Este blog é para reflexões literárias, filosóficas e do mundo do saber. É também para postar minhas aulas da USP. Quero partilhar tudo que aprendi com os mestres de meu curso de letras.
sexta-feira, 31 de outubro de 2008
Um magnífico solo de guitarra de Steve Vai
For the love of god - Steve Vai
É um dos melhores solos de guitarra de todos os tempos...
Um esqueleto (1875), conto de Machado de Assis
Machado de Assis. |
CAPÍTULO PRIMEIRO
Eram dez ou doze rapazes. Falavam de artes, letras e política. Alguma anedota vinha de quando em quando temperar a seriedade da conversa. Deus me perdoe! parece que até se fizeram alguns trocadilhos.
O mar batia perto na praia solitária... estilo de meditação em prosa. Mas nenhum dos doze convivas fazia caso do mar. Da noite também não, que era feia e ameaçava chuva. É provável que se a chuva caísse ninguém desse por ela, tão entretidos estavam todos em discutir os diferentes sistemas políticos, os méritos de um artista ou de um escritor, ou simplesmente em rir de uma pilhéria intercalada a tempo.
Aconteceu no meio da noite que um dos convivas falou na beleza da língua alemã. Outro conviva concordou com o primeiro a respeito das vantagens dela, dizendo que a aprendera com o Dr. Belém.
— Não conheceram o Dr. Belém? perguntou ele.
— Não, responderam todos.
— Era um homem extremamente singular. No tempo em que me ensinou alemão usava duma grande casaca que lhe chegava quase aos tornozelos e trazia na cabeça um chapéu-de-chile de abas extremamente largas.
— Devia ser pitoresco, observou um dos rapazes. Tinha instrução?
— Variadíssima. Compusera um romance, e um livro de teologia e descobrira um planeta...
— Mas esse homem?
— Esse homem vivia em Minas. Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não achou editor e preferiu rasgar os manuscritos. Quanto ao planeta comunicou a notícia à Academia das Ciências de Paris; lançou a carta no correio e esperou a resposta; a resposta não veio porque a carta foi parar a Goiás.
Um dos convivas sorriu maliciosamente para os outros, com ar de quem dizia que era muita desgraça junta. A atitude porém do narrador tirou-lhe o gosto do riso. Alberto (era o nome do narrador) tinha os olhos no chão, olhos melancólicos de quem se rememora com saudade de uma felicidade extinta. Efetivamente suspirou depois de algum tempo de muda e vaga contemplação, e continuou:
— Desculpem-me este silêncio, não me posso lembrar daquele homem sem que uma lágrima teime em rebentar-me dos olhos. Era um excêntrico, talvez não fosse, não era decerto um homem completamente bom; mas era meu amigo; não direi o único mas o maior que jamais tive na minha vida.
Como era natural, estas palavras de Alberto alteraram a disposição de espírito do auditório. O narrador ainda esteve silencioso alguns minutos. De repente sacudiu a cabeça como se expelisse lembranças importunas do passado, e disse:
— Para lhes mostrar a excentricidade do Dr. Belém basta contar-lhes a história do esqueleto.
A palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas; um romancista aplicou o ouvido para não perder nada da narração; todos esperaram ansiosamente o esqueleto do Dr. Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann.
Alberto começou a narração.
CAPÍTULO II
O Dr. Belém era um homem alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre os ombros; em repouso era reto como uma espingarda; quando andava curvava-se um pouco. Conquanto o seu olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros, e às vezes, quando ele meditava, ficava com olhos como de defunto.
Representava ter sessenta anos, mas não tinha efetivamente mais de cinquenta. O estudo o abatera muito, e os desgostos também, segundo ele dizia, nas poucas vezes em que me falara do passado, e era eu a única pessoa com quem ele se comunicava a esse respeito. Podiam contar-se-lhe três ou quatro rugas pronunciadas na cara, cuja pele era fria como o mármore e branca como a de um morto.
Um dia, justamente no fim da minha lição, perguntei-lhe se nunca fora casado. O doutor sorriu sem olhar para mim. Não insisti na pergunta; arrependi-me até de lha ter feito.
— Fui casado, disse ele, depois de algum tempo, e daqui a três meses posso dizer outra vez: sou casado.
— Vai casar?
— Vou.
— Com quem?
— Com a D. Marcelina.
D. Marcelina era uma viúva de Ouro Preto, senhora de vinte e seis anos, não formosa, mas assaz simpática, possuía alguma coisa, mas não tanto como o doutor, cujos bens orçavam por uns sessenta contos.
Não me constava até então que ele fosse casar; ninguém falara nem suspeitara tal coisa.
— Vou casar, continuou o Doutor, unicamente porque o senhor me falou nisso. Até cinco minutos antes nenhuma intenção tinha de semelhante ato. Mas a sua pergunta faz-me lembrar que eu efetivamente preciso de uma companheira; lancei os olhos da memória a todas as noivas possíveis, e nenhuma me parece mais possível do que essa. Daqui a três meses assistirá ao nosso casamento. Promete?
— Prometo, respondi eu com um riso incrédulo.
— Não será uma formosura.
— Mas é muito simpática, decerto, acudi eu.
— Simpática, educada e viúva. Minha ideia é que todos os homens deviam casar com senhoras viúvas.
— Quem casaria então com as donzelas?
— Os que não fossem homens, respondeu o velho, como o senhor e a maioria do gênero humano; mas os homens, as criaturas da minha têmpera, mas...
O doutor estacou, como se receasse entrar em maiores confidências, e tornou a falar da viúva Marcelina cujas boas qualidades louvou com entusiasmo.
— Não é tão bonita como a minha primeira esposa, disse ele. Ah! essa... Nunca a viu?
— Nunca.
— É impossível.
— É a verdade. Já o conheci viúvo, creio eu.
— Bem; mas eu nunca lha mostrei. Ande vê-la...
Levantou-se; levantei-me também. Estávamos assentados à porta; ele levou-me a um gabinete interior. Confesso que ia ao mesmo tempo curioso e aterrado. Conquanto eu fosse amigo dele e tivesse provas de que ele era meu amigo, tanto medo inspirava ele ao povo, e era efetivamente tão singular, que eu não podia esquivar-me a um tal ou qual sentimento de medo.
No fundo do gabinete havia um móvel coberto com um pano verde; o doutor tirou o pano e eu dei um grito.
Era um armário de vidro, tendo dentro um esqueleto. Ainda hoje, apesar dos anos que lá vão, e da mudança que fez o meu espírito, não posso lembrar-me daquela cena sem terror.
