terça-feira, 27 de agosto de 2019

Lula: "Peço a Deus que ilumine essa gente"


Apresentação do blog

Reprodução da declaração do presidente Lula, após as denúncias da Vaza Jato sobre a desumanidade dos procuradores da operação Lava Jato em relação às mortes da companheira de Lula, Dona Marisa, do seu irmão Vavá e de seu netinho Arthur. 

Os canalhas são a mais pura representação da banalidade do mal, tese desenvolvida por Hannah Arendt, após compreender a essência do Nazismo que levou uma nação a praticar o mal de forma institucional, mecânica e racional.

Eu não consigo entender como esse homem, Lula, consegue ser tão bom, tão resistente e de coração tão grande. Eu admiro esse homem, eu jamais teria a grandeza de Lula, que consegue inclusive perdoar tanto ódio e maldade contra ele e o povo brasileiro.

William

Post Scriptum: temos que exigir as anulações das condenações do presidente Lula, o cancelamento das eleições fraudadas de 2018 e novas eleições gerais para presidente, governadores e para os parlamentos. O ódio contra Lula, Dilma, petistas e o Partido dos Trabalhadores foi um processo a partir da máquina do Estado, que deveria ser neutra e imparcial.

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Lula, em matéria no Instituto Lula.

27/08/2019 18:12

“Foi com extrema indignação, com repulsa mesmo, que tomei conhecimento dos diálogos em que procuradores da Lava Jato referem-se de forma debochada e até desumana às perdas de entes queridos que sofri nos anos recentes: minha esposa Marisa, meu irmão Vavá e meu netinho Arthur.

Confesso que foi um dos mais tristes momentos que passei nessa prisão em que me colocaram injustamente. Foi como se tivesse vivido outra vez aqueles momentos de dor, só que misturados a um sentimento de vergonha pelo comportamento baixo a que algumas pessoas podem chegar.

Há muito tempo venho dizendo que fui condenado por causa do governo que fiz e não por ter cometido um crime sequer. Tenho claro que Moro, Deltan e os procuradores agiram com objetivo político, pois me condenaram sem culpa e sem prova, sabendo que eu era inocente.

Mas não imaginava que o ódio que nutriam contra mim, contra o meu partido e meus companheiros, chegasse a esse ponto: tratar seres humanos com tanto desprezo, como se não tivessem direito, no mínimo, ao respeito na hora da morte. Será que eles se consideram tão superiores que podem se colocar acima da humanidade, como se colocam acima da lei?

Peço a Deus que ilumine essa gente, que poupe suas almas de tanto ódio, rancor e soberba. Quanto aos crimes que cometeram contra minha família e contra o povo brasileiro, tenho fé que, deles, um dia a Justiça cuidará.

Luiz Inácio Lula da Silva”



Fonte: Instituto Lula

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Teoria do romance I - A estilística (Bakhtin)





Excertos

"O romance é um heterodiscurso social artisticamente organizado, às vezes uma diversidade de linguagem e uma dissonância individual. A estratificação interna de uma língua nacional única em dialetos sociais, modos de falar de grupos, jargões profissionais, as linguagens dos gêneros, as linguagens das gerações e das faixas etárias, as linguagens das tendências e dos partidos, as linguagens das autoridades, as linguagens dos círculos e das modas passageiras, as linguagens dos dias sociopolíticos e até das horas (cada dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulário, seus acentos), pois bem, a estratificação interna de cada língua em cada momento de sua existência histórica é a premissa indispensável do gênero romanesco: através do heterodiscurso social e da dissonância individual, que medra no solo desse heterodiscurso, o romance orquestra todos os seus temas, todo o seu universo de autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados e os discursos dos heróis são apenas as unidades basilares de composição através das quais o heterodiscurso se introduz no romance; cada uma delas admite uma diversidade de vozes sociais e uma variedade de nexos e correlações entre si (sempre dialogadas em maior ou menor grau). Tais nexos e correlações especiais entre enunciados e linguagens, esse movimento do tema através das linguagens, sua fragmentação em filetes e gotas de heterodiscurso social e sua dialogização constituem a peculiaridade basilar da estilística romanesca, seu specíficum."

Os destaques em itálico são do próprio livro.


Bibliografia

BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I - A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. Editora 34. 1ª edição 2015, 1ª reimpressão 2017.

domingo, 25 de agosto de 2019

250819 - Diário e reflexões



Flores embelezam os arredores
da História, na FFLCH da USP.

Estou lendo o livro do escritor chileno Roberto Bolaño "El espíritu de la ciencia-ficción", lançado postumamente em 2016, mas escrito nos anos oitenta, antes do autor iniciar uma trajetória de grandes lançamentos a partir dos anos noventa.

A leitura é para uma das quatro matérias que estou fazendo neste semestre na graduação de Letras da Universidade de São Paulo. Retomei o curso neste ano para completar a grade obrigatória da graduação e não pegar o diploma somente com uma das duas habilitações que fiz: português-espanhol.

É impressionante como são as coisas na nossa vida. Nesta semana, ao participar de uma aula de literatura sobre as vanguardas hispano-americanas, passei pelo mesmo sentimento de frustração dos anos em que fiz a graduação porque não havia lido os textos recomendados para a classe. Antes, a prioridade era o trabalho de organização sindical e não tinha tempo para as leituras. Qual a justificativa agora para não ter lido os textos?

