa pior na pauta do Estado brasileiro - a extinção da previdência social. Além, é claro, do ataque aos movimentos sindicais e populares que, historicamente, organizam e mobilizam a classe trabalhadora para resistir aos excessos da super exploração daqueles que vendem sua força de trabalho para sobreviver.

O objetivo da obra "O Capital" segundo seu autor é: "(...) o objetivo final desta obra é descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna...".

Por fim, é muito interessante a crítica que Marx faz às instituições religiosas de sua época, dizendo que elas pegam leve ou fazem vistas grossas com os mais diversos pecados e desrespeitos aos seus mandamentos e dogmas, contanto que não se mexa na propriedade privada (delas, inclusive) e na renda das igrejas. 

"(..) A Igreja Anglicana, por exemplo, prefere absolver uma investida contra 38 dos seus 39 artigos de fé a perdoar um ataque contra 1/39 de suas rendas. Hoje em dia, o próprio ateísmo não passa de um pecadilho, em confronto com a blasfêmia de criticar as relações consagradas de propriedade...".

Alguma semelhança com as discussões e questões colocadas em 2019 em relação às igrejas evangélicas, católicas etc, consideradas por muitos como empresas e não igrejas?

Muito interessante ler o prefácio a "O Capital", lançado em 1867, na Inglaterra, berço do capitalismo do século XIX.

William
Um leitor

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Leitura: Um artista da fome, seguido de Na colônia penal (1924) - Franz Kafka





Refeição Cultural - Mundo kafkiano

"Esta é a situação. O capitão me procurou há menos de uma hora, tomei o depoimento dele e no instante seguinte lavrei a sentença. Tudo foi muito simples. Se eu o tivesse chamado para um interrogatório, só haveria confusão..." (Na colônia penal, 1919)


Ao ler sobre leitores e leituras, e atos de leitores, e atos de leituras, e consequentemente, atos de escritores leitores, cheguei a este pequeno livro de Franz Kafka, dado de presente a mim por minha esposa já faz alguns anos.

Estava lendo a respeito de leitores no livro do escritor argentino Ricardo Piglia - O último leitor (2005) - livro no qual ele dedica capítulos de reflexão a escritores e livros clássicos. Um dos capítulos é sobre Kafka - "Uma narrativa sobre Kafka" - e ao ler o ensaio de Piglia aprendemos tanto sobre o escritor tcheco que o desejo é sair lendo e relendo tudo o que temos dele ou sobre ele.

Do escritor já li duas obras - "O processo" e "A metamorfose" -, esta publicada em vida e aquela após sua morte precoce por tuberculose em 1924. Fuçando em minha estante, encontrei edições de outras obras de Kafka, ainda por serem lidas: "O castelo", "América" e esta coletânea com 4 contos "Um artista da fome", junto com "Na colônia penal".

Fiz uma postagem sobre minha 3ª leitura do livro "A metamorfose", realizada em março de 2016. Aos interessados é só clicar AQUI. Sobre o livro "O processo", que peguei para reler em 2015, fiz postagens naquele ano, associadas ao que estava acontecendo no Brasil, mas não terminei a releitura ainda.

Amig@s, como é interessante ler a respeito do autor e de seu contexto para complementar a nossa leitura crítica de suas obras!

A leitura dos textos do livro "Um artista da fome, seguido de Na colônia penal & outras histórias" foi de boa compreensão porque já entrei na leitura com algum conhecimento prévio sobre eles e sobre o autor.

As estórias "Primeira dor", "Uma pequena mulher", "Um artista da fome", "Josefine, a cantora ou O povo dos ratos" e "Na colônia penal" são de leitura difícil, na minha opinião. O da ratinha cantora, por exemplo, foi um desafio, pois em determinado momento senti que não estava entendendo nada. Fiz uma pesquisa na rede mundial e encontrei um trabalho acadêmico sobre esse conto e foi muito legal a análise feita pelo autor do trabalho.

PRIMEIRA DOR

"Um trapezista - sabe-se que essa arte praticada nas alturas da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais difíceis ao alcance do homem - havia, a princípio apenas como um esforço em busca de aperfeiçoamento, mais tarde também por um costume tirânico, ordenado sua vida de modo que, enquanto trabalhasse em uma única temporada, pudesse passar dia e noite em cima do trapézio..."