— É minha mulher, disse o Dr. Belém sorrindo. É bonita, não lhe parece? Está na espinha, como vê. De tanta beleza, de tanta graça, de tanta maravilha que me encantaram outrora, que a tantos mais encantaram, que lhe resta hoje? Veja, meu jovem amigo; tal é última expressão do gênero humano.
Dizendo isto, o Dr. Belém cobriu o armário com o pano e saímos do gabinete. Eu não sabia o que havia de dizer, tão impressionado me deixara aquele espetáculo.
Viemos outra vez para as nossas cadeiras ao pé da porta, e algum tempo estivemos sem dizer palavra um ao outro. O doutor olhava para o chão; eu olhava para ele. Tremiam-lhe os lábios, e a face de quando em quando se lhe contraía. Um escravo veio falar-lhe; o doutor saiu daquela espécie de letargo.
Quando ficamos sós parecia outro; falou-me risonho e jovial, com uma volubilidade que não estava nos seus usos.
— Ora bem, se eu for feliz no casamento, disse ele, ao senhor o deverei. Foi o senhor quem me deu esta ideia! E fez bem, porque até já me sinto mais rapaz. Que lhe parece este noivo?
Dizendo isto, o Dr. Belém levantou-se e fez uma pirueta, segurando nas abas da casaca, que nunca deixava, salvo quando se recolhia de noite.
— Parece-lhe capaz o noivo? disse ele.
— Sem dúvida, respondi.
— Também ela há de pensar assim. Verá, meu amigo, que eu meterei tudo num chinelo, e mais de um invejará a minha sorte. É pouco; mais de uma invejará a sorte dela. Pudera não? Não há muitos noivos como eu.
Eu não dizia nada, e o doutor continuou a falar assim durante vinte minutos. A tarde caíra de todo; e a ideia da noite e do esqueleto que ali estava a poucos passos de nós, e mais ainda as maneiras singulares que nesse dia, mais do que nos outros, mostrava o meu bom mestre, tudo isso me levou a despedir-me dele e a retirar-me para casa.
O doutor sorriu-se com o sorriso sinistro que às vezes tinha, mas não insistiu para que ficasse. Fui para casa aturdido e triste; aturdido com o que vira; triste com a responsabilidade que o doutor atirava sobre mim relativamente ao seu casamento.
Entretanto, refleti que a palavra do doutor podia não ter pronta nem remota realização. Talvez não se case nunca, nem até pense nisso. Que certeza teria ele de desposar a viúva Marcelina daí a três meses? Quem sabe até, pensei eu, se não disse aquilo para zombar comigo?
Esta ideia enterrou-se-me no espírito. No dia seguinte levantei-me convencido de que efetivamente o doutor quisera matar o tempo e juntamente aproveitar a ocasião de me mostrar o esqueleto da mulher.
Naturalmente, disse eu comigo, amou-a muito, e por esse motivo ainda a conserva. É claro que não se casará com outra; nem achará quem case com ele, tão aceita anda a superstição popular que o tem por lobisomem ou quando menos amigo íntimo do diabo... ele! o meu bom e compassivo mestre!
Com estas ideias fui logo de manhã à casa do Dr. Belém. Achei-o a almoçar sozinho, como sempre, servido por um escravo da mesma idade.
— Entre, Alberto, disse o doutor apenas me viu à porta. Quer almoçar?
— Aceito.
— João, um prato.
Almoçamos alegremente; o doutor estava como me parecia na maior parte das vezes, conversando de coisas sérias ou frívolas, misturando uma reflexão filosófica com uma pilhéria, uma anedota de rapaz com uma citação de Virgílio.
No fim do almoço tornou a falar do seu casamento.
— Mas então pensa nisso deveras?... perguntei eu.
— Por que não? Não depende senão dela; mas eu estou quase certo de que ela não recusa. Apresenta-me lá?
— Às suas ordens.
No dia seguinte era apresentado o Dr. Belém em casa da viúva Marcelina e recebido com muita afabilidade.
“Casar-se-á deveras com ela?” dizia eu a mim mesmo espantado do que via, porque, além da diferença da idade entre ele e ela, e das maneiras excêntricas dele, havia um pretendente à mão da bela viúva, o Tenente Soares.
Nem a viúva nem o tenente imaginavam as intenções do Dr. Belém; daqui podem já imaginar o pasmo de D. Marcelina quando ao cabo de oito dias, perguntou-lhe o meu mestre, se ela queria casar com ele.
— Nem com o senhor nem com outro, disse a viúva; fiz voto de não casar mais.
— Por quê? perguntou friamente o doutor.
— Porque amava muito a meu marido.
— Não tolhe isso que ame o segundo, observou o candidato sorrindo.
E depois de algum tempo de silêncio:
— Não insisto, disse ele, nem faço aqui uma cena dramática. Eu amo-a deveras, mas é um amor de filósofo, um amor como eu entendo que deviam ser todos. Entretanto deixe-me ter esperança; pedir-lhe-ei mais duas vezes a sua mão. Se da última nada alcançar consinta-me que fique sendo seu amigo.
CAPÍTULO III
O Dr. Belém foi fiel a este programa. Dali a mês pediu outra vez a mão da viúva, e teve a mesma recusa, mas talvez menos peremptória do que a primeira. Deixou passar seis semanas, e repetiu o pedido.
— Aceitou? disse eu apenas o vi vir da casa de D. Marcelina.
— Por que havia de recusar? Eu não lhe disse que me casava dentro de três meses?
— Mas então o senhor é um adivinho, um mágico?...
O doutor deu uma gargalhada, das que ele guardava para quando queria motejar de alguém ou de alguma coisa. Naquela ocasião o motejado era eu. Parece que não fiz boa cara porque o douto imediatamente ficou sério e abraçou-me dizendo:
— Oh! meu amigo, não desconfie! Conhece-me de hoje?
A ternura com que ele me disse estas palavras tornava-o outro homem. Já não tinha os tons sinistros do olhar nem a fala saccadée (vá o termo francês, não me ocorre agora o nosso) que era a sua fala característica. Abracei-o também, e falamos do casamento e da noiva.
O doutor estava alegre; apertava-me muitas vezes as mãos agradecendo-me a ideia que lhe dera; fazia seus planos de futuro. Tinha ideias de vir à corte, logo depois do casamento; aventurou a ideia de seguir para a Europa; mas apenas parecia assentado nisto, já pensava em não sair de Minas, e morrer ali, dizia ele, entre as suas montanhas.