Provavelmente esteja tudo errado em minha vida e as coisas seguem estando fora do lugar. Eu acabei voltando para a universidade aos cinquenta anos por causa de um sentimento de incompletude, de não ter feito as coisas como gostaria que elas fossem feitas. Mas se antes eu não lia os textos pela prioridade nas lutas sindicais, agora sigo sem ler porque minha atenção não se desliga da desgraça da destruição de nosso país e do nosso mundo. Eu tinha que fazer algo contra a desgraça toda e não sei o que fazer. Que merda!

Tudo errado! Nem me satisfaço retomando o mundo encantador da universidade, nem faço mais parte do mundo das lutas de classes. Tudo errado!

É duro!

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

210819 - Diário e reflexões



Refeição Cultural

Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto: poetas e poetisa brasileiros. Roberto Bolaño: escritor chileno. Margo Glantz: escritora mexicana. Autores da vanguarda hispano-americana no século vinte: vários deles. A língua espanhola. A língua portuguesa. As literaturas de língua espanhola e portuguesa. Matérias com as quais estarei envolvido neste semestre de estudos na Universidade de São Paulo.

Aos cinquenta anos, tenho ainda o desejo e a necessidade de aprender, de conhecer algo novo, cultura nova, de melhorar a essência desse animal mamífero que sou, que somos todos nós. Bolaño morreu aos cinquenta anos; deixou contribuição importante ao mundo da cultura. Alguns autores começaram a se destacar após os cinquenta anos, como José Saramago. Aos cinquenta, tenho dúvidas se minha contribuição ao mundo foi suficiente; se ajudei em algo a sociedade humana. Eu tentei contribuir com a coletividade, através da luta sindical e política.

Os tempos agora são de retrocesso, de perdas. Um golpe de Estado pôs tudo a perder para o povo brasileiro. Os tempos ainda são de fezes, como disse o poeta Drummond em 1945. Os tempos são de ataques à solidariedade, ao amor, ao entendimento pacífico, à civilidade. São tempos de destruição da cultura, da educação, da saúde e do cérebro humano. O Brasil se desfaz: meio ambiente, patrimônio público, direitos do povo; a cordialidade. Tempos de fezes.

Ontem, trabalhamos em sala de aula com o poema "Encomenda", de Cecília Meireles, de 1942. Nossa! Como é legal ter a oportunidade de analisar um poema em sala de aula com o professor nos ensinando as técnicas para a leitura da linguagem poética e para melhor percebermos tudo que há em um poema. Antes desse conhecimento através do acesso à educação, eu era uma pessoa mais rude, mais intolerante, com menos capacidade de lidar com as questões da vida.

Talvez o que me faça seguir hoje seja o fato de que a cada minuto vivo podemos aprender algo bom, mesmo nos encontrando em meio a tanta estupefação diante da comprovação de que pessoas ao nosso redor abraçaram o mal, apoiam e se vendem à barbárie. Mas eu não quero me tornar um bárbaro!

Essa seção do blog, escrever diários, é algo inútil. Francamente. Escrevemos talvez para registrar as coisas. Não se sabe do amanhã. Mal sabemos se estamos vivendo num esboço de Alemanha do Terceiro Reich tupiniquim. Milhões de brasileiros já são colocados em guetos e mortos de forma fútil pelo Estado e pelas milícias. Que virá no amanhã?

Enfim, chega por hoje. Já gastei um tempão nisso. E nem li o que preciso ainda.

domingo, 18 de agosto de 2019

180819 - Diário e reflexões (Infelicidade)


(Atualizado 11h42)


Rio Araguari, sob a ponte da BR 365, MG.
Foto tirada durante a romaria deste ano.

Refeição Cultural

Domingo de sol em Osasco. Semana de lua cheia no céu. Mas os tempos são de penumbra. A sociedade brasileira e as pessoas conscientes e politizadas vivem tempos nebulosos. O lusco-fusco do fim de tarde (e de uma época) e as sombras embaçam nossa visão da estrada e do caminho a percorrer para se chegar à luz da paz, do amor, da igualdade e da solidariedade que aquecem e acolhem os seres vivos.

Minhas reflexões têm sido pautadas, por um lado, pela observação de nossa realidade de perdas coletivas causadas pelo golpe de Estado que impôs ao Brasil um novo regime de submissão ao império americano e às quadrilhas tupiniquins, e o contato com essa realidade tem trazido enorme sofrimento, justamente por sermos conscientes e politizados. Os crimes dos agentes do Estado são normalizados diariamente e a miséria crescente é invisibilizada por ferramentas de manipulação de massas.

Por outro lado, tenho refletido sobre as coisas ainda possíveis de se realizarem tanto coletivamente quanto individualmente, como membros da espécie humana que ainda estão por aqui, estamos aqui, neste mundo que é feito de instantes e mudanças que melhoram e pioram a vida dos seres que nele habitam. Mas o sentimento de solidão é grande ao vermos o nosso lado do front todo perdido, dividido; soldados enraivecidos e cegos - ou pusilânimes -, destreinados e sem formação básica, sem direção.