A ideia de isolamento, de viver numa caverna, para poder escrever e produzir ininterruptamente, está clara neste personagem de Kafka. Sobre essa questão, foi muito interessante a leitura que já havia feito de Piglia sobre o autor tcheco.

UMA PEQUENA MULHER

"(...) Essa pequena mulher está muito insatisfeita comigo, tem sempre algo a criticar em mim, sempre uma injustiça a me imputar, irrito-a por tudo e por nada; se alguém pudesse separar a vida em suas menores partes e analisar cada uma das partezinhas isoladas, sem dúvida cada partezinha da minha vida seria motivo de irritação para ela. Muitas vezes perguntei-me por que a irrito tanto; pode ser que tudo em mim contrarie seu senso estético, seu sentimento de justiça, seus hábitos, suas tradições, suas esperanças, existem naturezas assim, contrárias, mas por que ela sofre tanto com isso? Não existe relação nenhuma entre nós que pudesse levá-la a sofrer por minha causa. Bastaria ela decidir me encarar como um estranho total, o que afinal sou, e eu sequer me oporia a essa decisão, pelo contrário, recebê-la-ia de braços abertos, bastaria ela decidir esquecer minha existência, que eu jamais impus nem seria capaz de impor a ela - e todo o sofrimento desapareceria..."

Ao ler esse excerto, já é possível avaliar como Kafka aborda temáticas de difícil manuseio como a questão da mulher. Na minha leitura de século 21, por exemplo, não gostei do termo usado por ele no conto (se a tradução estiver fiel) ao se referir à mulher como "mulherzinha". Mas literatura tem dessas coisas.

UM ARTISTA DA FOME

"Nas últimas décadas o interesse pelos artistas da fome diminuiu bastante. Enquanto antes era um bom negócio organizar grandes apresentações do tipo por conta própria, hoje em dia é totalmente impossível. Os tempos eram outros. Naquela época a cidade inteira se ocupava com o artista da fome; a cada dia de jejum o público aumentava; todos queriam ver o artista da fome pelo menos uma vez por dia; nos últimos dias havia quem passasse o dia inteiro sentado diante da pequena jaula; à noite também havia visitação, à luz de tochas, para aumentar o efeito; nos dias bonitos a jaula era transportada ao ar livre, e então eram principalmente às crianças que exibiam o artista da fome; enquanto para os adultos ele não era mais do que um passatempo, com o qual se entretinham porque era moda, as crianças olhavam-no impressionadas, de boca aberta, com as mãos dadas para vencer o temor, enquanto o homem, pálido, vestindo um abrigo escuro, com costelas muito protuberantes, desprezando até mesmo uma cadeira, ficava sentado na palha, com um aceno polido de cabeça, respondia perguntas com um sorriso forçado e estendia o braço por entre as barras, para que pudessem sentir com as mãos sua magreza, quando então ele se recolhia uma vez mais em si mesmo, não se preocupava com mais ninguém, nem mesmo com as graves badaladas do relógio, que era o único móvel no interior da jaula, mas apenas olhava para o vazio com os olhos semicerrados e de vez em quando bebericava um gole d'água para umedecer os lábios."

Esse é o longo primeiro parágrafo do conto. A cena é bem forte. Chamativa.

"O artista poderia jejuar tão bem quanto quisesse, e era o que fazia, mas nada mais poderia salvá-lo; passavam por ele sem ao menos notá-lo. Tente explicar a alguém a arte da fome! Não há como torná-la compreensível a alguém que não a sente..."

Sentiram a pegada do conto? Muitos críticos apontam esse conto como um dos contos mais autobiográficos de Kafka.

Além disso, é um conto bastante metafórico.

JOSEFINE, A CANTORA OU O POVO DOS RATOS

"Nossa cantora chama-se Josefine. Quem nunca a ouviu não conhece a força do canto. Não existe quem não fique deslumbrado com o canto dela, um fato ainda mais admirável porque, em geral, nossa espécie não aprecia a música. A música que mais apreciamos é a paz silenciosa; nossa vida é dura, por mais que tentemos deixar de lado as preocupações do dia a dia, não conseguimos elevar-nos a coisas tão afastadas do nosso cotidiano como a música..."