— Já vejo que está perfeitamente noivo, disse eu; tem todos os traços característicos de um homem nas vésperas de casar.
— Parece-lhe?
— E é.
— De fato, gosto da noiva, disse ele com ar sério; é possível que eu morra antes dela; mas o mais provável é que ela morra primeiro. Nesse caso, juro desde já que irá o seu esqueleto fazer companhia ao outro.
A ideia do esqueleto fez-me estremecer. O doutor, ao dizer estas palavras, cravara os olhos no chão, profundamente absorto. Daí em diante a conversa foi menos alegre do que a princípio. Saí de lá desagradavelmente impressionado.
O casamento dentro de pouco tempo foi realidade. Ninguém queria acreditar nos seus olhos. Todos admiraram a coragem (era a palavra que diziam) da viúva Marcelina, que não recuava àquele grande sacrifício.
Sacrifício não era. A moça parecia contente e feliz. Os parabéns que lhe davam eram irônicos, mas ela os recebia com muito gosto e seriedade. O Tenente Soares não lhe deu os parabéns; estava furioso; escreveu-lhe um bilhete em que lhe dizia todas as coisas que em tais circunstâncias se podem dizer.
O casamento foi celebrado pouco depois do prazo que o Dr. Belém marcara na conversa que tivera comigo e que eu já referi. Foi um verdadeiro acontecimento na capital de Minas. Durante oito dias não se falava senão no caso impossível; afinal, passou a novidade, como todas as coisas deste mundo, e ninguém mais tratou dos noivos.
Fui jantar com eles no fim de uma semana; D. Marcelina parecia mais que nunca feliz; o Dr. Belém não o estava menos. Até parecia outro. A mulher começava a influir nele, sendo já uma das primeiras conseqüências a supressão da singular casaca. O doutor consentiu em vestir-se menos excentricamente.
— Veste-me como quiseres, dizia ele à mulher; o que não poderás fazer nunca é mudar-me a alma. Isso nunca.
— Nem quero.
— Nem podes.
Parecia que os dois estavam destinados a gozar uma eterna felicidade. No fim de um mês fui lá, e achei-a triste.
“Oh! disse eu comigo, cedo começam os arrufos.”
O doutor estava como sempre. Líamos então e comentávamos à nossa maneira o Fausto. Nesse dia pareceu-me o Dr. Belém mais perspicaz e engenhoso que nunca. Notei, entretanto, uma singular pretensão: um desejo de se parecer com Mefistófeles.
Aqui confesso que não pude deixar de rir.
— Doutor, disse eu, creio que o senhor abusa da amizade que lhe tenho para zombar comigo.
— Sim?
— Aproveita-se da opinião de excêntrico para me fazer crer que é o diabo...
Ouvindo esta última palavra, o doutor persignou-se todo, e foi a melhor afirmativa que me poderia fazer de que não ambicionava confundir-se com o personagem aludido. Sorriu-se depois benevolamente, tomou uma pitada e disse:
— Ilude-se meu amigo, quando me atribui semelhante ideia, do mesmo modo que se engana quando supõe que Mefistófeles é isso que diz.
— Essa agora!...
— Noutra ocasião lhe direi as minhas razões. Por agora vamos jantar.
— Obrigado. Devo ir jantar com meu cunhado. Mas, se me permite ficarei ainda algum tempo aqui lendo o seu Fausto.
O doutor não pôs objeção; eu era íntimo da casa. Saiu dali para a sala do jantar. Li ainda durante vinte minutos, findos os quais fechei o livro e fui despedir-me do Dr. Belém e sua senhora.
Caminhei por um corredor fora que ia ter à sala do jantar. Ouvia mover os pratos, mas nenhuma palavra soltavam os dois casados.
“O arrufo continua”, pensei eu.
Fui andando... Mas qual não foi a minha surpresa ao chegar à porta? O doutor estava de costas, não me podia ver. A mulher tinha os olhos no prato. Entre ele e ela, sentado numa cadeira vi o esqueleto. Estaquei aterrado e trêmulo. Que queria dizer aquilo? Perdia-me em conjeturas; cheguei a dar um passo para falar ao doutor, mas não me atrevi; voltei pelo mesmo caminho, peguei no chapéu, e deitei a correr pela rua fora.
Em casa de meu cunhado todos notaram os sinais de temor que eu ainda levava no rosto. Perguntaram-me se havia visto alguma alma do outro mundo. Respondi sorrindo que sim; mas nada contei do que acabava de presenciar.
Durante três dias não fui à casa do doutor. Era medo, não do esqueleto, mas do dono da casa, que se me afigurava ser um homem mau ou um homem doido. Todavia, ardia por saber a razão da presença do esqueleto na mesa do jantar. D. Marcelina podia dizer-me tudo; mas como indagaria isso dela, se o doutor estava quase sempre em casa?
No terceiro dia apareceu-me em casa o Doutor Belém.
— Três dias! disse ele, há já três dias que eu não tenho a fortuna de o ver. Onde anda? Está mal conosco?
— Tenho andado doente, respondi eu, sem saber o que dizia.
— E não me mandou dizer nada, ingrato! Já não é meu amigo.
A doçura destas palavras dissipou os meus escrúpulos. Era singular como aquele homem, que por certos hábitos, maneiras e ideias, e até pela expressão física, assustava a muita gente e dava azo às fantasias da superstição popular, era singular, repito, como me falava às vezes com uma meiguice incomparável e um tom patriarcalmente benévolo.
Conversamos um pouco e fui obrigado a acompanhá-lo à casa. A mulher ainda me pareceu triste, mas um pouco menos que da outra vez. Ele tratava-a com muita ternura e consideração, e ela se não respondia alegre, ao menos falava com igual meiguice.
CAPÍTULO IV
No meio da conversa vieram dizer que o jantar estava na mesa.
— Agora há de jantar conosco, disse ele.
— Não posso, balbuciei eu, devo ir...
— Não deve ir a nenhuma parte, atalhou o doutor; parece-me que quer fugir de mim. Marcelina, pede ao Dr. Alberto que jante conosco.
D. Marcelina repetiu o pedido do marido, mas com um ar de constrangimento visível. Ia recusar de novo, mas o doutor teve a precaução de me agarrar no braço e foi impossível recusar.
— Deixe-me ao menos dar o braço a sua senhora, disse eu.
— Pois não.