Em relação ao mundo que nos cerca, a sociedade brasileira em si - miserável e desigual -, não seria possível ver tanto absurdo sem reação da população, se esta fosse melhor ética e culturalmente, mas ela não é. O povo que temos é esse que está aí. Povo Macunaíma. E vejo que temos um sério problema de liderança. Em décadas de lutas, não forjamos uma geração nova que lidere com capacidade de alterar situações dadas. Um povo precisa de lideranças: não acredito em "movimento espontâneo" de miseráveis ou remediados. Enjaularam como animal a única figura que lidera e altera situações. Não temos outras.

Em relação ao que seria possível de ser feito ainda pelo indivíduo, se vivo está e com as condições mínimas de execução de projetos, as possibilidades seriam praticamente infinitas. Mas se é assim, por que o indivíduo não persegue e realiza seus objetivos mais comezinhos? Não sei! Este que reflete aqui não consegue sequer ler literatura sem o peso na consciência ao ver o mundo se acabando lá fora (sem reação!).

Se fosse possível um ser politizado e consciente, que reúne condições estáveis de sobrevivência, abstrair de toda injustiça e miséria que há em seu entorno social, era só sair para o abraço à felicidade e ir curtir a vida como se sonha por aí. Não se importar com nada é uma forma de escolha política egoísta bastante comum entre nós, animais humanos.

Aos cinquenta anos, vejo que nunca senti um aperto tão grande no coração ao ver toda a destruição de nosso mundo como agora, após o golpe de Estado organizado para interromper a trajetória do Brasil e do povo brasileiro rumo à independência econômica e rumo a um posto de potência mundial num mundo multipolar como se desenhava no início do século XXI. 

O povo brasileiro estava ganhando e avançando como nunca com os governos progressistas e democrático-populares do Partido dos Trabalhadores, liderados pelo homem do povo Lula da Silva. Estava ganhando, mas por ser o povo o que é, se deixou enganar e se encantou pelo mal de uma forma que nos paralisa. De tão chocados, nós do campo da militância social, "idiotamente moralistas", como disse numa entrevista Jessé Souza, não estamos reagindo e provavelmente não reagiremos. Nunca mais seremos o que poderíamos ser.

E tendo consciência disso, nunca estive tão infeliz como agora, que ultrapassei o ponto em que a vida era um cotidiano de tentar a sobrevivência básica. Isso tudo é muito triste. Acho que daria a minha vida por algo que valesse a pena para inverter a tendência de destruição até o fim do que poderia ser o nosso país e o nosso mundo. Mas nem projetos de resistência existem, que dirá de reversão da tendência de dominação do mal que nos aprisionou.

Nós idiotamente moralistas não aceitamos falar em guerras civis, sequer pensar, mas já há uma contra nós e ninguém diz. Só estão morrendo pobres, pretos, índios, mulatos, brancos e pardos que se acham ricos, gente de origem na senzala ancestral. Seguimos bovinamente dóceis, esperando o fim.

Difícil realizar projetos pessoais assim. Difícil ser feliz assim.

William

Incômodo mental final: talvez dessa vez consigam extinguir a Petrobras, a Caixa, o BB, a Cassi, a Previ... quem liga? Alguns conscientes por aqui e por ali, e só. Depois passa. Já extinguiram tanta coisa e não teve convulsão social alguma. Diziam: se derrubarem a Dilma a gente... Se prenderem o Lula a gente... alguns dizem que se o Lula morrer... (é provável que seja mais do mesmo dos absurdos normalizados. O nazismo foi exatamente assim, após a ascensão de Hitler, e deu no que deu: gente nos fornos)

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Resgatar a Cassi é prioridade dos associados



Opinião

A Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil, Cassi, maior e mais antiga autogestão em saúde do país, passa neste momento de sua existência por mais um período de desequilíbrio econômico-financeiro causado por reduções da base da receita operacional e por fatores inerentes ao setor em que opera - o setor de saúde suplementar.

A entidade de saúde dos trabalhadores da ativa e aposentados é gerida de forma paritária pelos próprios associados, sendo a metade da direção eleita pelo corpo social e a outra metade indicada pelo patrocinador do Plano de Associados, o BB. Sendo gerida por ambos patrocinadores do Plano, os dois lados têm direitos e obrigações e responsabilidades com os objetivos e missão da associação.

Missão: "Assegurar ações efetivas de atenção à saúde por meio de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação, para uma vida melhor dos participantes." (Cassi)


Os participantes da Caixa de Assistência são as pessoas assistidas pelo Plano de Associados (402.524) e os clientes dos Planos Cassi Família (270.506), e ainda as 5.918 vidas dos planos de saúde dos funcionários Cassi e dependentes, sendo a razão de ser da associação criada em 1944 o Plano de Associados, constituído por trabalhadores do BB, e hoje composto por titulares da ativa e aposentados, pensionistas e os dependentes. (dados do Visão Cassi e Relatório Cassi 2018)

A comunidade do BB esteve reunida nos dias 1 e 2 de agosto no principal fórum organizativo dos trabalhadores do Banco do Brasil, o 30º Congresso Nacional dos Funcionários (CNFBB), e um dos temas debatidos foi a Cassi e as melhores estratégias para preservar e fortalecer a entidade de autogestão em saúde. Tive a honra de ser convidado para falar sobre nossa Cassi e dividi a mesa com dirigentes eleitos da autogestão.