Esse é outro conto bastante metafórico e hermético, na minha opinião. Após a leitura, fiquei com dúvidas de entendimento. Ao ler um trabalho de interpretação sobre o conto, fiquei com uma compreensão melhor. Terei que reler o conto mais vezes.

NA COLÔNIA PENAL

"O explorador queria fazer várias perguntas, mas ao ver o homem perguntou apenas: 'Ele conhece a sentença?' 'Não', disse o oficial e tentou dar prosseguimento à explicação, mas o explorador interrompeu-o: 'Ele não conhece a própria sentença?' 'Não', disse mais uma vez o oficial, deteve-se por um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais precisa para a pergunta, e então disse: 'Seria inútil comunicá-la. A sentença é aplicada ao corpo' (...) 'Mas ele sabe ao menos que foi condenado?' 'Também não', disse o oficial e abriu um sorriso ao explorador, como se esperasse dele mais alguns questionamentos estranhos. 'Ora', disse o explorador e passou a mão pela testa, 'então este homem também não sabe como sua defesa foi recebida?' 'Ele não teve nenhuma oportunidade de apresentar uma defesa', disse o oficial e desviou o olhar, como se falasse consigo próprio e não quisesse constranger o explorador com explicações sobre coisas tão evidentes. 'Mas ele precisa de oportunidade para apresentar uma defesa', disse o explorador e levantou-se da cadeira..."


Essa é a condição dos condenados na novela de Kafka. Os condenados não sabem que estão condenados, não sabem a sentença e não têm a menor chance sequer de se defenderem. Já viram algo parecido no mundo real? Algum processo entre o Estado e o cidadão, onde o cidadão não tem a menor chance de se defender do sistema?

O melhor vem agora, o juiz e sua postura e seu poder ilimitado, parecendo um caso recente na república bananeira em que vivemos.

"A coisa funciona do seguinte modo. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha pouca idade. Porque estive ao lado do antigo comandante em todas as ocorrências criminais e sou quem melhor conhece o aparelho. O princípio que guia as minhas decisões é: a culpa é sempre indubitável. Outras cortes podem não se pautar por esse princípio, porque são compostas por muitos membros e também porque têm cortes mais altas acima de si. Não é o que acontece aqui, ou ao menos não era o que acontecia com o antigo comandante..."

Amig@s leitores, apesar da semelhança com fatos reais, isso não é uma descrição do dia a dia do Brasil com seu novo regime de lawfare, é um texto ficcional publicado em 1919 por Kafka.

A novela é chocante, é o cenário típico e constante nos textos de Franz Kafka. Um mundo angustiante, um mundo distópico, com processos absurdos e totalitários contra os frágeis humanos frente a sistemas opressores e aniquiladores.

Enfim, leitura feita e cinco novas estórias de Kafka na bagagem. Recomendo o livro aos leitores e leitoras.

William

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Releitura: Lula, o filho do Brasil (2002) - Denise Paraná


Lula é luz, e estamos vivendo um período de trevas,
mas nada dura para sempre. Temos que libertar Lula.

Refeição Cultural

"Espero que se o Lula ganhar para presidente da República ele ajude o povo em geral. E não tem esse negócio de ajudar parente, não. Ele vai cuidar do povo. O resto, os parentes, cada um tem que se viver por si. Do Lula eu só quero só a amizade e o carinho que ele tem pela gente. Eu quero que o Lula faça bem é para o Brasil todo. Não é para mim, para minhas irmãs, para os meus irmãos, para a turma, não. Se ele ganhar e fizer um bom governo, já está bom demais, não precisa ajudar ninguém da família. Ninguém admite o cara ser do agreste, do sertão do Norte. Sair do sertão do Norte do jeito que nós saímos e chegar à posição que o Lula chegou hoje... Eles têm inveja, é tudo inveja. Porque dinheiro não compra nada, não compra dignidade, não compra moral, não compra honestidade, não compra nada de ninguém. Tem muita ignorância nessa gente que não admite que um peão, um operário, tenha chegado onde chegou. E no Congresso tem pouca gente que pensa no povo