Dei o braço a D. Marcelina que estremeceu. O doutor passou adiante. Eu inclinei a boca ao ouvido da pobre senhora e disse baixinho:
— Que mistério há?
D. Marcelina estremeceu outra vez e com um sinal impôs-me silêncio.
Chegamos à sala de jantar.
Apesar de já ter presenciado a cena do outro dia não pude resistir à impressão que me causou a vista do esqueleto que lá estava na cadeira em que o vira com os braços sobre a mesa.
Era horrível.
— Já lhe apresentei minha primeira mulher, disse o doutor para mim; são conhecidos antigos.
Sentamo-nos à mesa; o esqueleto ficou entre ele e D. Marcelina; eu fiquei ao lado desta. Até então não pude dizer palavra; era porém natural que exprimisse o meu espanto.
— Doutor, disse eu, respeito os seus hábitos; mas não me dará a explicação deste?
— Este qual? disse ele.
Com um gesto indiquei-lhe o esqueleto.
— Ah!... respondeu o doutor; um hábito natural; janto com minhas duas mulheres.
— Confesse ao menos que é um uso original.
— Queria que eu copiasse os outros?
— Não, mas a piedade com os mortos...
Atrevi-me a falar assim porque, além de me parecer aquilo uma profanação, a melancolia da mulher parecia pedir que alguém falasse duramente ao marido e procurasse trazê-lo a melhor caminho.
O doutor deu uma das suas singulares gargalhadas, e estendendo-me o prato de sopa, replicou:
— O senhor fala de uma piedade de convenção; eu sou pio à minha maneira. Não é respeitar uma criatura que amamos em vida, o trazê-la assim conosco, depois de morta?
Não respondi coisa nenhuma a estas palavras do doutor. Comi silenciosamente a sopa, e o mesmo fez a mulher, enquanto ele continuou a desenvolver as suas ideias a respeito dos mortos.
— O medo dos mortos, disse ele, não é só uma fraqueza, é um insulto, uma perversidade do coração. Pela minha parte dou-me melhor com os defuntos do que com os vivos.
E depois de um silêncio:
— Confesse, confesse que está com medo.
Fiz-lhe um sinal negativo com a cabeça.
— É medo, é, como esta senhora que está ali transida de susto, porque ambos são dois maricas. Que há entretanto neste esqueleto, que possa meter medo? Não lhes digo que seja bonito; não é bonito segundo a vida, mas é formosíssimo segundo a morte. Lembrem-se que isto somos nós também; nós temos de mais um pouco de carne.
— Só? perguntei eu intencionalmente.
O doutor sorriu-se e respondeu:
— Só.
Parece que fiz um gesto de aborrecimento, porque ele continuou logo:
— Não tome ao pé da letra o que lhe disse. Eu também creio na alma; não creio só, demonstro-a, o que não é para todos. Mas a alma foi-se embora; não podemos retê-la; guardemos isto ao menos, que é uma parte da pessoa amada.
Ao terminar estas palavras, o doutor beijou respeitosamente a mão do esqueleto. Estremeci e olhei para D. Marcelina. Esta fechara os olhos. Eu estava ansioso por terminar aquela cena que realmente me repugnava presenciar. O doutor não parecia reparar em nada. Continuou a falar no mesmo assunto, e por mais esforços que eu fizesse para o desviar dele era impossível.
Estávamos à sobremesa quando o doutor, interrompendo um silêncio que durava já havia dez minutos perguntou:
— E segundo me parece, ainda lhe não contei a história deste esqueleto, quero dizer a história de minha mulher?
— Não me lembra, murmurei.
— E a ti? disse ele voltando-se para a mulher.
— Já.
— Foi um crime, continuou ele.
— Um crime?
— Cometido por mim.
— Pelo senhor?
— É verdade.
O doutor concluiu um pedaço de queijo, bebeu o resto do vinho que tinha no copo, e repetiu:
— É verdade, um crime de que fui autor. Minha mulher era muito amada de seu marido; não admira, eu sou todo coração. Um dia porém, suspeitei que me houvesse traído; vieram dizer-me que um moço da vizinhança era seu amante. Algumas aparências me enganaram. Um dia declarei-lhe que sabia tudo, e que ia puni-la do que me havia feito. Luísa caiu-me aos pés banhada em lágrimas protestando pela sua inocência. Eu estava cego; matei-a.
Imagina-se, não se descreve a impressão de horror que estas palavras me causaram. Os cabelos ficaram-me em pé. Olhei para aquele homem, para o esqueleto, para a senhora, e passava a mão pela testa, para ver se efetivamente estava acordado, ou se aquilo era apenas um sonho.
O doutor tinha os olhos fitos no esqueleto e uma lágrima lhe caía lentamente pela face. Estivemos todos calados durante cerca de dez minutos.
O doutor rompeu o silêncio.
— Tempos depois, quando o crime estava de há muito cometido, sem que a justiça o soubesse, descobri que Luísa era inocente. A dor que então sofri foi indescritível; eu tinha sido o algoz de um anjo.
Estas palavras foram ditas com tal amargura que me comoveram profundamente. Era claro que ainda então, após longos anos do terrível acontecimento, o doutor sentia o remorso do que praticara e a mágoa de ter perdido a esposa.
A própria Marcelina parecia comovida. Mas a comoção dela era também medo; segundo vim a saber depois, ela receava que no marido não estivessem íntegras as faculdades mentais.
Era um engano.
O doutor era, sim, um homem singular e excêntrico; doido lhe chamavam os que, por se pretenderem mais espertos que o vulgo, repeliam os contos da superstição.
Estivemos calados algum tempo e dessa vez foi ainda ele que interrompeu o silêncio.
— Não lhes direi como obtive o esqueleto de minha mulher. Aqui o tenho e o conservarei até à minha morte. Agora naturalmente deseja saber por que motivo o trago para a mesa depois que me casei.
Não respondi com os lábios, mas os meus olhos disseram-lhe que efetivamente desejava saber a explicação daquele mistério.
— É simples, continuou ele; é para que minha segunda mulher esteja sempre ao pé da minha vítima, a fim de que se não esqueça nunca dos seus deveres, porque, então como sempre, é mui provável que eu não procure apurar a verdade; farei justiça por minhas mãos.
Esta última revelação do doutor pôs termo à minha paciência. Não sei o que lhe disse, mas lembra-me que ele ouviu-me com o sorriso benévolo que tinha às vezes, e respondeu-me com esta simples palavra:
— Criança!
Saí pouco depois do jantar, resolvido a lá não voltar nunca.