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Em linhas gerais, a mensagem que passei foi de que é possível resgatar a Cassi das ameaças que ela enfrenta no momento e que para isso é necessário que façamos algo com unidade e estratégia adequada. Disse ainda que talvez haja uma estratégia do novo regime político no país em não retomar as negociações e a busca de solução para as desconformidades econômico-financeiras da autogestão em relação à direção fiscal instituída em 22 de julho e assim deixar que ela fique à mercê de eventuais decisões questionáveis tomadas por órgãos do próprio governo (ANS, SEST etc) como, por exemplo, quererem liquidar as "carteiras" da Cassi: Plano de Associados e Cassi Família.
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Algumas questões:

- Dia nacional de lutas em defesa da Cassi (em 22 de agosto) e organização de plenárias e discussões entre os trabalhadores associados e suas entidades é algo muito importante, bem como o encontro nacional que virá depois. As pessoas precisam sair da condição de conforto em esperar que algo aconteça a partir de agentes externos a nós mesmos, os associados. Temos mais de uma centena de sindicatos, dezenas de associações e conselhos de usuários que devem se envolver no processo de MOBILIZAÇÃO do dia 22 de agosto. Participem!

- As entidades nacionais que compuseram uma mesa permanente com o patrocinador Banco do Brasil desde 2015 - Contraf-CUT, Contec, Anabb, Aafbb e Faabb - podem contribuir muito na organização nacional e na unidade dos associados na busca de solução econômico-financeira para resgatar a Cassi com a entrada de novos recursos que permitam a nossa autogestão voltar à normalidade administrativa corrigindo no próximo período as desconformidades monitoradas pelo órgão do governo (ANS). A bela construção de unidade das entidades já trouxe ganhos com a solução do Memorando de Entendimentos entre outubro de 2016 e dezembro de 2019 e podemos repetir o feito neste momento de sérias ameaças à Cassi.

- Entendo que todo esforço deve ser feito pelas lideranças das entidades sindicais e associativas, bem como dos eleitos pelos associados, em construir uma proposta de entrada de novos recursos para o Plano de Associados - motivo da direção fiscal -, de maneira que se evite as grandes polêmicas e diferenças naturais de pensamento entre os grupos políticos e organizativos da comunidade. Unidade no corpo social é premissa para a solução neste cenário adverso.

- Se buscarmos uma proposta mais simples e focada - aos moldes do Memorando, por exemplo - teremos melhores perspectivas de alcançar 2/3 de aprovação no corpo social (regra estatutária). Lembremos que o objetivo central neste momento é cumprir um programa (Direção Fiscal) com orçamento que equalize as operações da autogestão por dois ou três anos. O patrocinador pode não estar disposto a negociar, mas ter uma proposta de consenso ou maioria qualificada dos associados é o primeiro passo para a solução, inclusive com apoio jurídico, se for o caso, para que haja nova consulta aos associados (é necessária autorização do patrocinador).

O PLANO DE ASSOCIADOS NÃO É MERA "CARTEIRA" DE UMA EMPRESINHA QUALQUER DO MERCADO PRIVADO DE SAÚDE

Por fim, duas coisas chamam a atenção nas últimas semanas:

A nota de esclarecimento da Cassi* no dia 14 de agosto, falando pelo Banco do Brasil e esclarecendo as propostas de custeio do patrocinador e o "compromisso" dele banco em custear individualmente a saúde dos associados de hoje do Plano de Associados em 4,5% em caso da Cassi não existir. E a possibilidade aventada do órgão regulador liquidar o Plano de Associados e consequentemente a autogestão Cassi.

O Plano de Associados não é "carteira" de uma empresinha qualquer do mercado de saúde. Nós somos donos associados da autogestão e não meros "clientes". A Cassi tem um modelo assistencial referência nacional em eficiência na área de atenção primária (APS) e medicina de família (ESF). Temos mais de 180 mil vidas cuidadas no modelo. Já temos estudos que demonstram índices impressionantes de melhor uso de recursos no tratamento de segmentos de participantes mais idosos e mais agravados em saúde.  

Temos um sistema de unidades de atendimento em saúde, as CliniCassi, responsável por fazer com que os assistidos vinculados ao modelo assistencial gastem entre 10% e 40% menos que participantes fora do sistema. Temos a menor despesa administrativa do setor de saúde suplementar em relação aos outros segmentos do setor - medicinas de grupo e cooperativas médicas - e a autogestão Cassi evita que mais de 700 mil pessoas tenham necessidade de buscar atendimento no SUS, já superlotado e sem recursos. Como poderíamos aceitar um órgão do governo (ANS) ter nas suas possibilidades legais "liquidar" o Plano de Associados?

Missão da ANS: "Promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regular as operadoras setoriais - inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores - e contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país." (site da ANS em 16/8/19)

Vendo a missão acima, não me parece razoável ou justo que esse órgão tenha poder para nos tirar a Cassi, pois liquidar nossa autogestão seria fazer o contrário de tudo que está escrito naquela missão. Mas a ameaça é real porque os tempos são de fezes, como diz o poeta (pra não dizer que a autoridade máxima do país só fala isso):

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"Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera."
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(versos do poema "A flor e a náusea", do livro "A rosa do povo", de Carlos Drummond de Andrade, 1945) 

Dito isso, chamo a atenção de cada associado e cada associada e suas respectivas entidades representativas que não podemos sequer avaliar uma possibilidade de não resgatarmos a Cassi da situação atual de desconformidades econômico-financeiras porque a nossa autogestão em saúde é infinitamente maior que um "plano de saúde" que buscaríamos no mercado individualmente com um repasse de 4,5% de nossos salários ou benefícios em determinado momento de nossas vidas.