(Fala de Vavá, irmão de Lula, em entrevista realizada por Denise Paraná nos dias 3 e 7 de setembro de 1993. Uma década depois, Lula seria presidente e faria um governo voltado para o povo, exatamente como queria Vavá)

--------------------------------

Hoje, 3 de fevereiro de 2019, faz dois anos que Dona Marisa faleceu. Nesta semana que passou, faleceu também o irmão de Lula, o Vavá, no dia 29 de janeiro de 2019. Não permitiram que o ex-presidente Lula fosse ao velório e enterro de seu irmão querido, algo inimaginável num estado democrático de direito, já que a lei de execução penal permite tal fato e milhares de presos exercem esse direito todos os meses do ano.

A perda desses entes queridos na vida do presidente Lula é cercada de uma dramaticidade inacreditável e desumana ao se considerar os fatos circunscritos às duas mortes. Ambos tiveram suas vidas destruídas de forma vil e desproporcional por parte de agentes do Estado brasileiro. Dona Marisa passou por todo tipo de humilhação, exposição, assédio e agressão, vendo a perseguição implacável de sua família, casa invadida, marido filhos e netos execrados publicamente. Vavá também teve casa invadida, vida exposta e todo tipo de humilhação, só por ser da família do presidente mais querido e popular que o Brasil teve em sua história. Vavá morreu pedindo para ver Lula e não foi possível, pois Lula está preso injustamente desde abril do ano passado.

A impotência que sentimos é adoecedora ao ver essa situação na qual Lula se encontra. A dor e a vergonha que cada um de nós que temos consciência política sentimos é grande, é dilacerante, a ponto que nos pegamos sem rumo, sem saber como agir para mudar essa situação absurda em nossa vida nacional.

O livro de Denise Paraná é uma obra de arte, uma preciosidade. O objeto dos estudos de Denise é a vida de Lula e de seus familiares mais próximos desde o nascimento de Lula no sertão nordestino nos anos quarenta até o início dos anos dois mil, quando o líder popular chegou à presidência da república após quatro disputas desde 1989. Uma parte do livro é feita através de entrevistas com Lula e seus familiares entre os anos de 1993 e 1994, logo após as Caravanas da Cidadania. A outra parte é um estudo sociológico muito bem feito por parte da autora. Envolve história oral e teses desenvolvidas por ela com muita proficiência.


Deixo aqui a minha homenagem a essa figura simples,
o cidadão Vavá, que queria ver o irmão Lula. Descanse em paz!

Nesta semana em que faleceu Vavá, eu senti a necessidade de voltar ao livro, cuja leitura terminei em fevereiro de 2017, justamente quando faleceu Dona Marisa Letícia. Faleceu por sofrimento e acúmulo de violências contra ela e família. Como o livro é composto pelas próprias falas desses personagens brasileiros de origem simples e no povo, revi a entrevista com Vavá e Frei Chico, com Dona Marisa, e revi alguns outros pontos do livro.

Amig@s leitores, é muito duro ler o depoimento dessas pessoas simples e sermos testemunhas da violência estatal contra essa família, o Leviatã (de Hobbes) atuando de forma aniquiladora contra cidadãos indefesos. É terrível, é vergonhoso! Coloca sobre nossos ombros parte da responsabilidade do que estão fazendo com essas pessoas, Lula e seus familiares.

Eu recomendo a leitura do livro de Denise Paraná, para que vocês conheçam Lula e tenham a certeza de que ele e seus familiares jamais se desviariam do bom caminho. Esse é o fato, e esse é o crime deles num mundo cão, num mundo dominado por homens maus. Todos os bandidos estão livres, todas as provas que condenariam os bandidos soltos não servem pra nada. Só Lula e seus familiares, e membros de seu partido são presos e condenados sem provas.

É desesperador cada dia que passa e Lula segue naquela masmorra, incomunicável, porque ele significa a esperança de um Brasil soberano e voltado para o povo mais necessitado do Estado, num mundo que poderia ser mais justo, mais solidário, com paz e justiça social. Lula significa amor, felicidade e simplicidade, e isso é intolerável no sistema hegemônico mundial onde uma pequena elite jamais toleraria a felicidade do povo através do acesso aos bens materiais e imateriais da sociedade humana.

William