CAPÍTULO V
A promessa não foi cumprida.
Mais de uma vez o Doutor Belém mandou à casa chamar-me; não fui. Veio duas ou três vezes instar comigo que lá fosse jantar com ele.
— Ou, pelo menos, conversar, concluiu.
Pretextei alguma coisa e não fui.
Um dia porém, recebi um bilhete da mulher. Dizia-me que era eu a única pessoa estranha que lá ia; pedia-me que não a abandonasse.
Fui.
Eram então passados quinze dias depois do célebre jantar em que o doutor me referiu a história do esqueleto. A situação entre os dois era a mesma; aparente afabilidade da parte dela, mas na realidade medo. O doutor mostrava-se afável e terno, como sempre o vira com ela.
Justamente nesse dia, anunciou-me ele que pretendia ir a uma jornada dali a algumas léguas.
— Mas vou só, disse ele, e desejo que o senhor me faça companhia a minha mulher vindo aqui algumas vezes.
Recusei.
— Por quê?
— Doutor, por que razão, sem urgente necessidade, daremos pasto às más línguas? Que se dirá...
— Tem razão, atalhou ele; ao menos, faça-me uma coisa.
— O quê?
— Faça com que em casa de sua irmã possa Marcelina ir passar as poucas semanas de minha ausência.
— Isso com muito gosto.
Minha irmã concordou em receber a mulher do Dr. Belém, que daí a pouco saía da capital para o interior. Sua despedida foi terna e amigável para com ambos nós, a mulher e eu; fomos os dois, e mais minha irmã e meu cunhado acompanhá-lo até certa distância, e voltamos para casa.
Pude então conversar com D. Marcelina, que me comunicou os seus receios a respeito da razão do marido. Dissuadi-a disso; já disse qual era a minha opinião a respeito do Dr. Belém.
Ela referiu-me então que a narração da morte da mulher já ele lha havia feito, prometendo-lhe igual sorte no caso de faltar aos seus deveres.
— Nem as aparências te salvarão, acrescentou ele.
Disse-me mais que era seu costume beijar repetidas vezes o esqueleto da primeira mulher e dirigir-lhe muitas palavras de ternura e amor. Uma noite, estando a sonhar com ela, levantou-se da cama e foi abraçar o esqueleto pedindo-lhe perdão.
Em nossa casa todos eram de opinião que D. Marcelina não voltasse mais para a companhia do Dr. Belém. Eu era de opinião oposta.
— Ele é bom, dizia eu, apesar de tudo; tem extravagâncias, mas é um bom coração.
No fim de um mês recebemos uma carta do doutor, em que dizia à mulher fosse ter ao lugar onde ele se achava, e que eu fizesse o favor de a acompanhar.
Recusei ir só com ela.
Minha irmã e meu cunhado ofereceram-se porém para acompanhá-la.
Fomos todos.
Havia entretanto uma recomendação na carta do doutor, recomendação essencial; ordenava ele à mulher que levasse consigo o esqueleto.
— Que esquisitice nova é essa? disse meu cunhado.
— Há de ver, suspirou melancolicamente D. Marcelina, que o único motivo desta minha viagem, são as saudades que ele tem do esqueleto.
Eu nada disse, mas pensei que assim fosse.
Saímos todos em demanda do lugar onde nos esperava o doutor.
Íamos já perto, quando ele nos apareceu e veio alegremente cumprimentar-nos. Notei que não tinha a ternura de costume com a mulher, antes me pareceu frio. Mas isso foi obra de pouco tempo; daí a uma hora voltara a ser o que sempre fora.
Passamos dois dias na pequena vila em que o doutor estava, dizia ele, para examinar umas plantas, porque também era botânico. Ao fim de dois dias dispúnhamos a voltar para a capital; ele porém pediu que nos demorássemos ainda vinte e quatro horas e voltaríamos todos juntos.
Acedemos.
No dia seguinte de manhã convidou a mulher a ir ver umas lindas parasitas no mato que ficava perto. A mulher estremeceu, mas não ousou recusar.
— Vem também? disse ele.
— Vou, respondi.
A mulher cobrou alma nova e deitou-me um olhar de agradecimento. O doutor sorriu à socapa. Não compreendi logo o motivo do riso; mas daí a pouco tempo tinha a explicação.
Fomos ver as parasitas, ele adiante com a mulher, eu atrás de ambos, e todos três silenciosos.
Não tardou que um riacho aparecesse aos nossos olhos; mas eu mal pude ver o riacho; o que eu vi, o que me fez recuar um passo, foi um esqueleto.
Dei um grito.
— Um esqueleto! exclamou D. Marcelina.
— Descansem, disse o doutor, é o de minha primeira mulher.
— Mas...
— Trouxe-o esta madrugada para aqui.
Nenhum de nós compreendia nada.
O doutor sentou-se numa pedra.
— Alberto, disse ele, e tu, Marcelina. Outro crime devia ser cometido nesta ocasião; mas tanto te amo, Alberto, tanto te amei, Marcelina, que eu prefiro deixar de cumprir a minha promessa...
Ia interrompê-lo; mas ele não me deu ocasião.
— Vocês amam-se, disse ele.
Marcelina deu um grito; eu ia protestar.
— Amam-se que eu sei, continuou friamente o doutor; não importa! É natural. Quem amaria um velho estúrdio como eu? Paciência. Amem-se; eu só fui amado uma vez; foi por esta.
Dizendo isto abraçou-se ao esqueleto.
— Doutor, pense no que está dizendo...
— Já pensei...
— Mas esta senhora é inocente. Não vê aquelas lágrimas?
— Conheço essas lágrimas; lágrimas não são argumentos. Amam-se, que eu sei; desejo que sejam felizes, porque eu fui e sou teu amigo, Alberto. Não merecia certamente isso...
— Oh! meu amigo, interrompi eu, veja bem o que está dizendo; já uma vez foi levado a cometer um crime por suspeitas que depois soube serem infundadas. Ainda hoje padece o remorso do que então fez. Reflita, veja bem se eu posso tolerar semelhante calúnia.
Ele encolheu os ombros, meteu a mão no bolso, e tirou um papel e deu-mo a ler. Era uma carta anônima; soube depois que fora escrita pelo Soares.
— Isto é indigno! clamei.
— Talvez, murmurou ele.
E depois de um silêncio:
— Em todo o caso, minha resolução está assentada, disse o doutor. Quero fazê-los felizes, e só tenho um meio: é deixá-los. Vou com a mulher que sempre me amou. Adeus!