Vamos apostar na unidade e na construção de consensos entre nós para desenvolvermos as estratégias de resgatem a Cassi das ameaças colocadas neste momento, inclusive em relação ao momento político pelo qual passa nosso país.

Abraços e nos colocamos à disposição das entidades e lideranças da comunidade Banco do Brasil para refletirmos juntos a busca de soluções, consensos e unidade do lado dos associados.

William Mendes
Associado Cassi/Previ


*Nota de Esclarecimento da CASSI

A CASSI esclarece que nenhuma das propostas de mudança de custeio apresentadas (em setembro de 2018 e em maio de 2019) alterava a contribuição patronal de 4,5%. Em relação ao benefício definido (obrigação do empregador após a aposentadoria), o Banco do Brasil informou, em nota divulgada em maio de 2019, que não haveria modificações com a mudança do Estatuto Social da CASSI, permanecendo a responsabilidade do patrocinador com a contribuição percentual sobre o valor total do salário ou do benefício dos associados.

O compromisso do Banco do Brasil com a contribuição patronal para a saúde dos seus funcionários da ativa a aposentados é de 4,5%, percentual hoje repassado à CASSI. No caso de não existir mais a Caixa de Assistência, os funcionários da ativa ou aposentados contarão com esses mesmos 4,5% como parte patronal para custear a sua assistência à saúde. O risco de não haver aporte suficiente para solucionar o problema financeiro da CASSI, eliminando as desconformidades apontadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), é de inviabilizar a continuidade da CASSI e a prestação dos serviços a funcionários da ativa, aposentados e seus dependentes, por meio do Plano de Associados. Se o plano for considerado inviável pela ANS, os beneficiários desporiam dos mesmos 4,5% como contribuição patronal para contratar outra forma de assistência à saúde."

Fonte: Cassi

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Romaria


Ponto final da romaria:
o Santuário N. Sra. da Abadia.

"Não estou vazio,
não estou sozinho,
pois anda comigo
algo indescritível."

(Estrofe do poema "Carrego comigo", de "A Rosa do Povo", 1945, Drummond)


Noite estrelada na BR 365, que liga a cidade de Uberlândia a Romaria, na região do Triângulo Mineiro. A lua crescente em seu segundo dia ilumina o caminho dos romeiros quase como se fosse dia, dá para ver a sombra do caminhante no acostamento da estrada. A lua acompanhou os romeiros até perto das 3 horas da manhã, quando então se fez um grande breu e as estrelas ficaram muito mais evidentes. Foi muito bom ver o céu que nos protege e as estrelas cadentes!

A caminhada de 80 Km em 2019 se deu num contexto de muitas mudanças na vida deste romeiro que completou 50 anos de idade. Mudanças tanto de ordem pessoal quanto de ordem política e social. Minha saúde e condição física sofreram alterações. Aquele país melhor para o povo, que ajudamos a construir com os governos democráticos do PT e com o movimento sindical, foi tomado por novo regime a partir do golpe de 2016 e do processo fraudado das eleições de 2018. 

Solidariedade e inclusão social, políticas públicas e valorização da vida, distribuição de riquezas e oportunidades de acesso à educação e cultura, combate à fome e amor ao povo foram substituídos por ódio e elitização, autoritarismo e fim do diálogo, destruição do patrimônio público e dos direitos do povo, nepotismo e crimes diários de autoridades do Estado sem haver punição alguma, incentivo à violência e à morte, e, sobretudo, a mentira como meio de sustentação de um regime surgido a partir da fraude e do golpe. 

Foi neste cenário de desesperança e desgraça nacional que pegamos a estrada para mais uma caminhada de introspecção, teste de resistência e foco nos objetivos. Hoje, a injustiça e a ignorância adoecem qualquer cidadão ético e com consciência política.


As belezas da estrada estão ali para
serem vistas por quem tiver olhos para elas.

Caminhada foi longa, mas correu tudo bem

Em geral, gasto entre 20 e 22 horas para percorrer o caminho. Neste ano, foram necessárias 25 horas de caminhada.

Poucas vezes fiz a romaria em companhia de outra pessoa. Em duas oportunidades, tive o privilégio da companhia de meu filho amado. De uns anos para cá, tenho recebido no caminho o apoio de meu cunhado, que dá assistência de carro como ocorre com diversos grupos de romeiros. Neste ano, sua irmã fez a romaria em minha companhia.

Saímos do trevo de Uberlândia para Araxá às 15h e fizemos os primeiros 15 Km sob o sol do fim da tarde. Chegamos ao Rio Araguari já anoitecendo. Essa primeira parte é importante para sentir se os calçados deram certo ou não. Não ter bolhas até esse momento é bom sinal. Não tínhamos bolhas.

A longa subida de mais de 10 Km foi feita numa boa. Chegamos bem ao 2º ponto de referência, cerca de 27 Km percorridos. Andamos mais 10 Km até o posto N. Sra. da Guia. A noite até esse momento estava bem fresca, sem frio. Dali em diante, começam as fases mais difíceis da romaria, são longos trechos com o corpo já sentindo cansaço. 

Saímos à 1h da manhã para caminhar 11 Km até a Antena, local da principal barraca de assistência aos caminhantes. Esfriou. Os romeiros andam andam e a Antena não chega. Chegamos às 5h40. Cansados, mas sem bolhas. Paramos uma hora. Amanheceu e esquentou. A próxima fase é maior ainda, são 12,5 Km até o posto Santa Fé.

Chegamos no sacrifício ao Posto, bem cansados. Às 10h20 da manhã, o sol estava muito quente. As últimas dezenas de quilômetros são feitas em uma estrada que corta florestas de eucaliptos. Sobe, faz curvas, desce... eucaliptos e mais eucaliptos. Eu senti muita dor nos quadris desde uns 30 Km de caminhada e Luciana algumas dores nos pés e no joelho.

Após descansar quase uma hora, saímos para o último trecho da romaria. Faltavam ainda uns 18 Km. Foi difícil a chegada à cidade. As últimas duas horas de caminhada é no meio do terrão vermelho. Chegamos à igreja às 16 horas. Conseguimos. 


Não há caminhos. O caminho se faz ao andar.
Vamos caminhando, mesmo sem compreender
por que chegamos aonde chegamos: um mundo cão.

Minha companheira de caminhada teve algumas bolhas, mas conseguiu cumprir seu propósito. Foi muito obstinada. Foi sua primeira romaria. Ela diz que não pretende fazer novamente. Eu disse a ela e repito: parabéns pela caminhada e pelo objetivo alcançado. Eu cumpri meu propósito também. Foi diferente como todos os anos. Tudo mudou. Não sei se farei novamente a romaria. Não sei do amanhã.

Nesta minha experiência de peregrino, a romaria 2019 de Uberlândia a Água Suja, realimentei a certeza de que o ser humano é um ser fantástico, muito diferente de qualquer outro do reino animal. Podemos realizar feitos incríveis. Sempre vou me perguntar como alguém consegue andar 80 Km sem parar como cada peregrino que faz a romaria. Mesmo aqueles que andam 70 Km, 60 Km, 50 Km... é muito difícil! Mas as pessoas o fazem.

É isso! Podemos fazer grandes coisas. Então por que o Brasil está como está? Por que não estamos conseguindo recuperar a solidariedade entre as pessoas? Onde está o amor ao próximo? Onde está o respeito ao diferente? Ao ver como somos incríveis, não consigo entender por que chegamos aonde chegamos. Termino aqui esta reflexão de minha caminhada.

William
Um caminhante

(Atualizado 12/8/19, às 23h59)

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Lendo: Senhora (1875) - José de Alencar



Senhora, de Alencar, e livros de crítica literária.

Refeição Cultural

Literatura Brasileira - José de Alencar

Consumado o casamento entre Aurélia Camargo e Fernando Seixas, os convidados se retiram da cerimônia. A sós, os dois jovens se preparam para a noite de núpcias. Quando Aurélia tem a seus pés o esposo se declarando a ela, muda a expressão de felicidade e começa a dizer o que pensa a respeito de tudo aquilo.

"- Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter esse orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamente, senhor. Entremos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido."

E apesar do choque causado ao noivo, pela surpresa do enunciado, Aurélia segue:

"- Vendido, sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica; sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se vez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por esse momento."

Com essa cena, José de Alencar conclui a primeira parte do livro, intitulada "O Preço", e a personagem Aurélia manda o marido comprado sentar-se para ouvir o que ela tem a dizer a seguir, na parte dois do livro.

Nova leitura

Li esta obra de Alencar na adolescência, como parte das leituras obrigatórias do ensino fundamental e médio. Reli o romance faz duas décadas, por desejo de conhecer melhor este clássico da literatura brasileira. 

A curiosidade em ler novamente "Senhora" é por causa de obras e textos críticos que fazem referência a ela, como as obras de Roberto Schwarz - "Um mestre na periferia do capitalismo" e "Ao vencedor as batatas" - e de Antonio Candido - "Literatura e sociedade". 

Entretanto, a leitura é, sobretudo, porque um amigo me presenteou um livro que reúne ensaios e textos de crítica literária a respeito de grandes estudiosos da literatura brasileira, entre eles os dois que citei acima mais Francisco Alvim. 

Dentre os ensaios reunidos no livro "Candido, Schwarz & Alvim - A crítica literária dialética no Brasil" está o de meu amigo André Matias Nepomuceno - "Gênero e história: duas questões na leitura do romance Senhora, de José de Alencar". Quando li o texto, senti que teria melhor compreensão se me lembrasse do enredo do romance.

Enfim, aos poucos vou lendo mais este livro, entre os vários que leio ao mesmo tempo. Nosso cérebro só tem a ganhar quando é exigido para tarefas diversas, como leituras de coisas tão distintas quanto as que leio.

William
Um leitor

domingo, 4 de agosto de 2019

O segredo do Bonzo, de Machado de Assis (1882)



Machado de Assis.

Publicado originalmente em A gazeta de notícias, em 1882. Conto reunido no livro Papéis Avulsos.