O doutor abraçou o esqueleto e afastou-se de nós. Corri atrás dele; gritei; tudo foi inútil; ele metera-se no mato rapidamente, e demais a mulher ficara desmaiada no chão.
Vim socorrê-la; chamei gente. Daí a uma hora, a pobre moça, viúva sem o ser, lavava-se em lágrimas de aflição.
CAPÍTULO VI
Alberto acabara a história.
— Mas é um doido esse teu Dr. Belém! exclamou um dos convivas rompendo o silêncio de terror em que ficara o auditório.
— Ele doido? disse Alberto. Um doido seria efetivamente se porventura esse homem tivesse existido. Mas o Dr. Belém não existiu nunca, eu quis apenas fazer apetite para tomar chá. Mandem vir o chá.
É inútil dizer o efeito desta declaração.
FIM
-----------------------------
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1875.
Muito bom este conto! Ele foi incluído na coletânea de contos de Escritos Avulsos I, de Machado de Assis, da Editora Globo, 1997.
Machado faz referência ao clássico de Goethe, Fausto e Mefistófeles, e é perceptível as referências aos contos de Edgar Alan Poe, um clássico no gênero suspense e horror.
O que somos é feito do que fomos...
Cara,
Esta frase de Antonio Candido, que fecha o prefácio à 6ª edição do livro Formação da Literatura Brasileira, é muito verdadeira.
"O que somos é feito do que fomos, de modo que convém aceitar com serenidade o peso negativo das etapas vencidas."
É isso! Que eu me lembre disso toda vez que pesar sobre meus ombros os diversos erros cometidos nessa trilha já percorrida da existência.
William
Post Scriptum (0:40h de sábado 13/5/17):
Faleceu nesta sexta-feira 12 de maio, aos 98 anos de idade, o professor Antonio Candido. Que tristeza perder nossas referências!
Professor Candido, presente!
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
Leitura: "Poética" (Bandeira) por William Mendes
Sarau Refeitório Cultural 26/09/08
E, de repente, descubro que o companheiro Hugo filmou nosso sarau e, pior, aqui tem um maluco lendo "Poética" de Manuel Bandeira.
Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto [expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. [diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no [dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora [de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do [amante exemplar com cem modelos de cartas e as [diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Sarau Refeitório Cultural em 26/9/08
Refeição Cultural
Aqui um momento musical de nosso sarau, com várias participações instrumentais.
Antonio Candido - Formação da Literatura Brasileira (2)
Lendo o prefácio à segunda edição, nota-se o reforço feito pelo autor no objetivo principal da obra:
"Ora, o presente livro é sobretudo um estudo de obras; a sua validade deve ser encarada em função do que traz ou deixa de trazer a este respeito."
"Ora, o presente livro é sobretudo um estudo de obras; a sua validade deve ser encarada em função do que traz ou deixa de trazer a este respeito."
E ele completa mais adiante:
"... encarar este livro como uma espécie de vasta teoria da literatura brasileira em dois volumes, à maneira do que fizeram alguns, é passar à margem da contribuição que desejou trazer para o esclarecimento de dois dos seus períodos."
Antonio Candido defende a tese da literatura como sistema:
"Mas há várias maneiras de encarar e de estudar a literatura. Suponhamos que, para se configurar plenamente como sistema articulado, ela dependa da existência do triângulo 'autor-obra-público', em interação dinâmica, e de uma certa continuidade da tradição."
Outra ideia importante defendida por Candido é de que a nossa literatura, bem como as demais latino-americanas, é uma literatura empenhada:
"Quero me referir à definição da nossa literatura como eminentemente interessada. Não quero dizer que seja 'social', nem que deseje tomar partido ideologicamente. Mas apenas que é toda voltada, no intuito dos escritores ou na opinião dos críticos, para a construção duma cultura válida no país... A literatura do Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada por esse compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas dos países de velha cultura."
"... encarar este livro como uma espécie de vasta teoria da literatura brasileira em dois volumes, à maneira do que fizeram alguns, é passar à margem da contribuição que desejou trazer para o esclarecimento de dois dos seus períodos."
Antonio Candido defende a tese da literatura como sistema:
"Mas há várias maneiras de encarar e de estudar a literatura. Suponhamos que, para se configurar plenamente como sistema articulado, ela dependa da existência do triângulo 'autor-obra-público', em interação dinâmica, e de uma certa continuidade da tradição."
Outra ideia importante defendida por Candido é de que a nossa literatura, bem como as demais latino-americanas, é uma literatura empenhada:
"Quero me referir à definição da nossa literatura como eminentemente interessada. Não quero dizer que seja 'social', nem que deseje tomar partido ideologicamente. Mas apenas que é toda voltada, no intuito dos escritores ou na opinião dos críticos, para a construção duma cultura válida no país... A literatura do Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada por esse compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas dos países de velha cultura."
William
A última receita (1875), conto de Machado de Assis
Machado de Assis, 1905, por Henrique Bernardelli. |
(as palavras ou trechos sublinhados são marcações do blog, por curiosidade ou por terem chamado a atenção)
Chamou-se um médico.
Havia justamente na vizinhança um médico, formado de pouco, e recente morador na localidade. Era o Dr. Avelar, sujeito de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio o Dr. Avelar na manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a doente e reconheceu que a moléstia não passava de uma constipação grave. Teve entretanto a prudência de não dizer o que era, como aquele médico da anedota do bicho no ouvido, anedota que o povo conta, e que eu contaria também, se me sobrasse papel.
O Dr. Avelar limitou-se a torcer o nariz quando examinou a enferma, e a receitar dois ou três remédios, dos quais só um era útil; o resto figurava no fundo do quadro.
D. Paula tomou os remédios como quem não queria deixar a vida. Havia razão. Apenas dois anos fora casada, e contava apenas vinte e quatro anos. Havia já treze meses que lhe morria o marido. Apenas entrara no pórtico do matrimônio.
A esta circunstância é justo acrescentar mais duas; era bonita e tinha alguma coisa de seu. Três razões para agarrar-se à vida como o náufrago a uma tábua de salvação.
Uma única razão haveria para que ela aborrecesse o mundo: era se tivesse realmente saudades do marido. Mas não tinha. O casamento fora um arranjo de família e dele próprio; Paula aceitou o arranjo sem murmurar. Honrou o casamento, mas não deu ao marido nem estima nem amor. Viúva dois anos depois, e ainda moça, é claro que a vida para ela começava apenas. A ideia de morrer seria para ela não só a maior de todas as calamidades, mas também a mais desastrada de todas as tolices.