(Após a leitura, faço breve comentário sobre o conto. Os sublinhados são destaques do blog para esclarecer vocabulário ao final e para apartar reflexões e conceitos contidos no conto)


CAPÍTULO INÉDITO DE FERNÃO MENDES PINTO

Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo, com o Padre-mestre Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e outros bonzos, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudável ao espírito, e digna de ser divulgada a todas as repúblicas da cristandade.

Um dia, andando a passeio com Diogo Meireles, nesta mesma cidade Fuchéu, naquele ano de 1552, sucedeu deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria com grande abundância de gestos e vozes. O povo, segundo o esmo* mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões somente, e todos embasbacados. Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora ocupava-se no exercício da medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que em resumo, era o seguinte: — Que ele não queria outra coisa mais do que afirmar a origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova; que este descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas enfim, estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e especialmente da cidade Fuchéu, cujo filho era; e, se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e seus deleites.

A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem bradando: “Patimau, Patimau, viva Patimau, que descobriu a origem dos grilos!” E todos se foram com ele ao alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverências, à maneira deste gentio, que é em extremo obsequioso e cortesão.

Desandando o caminho, vínhamos nós, Diogo Meireles e eu, falando do singular achado da origem dos grilos, quando, a pouca distância daquele alpendre, obra de seis credos, não mais, achamos outra multidão de gente, em outra esquina, escutando a outro homem. Ficamos espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meireles, visto que também este falava apressado, repetiu-me da mesma maneira o teor da oração. E dizia este outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira o princípio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruída, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha a excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse distinto animal era procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento que ele podia afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas e profunda cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar glória ao reino de Bungo e receber dele a estimação que os bons filhos merecem. O povo, que escutara esta fala com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem ao dito alpendre, com a diferença que o trepou a uma charola*; ali chegando, foi regalado com obséquios iguais aos que faziam a Patimau, não havendo nenhuma distinção entre eles, nem outra competência nos banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados.

Ficamos sem saber nada daquilo, porque nem nos parecia casual a semelhança exata dos dois encontros, nem racional ou crível a origem dos grilos, dada por Patimau, ou o princípio da vida futura, descoberto por Languru, que assim se chamava o outro. Sucedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual correu a falar a Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a Diogo Meireles, tais como — ouro da verdade e sol do pensamento, — contou-lhe este o que víramos e ouvíramos pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço: — Pode ser que eles andem cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo* de muito saber, morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos cobiçosos de ter alguma notícia da doutrina, consentiu Titané em ir conosco no dia seguinte às casas do bonzo, e acrescentou: — Dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa, senão às que de coração se quiserem filiar a ela; e, sendo assim, podemos simular que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se for boa, chegaremos a praticá-la à nossa vontade.

No dia seguinte, ao modo concertado, fomos às casas do dito bonzo, por nome Pomada, um ancião de cento e oito anos, muito lido e sabido nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquela gentilidade, e por isso mesmo mal visto de outros bonzos, que se finavam de puro ciúme. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem éramos e o que queríamos, iniciou-nos primeiro com várias
cerimônias e bugiarias necessárias à recepção da doutrina, e só depois dela é que alçou a voz para confiá-la e explicá-la.


— Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a cuidar nestas coisas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.

Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, porque eu nada perdesse. E continuou dizendo: — Mal podeis adivinhar o que me deu ideia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema, basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas ideias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles.

Não sabíamos em que maneira déssemos ao bonzo as mostras do nosso vivo contentamento e admiração. Ele interrogou-nos ainda algum tempo, compridamente, acerca da doutrina e dos fundamentos dela, e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas, mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros passos; enfim, despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que abalávamos dali com a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por se derivar do nome dele, lhe era em extremo agradável.

Com efeito, antes de cair a tarde, tínhamos os três combinado em pôr por obra uma ideia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos, pois, à guisa de experiência, meter cada um de nós, no ânimo da cidade Fuchéu, uma certa convicção, mediante a qual houvéssemos os mesmos benefícios que desfrutavam Patimau e Languru; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da experiência ambas as moedas, isto é, vendendo também as suas alparcas: ao que nos não opusemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina.

Consistiu a experiência de Titané em uma coisa que não sei como diga para que a entendam. Usam neste reino de Bungo, e em outros destas remotas partes, um papel feito de casca de canela moída e goma, obra mui prima, que eles talham depois em pedaços de dois palmos de comprimento, e meio de largura, nos quais desenham com vivas e variadas cores, e pela língua do país, as notícias da semana, políticas, religiosas, mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas, lancharas, balões e toda a casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a há frequente, ou de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas são feitas de oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio da terra, a troco de uma espórtula*, que cada um dá de bom grado para ter as notícias primeiro que os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quis melhor esquina que este papel, chamado pela nossa língua Vida e claridade das coisas mundanas e celestes, título expressivo, ainda que um tanto derramado. E, pois, fez inserir no dito papel que acabavam de chegar notícias frescas de toda a costa de Malabar e da China, conforme as quais não havia outro cuidado que não fossem as famosas alparcas dele Titané; que estas alparcas eram chamadas as primeiras do mundo, por serem mui sólidas e graciosas; que nada menos de vinte e dois mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do esplendor das famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse criado o título honorífico de “alparca do Estado”, para recompensa dos que se distinguissem em qualquer disciplina do entendimento; que eram grossíssimas as encomendas feitas de todas as partes, às quais ele Titané ia acudir, menos por amor ao lucro do que pela glória que dali provinha à nação; não recuando, todavia, do propósito em que estava e ficava de dar de graça aos pobres do reino umas cinquenta corjas das ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rei e o repetia agora; enfim, que apesar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida em toda a terra, ele sabia os deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do que um obreiro diligente e amigo da glória do reino de Bungo. 