Não quis morrer nem caso era de morte.
Os remédios foram tomados pontualmente; o médico mostrou-se assíduo; dentro de poucos dias, três a quatro, estava restabelecida a interessante enferma.
De todo?
Não.
Quando o médico voltou no quinto dia, achou-a sentada na sala, envolvida em grande roupão, com os pés numa almofada, o rosto extremamente pálido, e muito mais ainda por causa da pouca luz.
O estado era natural em que se levantava da cama; mas a viuvinha alegou ainda umas dores de cabeça, a que o médico chamou nevralgia, e uns temores, que foram classificados no capítulo dos nervos.
— Serão graves moléstias? perguntou ela.
— Oh! não, minha senhora, respondeu Avelar, são achaques aborrecidos, mas não graves, e geralmente próprios de doentes formosas.
Paula sorriu com um ar tão triste que fazia duvidar do prazer com que ouviu estas palavras do médico.
— Dá-me porém remédios, não? perguntou ela.
— Sem dúvida.
Avelar receitou efetivamente alguma coisa e prometeu voltar no dia seguinte.
A tia era surda, como sabemos, não ouvia nada da conversa entre os dois. Mas não era tola; começou a reparar que a filha ficava mais doente quando se aproximava a chegada do médico. Além disso nutria dúvidas sérias acerca da aplicação exata dos remédios. O certo é porém que Paula, tão amiga de bailes e passeios, parecia realmente doente porque não saía de casa.
Notou igualmente a tia que, pouco antes da hora do médico, a sobrinha fazia uma aplicação mais copiosa de pó-de-arroz. Paula era morena; ficava muito branca. A meia luz da sala, os xales, o ar mórbido tornavam-lhe a palidez extremamente verossímil.
A tia não parou nesse ponto; foi ainda além. Não era médico o Avelar? Naturalmente devia saber se realmente estava enferma a viúva. Interrogando o médico, asseverou que a viúva estava muito mal, e prescreveu-lhe o mais absoluto repouso.
Tal era a situação da enferma e do facultativo.
Um dia em que este entrou achou-a folheando um livro. Estava com a palidez de costume e o mesmo ar abatido.
— Como vai a minha doente? disse familiarmente o Dr. Avelar.
— Mal.
— Mal?
— Horrorosamente mal... Que lhe parece o pulso?
Avelar examinou-lhe o pulso.
— Regular, disse ele. A tez está um tanto pálida, mas os olhos parecem bons... Houve algum ataque?
— Não; mas sinto-me desfalecida.
— Deu o passeio que lhe aconselhei?
— Não tive ânimo.
— Fez mal. Não passeou e está lendo...
— Um livro inocente.
— Inocente?
O médico pegou no livro e examinou-lhe a lombada.
— Um livro diabólico! disse ele atirando-o para cima da mesa.
— Por quê?
— Livro de poeta, livro para namorados, minha senhora, que é uma casta de doentes terríveis. Não se curam eles; ou raramente se curam; mas há pior, que é adoecerem os sãos. Peço-lhe licença para confiscar o livro.
— Uma distração! murmurou Paula com uma doçura capaz de vencer um tirano.
Mas o médico mostrou-se firme.
— Uma perversão, minha senhora! Em ficando boa pode ler se quiser todos os poetas do século; antes, não.
Paula ouviu esta palavra com singular, mas disfarçada alegria.
— Parece-lhe então que estou muito doente? disse ela.
— Muito, não digo; Tem ainda um resto de abalo que só pode desaparecer com o tempo e um regímen severo.
— Severo demais.
— Mas necessário...
— Duas coisas lastimo sobre todas.
— Quais?
— A pimenta e o café.
— Oh!
— É o que lhe digo. Não tomar café nem pimenta é o limite da paciência humana. Quinze dias mais deste regímen ou desobedeço ou expiro.
— Nesse caso, expire, disse Avelar sorrindo.
— Acha melhor?
— Acho igualmente mau. O remorso, porém, será meu só, enquanto que se V. Ex.ª desobedecer terá os seus últimos instantes amargurados por um tardio arrependimento. Melhor é morrer vítima que culpada.
— Melhor é não morrer nem culpada nem vítima.
— Nesse caso não tome pimenta nem café.
A leitora que acaba de ler esta conversa, admirar-se-ia muito se visse a nossa doente nesse mesmo dia ao jantar: teve pimenta à farta e bebeu excelente café no fim. Não admira porque era o seu costume. A tia admirava-se com razão de uma doença que consentia tais liberdades; a sobrinha não se explicava cabalmente a este respeito.
Choviam convites de jantares e bailes. A viuvinha recusava-os todos por causa do seu mau estado de saúde.
Foi uma verdadeira calamidade.
Entraram a chover as visitas e bilhetes. Muitas pessoas achavam que a doença devia ser interna, muito interna, profundamente interna, visto que lhe não apareciam sinais no rosto. Os nervos (eternos caluniados!) foram a explicação que geralmente se deu à singular moléstia da moça.
Três meses correram assim, sem que a doença de Paula cedesse uma linha aos esforços do médico. Os esforços do médico não podiam ser maiores; de dois em dois dias uma receita. Se a doente se esquecia do seu estado e estava a falar e a corar como quem tinha saúde, o médico era o primeiro a lembrar-lhe o perigo, e ela obedecia logo entregando-se à mais prudente inação.
Às vezes zangava-se.
— Todos os senhores são uns bárbaros, dizia ela.
— Uns bárbaros... necessários, respondia Avelar sorrindo.
E acrescentava:
— Eu não direi o que são as doentes.
— Diga sempre.
— Não digo.
— Caprichosas?
— Mais.
— Rebeldes?
— Menos.
— Impertinentes?
— Sim. Algumas são impertinentes e amáveis.
— Como eu.
— Naturalmente.
— Já o esperava, dizia a viúva Lemos sorrindo. Sabe por que razão lhe perdoo tudo? É porque é médico. Um médico tem carta branca para gracejar conosco; isso mesmo nos dá saúde.
Neste ponto levantou-se.
— Parece-me até que já estou melhor.
— Parece e está... quero dizer, está muito mal.
— Muito mal?
— Não, muito mal, não; não está boa...
— Meteu-me um susto!
Seria realmente zombar do leitor o explicar-lhe que a doente e o médico estavam a pender um para o outro; que a doente sofria tanto como o Corcovado, e que o médico conhecia cabalmente a sua perfeita saúde. Gostavam um do outro sem se atreverem a dizer a verdade, simplesmente pelo receio de se enganarem. O meio de se falarem todos os dias era aquele.