A leitura desta notícia comoveu naturalmente a toda a cidade Fuchéu, não se falando em outra coisa durante toda aquela semana. As alparcas de Titané, apenas estimadas, começaram de ser buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes, pois não deixou ele de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e extraordinárias anedotas acerca da sua mercadoria. E dizia-nos com muita graça: — Vede que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido da superioridade das tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo. — Não me parece, atalhei, que tenhais cumprido a doutrina em seu rigor e substância, pois não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela

Dito isto, assentaram os dois que era a minha vez de tentar a experiência, o que imediatamente fiz; mas deixo de a relatar em todas as suas partes, por não demorar a narração da experiência de Diogo Meireles, que foi a mais decisiva das três, e a melhor prova desta deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que tinha de música e charamela, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os principais de Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento; os quais vieram, escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido coisa tão extraordinária. E confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos ademanes, da graça em arquear os braços para tomar a charamela, que me foi trazida em uma bandeja de prata, da rigidez do busto, da unção com que alcei os olhos ao ar, e do desdém e ufania com que os baixei à mesma assembleia, a qual neste ponto rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações de entusiasmo, que quase me persuadiu do meu merecimento. 

Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiências, foi a de Diogo Meireles. Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto os físicos da terra propusessem extrair os narizes inchados, para alívio e melhoria dos enfermos, nenhum destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à lacuna, e tendo por mais aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência daquele órgão. Neste apertado lance mais de um recorria à morte voluntária, como um remédio, e a tristeza era muita em toda a cidade Fuchéu. Diogo Meireles, que desde algum tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao sacrifício. Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar. O assombro da assembleia foi imenso, e não menor a incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados do saber de Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança, um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o mesmo.

A assembleia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram de buscá-lo, em tanta cópia, que ele não tinha mãos a medir. Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e que este era inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado para glória do bonzo e benefício do mundo.

Fim.


*Vocabulário:

O esmo: cálculo estimado, estimativa.

Charola: padiola, andor.

Bonzo: uma espécie de sacerdote.

Espórtula: gorjeta, esmola.

Alparcas: alpargatas.


COMENTÁRIO:

Machado antecipa há mais de um século a vitória da pós-verdade

Quando dizemos que a literatura de qualidade é atemporal, estamos dizendo que não importa a época em que foi escrita, e que o tema tratado no enredo e a forma como ele foi desenvolvido pode gerar reflexão em qualquer leitor, a qualquer tempo e lugar.

Ao ler esse conto de Machado de Assis, publicado em 1882, vemos antecipada a ideia da pós-verdade, em que uma opinião, uma mentira ou uma calúnia podem valer mais que a realidade factual, contanto que a técnica e ferramenta utilizadas se sobreponham à capacidade da verdade prevalecer.

O que estamos vivendo neste início de século XXI? As fake news e as máquinas de destruição de reputações se tornaram a hegemonia da sociedade atual. 

Governos são eleitos assim, se os grupos eleitos têm mais capacidade de influenciar multidões com ferramentas de distribuição de mentiras em redes sociais. Veículos de comunicação comercial, cujos donos são magnatas, geram fake news e nada os impede de destruírem ou enganarem suas vítimas.

O que seriam as influências no comportamento dos eleitores durante o processo eleitoral dos Estados Unidos (Trump), do Brasil (Bolsonaro) e da Grã-Bretanha (Brexit) se não tivessem a influência desses sistemas baseados em manipulação através de algoritmos como sabido por todos hoje?

O bonzo ou sacerdote do conto pode ser substituído por qualquer pastor desonesto que se utiliza do conceito de Deus e de seu filho Jesus para tomar dinheiro de gente miserável e manipular essa massa de pessoas carentes para tomada de poder estatal e benefício financeiro próprio.

Isso vale para o exemplo de se destruir um país como o Brasil e ainda dizer "O Brasil acima de todos" e pregar ideias do mal, diria até do demônio, como alimentar o ódio ao invés do amor, o preconceito ao invés do respeito ao diferente, destruir a educação, a ciência, a natureza e a cultura, pregar o armamento, a morte e a tortura e dizer "Deus acima de todos".

Machado antecipou tudo isso no enganador bonzo, que ironicamente um século depois poderia ser um espelho de um certo enganador no qual um dos apelidos é "bozo".

Conto fantástico! Recomendo a leitura!

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Reflexões e conceitos contidos no conto

Virtude e saber para si só, não valeriam nada!

"a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador"

Opinião valeria mais que realidade factual (antecessora da pós-verdade)

"se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente"

Várias formas de lucro, além do financeiro

"não é só lucro o que se pode haver em moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro"

Convencer os outros de uma qualidade que não temos

"não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela" (a doutrina do Bonzo)

Nariz metafísico vale mais que nariz real

"um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado"

A perigosa capacidade de manipulação das massas pelos sofistas e retóricos

"a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu remédio"