Mas gostavam eles já antes da fatal constipação do baile? Não. Até então ignoravam a existência um do outro. A doença favoreceu o encontro; o encontro do coração; o coração favorecia desde logo o casamento, se tivessem caminhado em linha reta, em vez dos rodeios em que andavam.
Quando Paula ficou boa da constipação adoeceu do coração; não tendo outro recurso fingiu-se doente. O médico, que pela sua parte desejava isso mesmo exagerou ainda as invenções da suposta enferma.
A tia, sendo surda, assistia inutilmente aos diálogos da doente com o médico. Um dia escreveu a este pedindo-lhe que apressasse a cura da sobrinha. Avelar desconfiou da carta a princípio. Seria uma despedida? Podia ser pelo menos uma desconfiança. Respondeu que a moléstia de D. Paula era, aparentemente insignificante, mas podia tornar-se grave sem um regímen severo, que ele lhe recomendava sempre.
A situação, entretanto, prolongava-se. A doente estava cansada da doença, e o médico da medicina. Ambos eles começaram a desconfiar que não eram mal aceitos. O negócio entretanto não caminhava muito.
Um dia Avelar entrou triste em casa da viúva.
— Jesus! exclamou sorrindo a viúva; ninguém dirá que é o médico. Parece o doente.
— Doente de lástima, disse Avelar abanando a cabeça; por outros termos, é a lástima que me dá este ar enfermo.
— Lástima de quê?
— De V.Ex.ª.
— De mim?
— É verdade.
A moça riu-se consigo mesma; todavia esperou a explicação.
Houve um silêncio.
No fim dele:
— Sabe, disse o médico, sabe que está muito mal?
— Eu?
Avelar fez um gesto afirmativo.
— Já o sabia, suspirou a doente.
— Não digo que tudo esteja perdido, continuou o médico, mas nada se perde em prevenir.
— Então...
— Coragem!
— Fale.
— Mande chamar o padre.
— Aconselha-me a confissão?
— É indispensável.
— Perderam-se todas as esperanças?
— Todas. Confissão... e banhos.
A viúva soltou uma risada.
— E banhos?
— Banhos de igreja.
Outra risada.
— Aconselha-me então o casamento.
— Justo.
— Imagino que está gracejando.
— Estou falando muito sério. O remédio não é novo nem desprezível. Todas as semanas lá vão muitos enfermos, e dão-se bem alguns deles. É um específico inventado desde muitos séculos e que provavelmente só acabará no último dia do mundo. Pela minha parte nada mais tenho que fazer.
Quando a viuvinha menos esperava, Avelar levantou-se e saiu. Falava sério ou gracejava? Dois dias se passaram sem que o médico voltasse. A doente estava triste; a tia aflita; houve ideia de mandar chamar outro médico. Recusou-a a doente.
— Então só um médico acertou com a tua moléstia?
— Talvez.
No fim de três dias recebeu a viúva Lemos uma carta do médico.
Abriu-a.
Dizia assim:
É absolutamente impossível esconder por mais tempo o que sinto por V. Ex.ª. Amo-a.
Sua moléstia precisa de uma última receita, verdadeiro remédio para quem ama, — sim, porque V. Ex.ª também me ama. Que razão obrigaria a negá-lo?
Se sua resposta for afirmativa haverá mais dois entes felizes neste mundo.
Se negativa...
Adeus!
A carta foi lida com explosão de entusiasmo; o médico foi chamado a toda a pressa, para receber e dar saúde. Casaram-se os dois daí a quarenta dias.
Tal é a história da Última Receita.
FIM
-------------------------
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1875. Conto reunido por Machado em livro posteriormente. Na minha Obras Completas, da Editora Globo, 1997, está no volume Escritos Avulsos I.
COMENTÁRIO BREVE
"A viúva Lemos adoecera; uns dizem que dos nervos, outros que de saudades do marido. Fosse o que fosse, a verdade é que adoecera, em certa noite de setembro, ao regressar de um baile. Morava então no Andaraí, em companhia de uma tia surda e devota. A doença não parecia coisa de cuidado; todavia era necessário fazer alguma coisa. Que coisa seria? Na opinião da tia um cozimento de altéia e um rosário a não sei que santo do céu eram remédios infalíveis. D. Paula (a viúva) não contestava a eficácia dos remédios da tia, mas opinava por um médico.
Chamou-se um médico.
Havia justamente na vizinhança um médico, formado de pouco, e recente morador na localidade. Era o dr. Avelar, sujeito de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio o dr. Avelar na manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a doente e reconheceu que a moléstia não passava de uma constipação grave. Teve entretanto a prudência de não dizer o que era, como aquele médico da anedota do bicho no ouvido, anedota que o povo conta, e que eu contaria também, se me sobrasse papel."
Contozinho tão básico e previsível que basta a leitura dos 3 primeiros parágrafos para que o leitor atento (ou leitora, como o narrador sempre diz) já seja capaz de descobrir o enredo e o final da história.
No entanto, quem conta a estória é Machado, então não é um "contozinho" como eu mesmo disse no parágrafo acima. O escritor não deixa de apresentar características básicas da sociedade em que vivia.
Através desse conto é possível ver a profissão dos médicos em ação, no bom e no mal sentido; os nomes dos males que acometiam as pessoas naquela época; a crítica aos costumes etc.
É isso! Na minha opinião, cada narrativa de Machado de Assis traz prazer e esse é um dos maiores benefícios da leitura.
William
Miloca - Conto de Machado de Assis, de 1874
Machado de Assis. |
CAPÍTULO I
D. Pulquéria da Assunção era uma senhora de seus sessenta anos, arguta, devota, gorda, paciente, crônica viva, catecismo ambulante. Era viúva de um capitão de cavalaria que morrera em Monte Caseros deixando-lhe uma escassa pensão e a boa vontade de um irmão mais moço que possuía alguma coisa. Rodrigo era o nome desse único parente a quem o Capitão Lúcio confiara D. Pulquéria na ocasião de partir para o Rio da Prata. Era bom homem, generoso e franco; D. Pulquéria não sentiu muito por esse lado a morte do marido.
D. Pulquéria da Assunção era uma senhora de seus sessenta anos, arguta, devota, gorda, paciente, crônica viva, catecismo ambulante. Era viúva de um capitão de cavalaria que morrera em Monte Caseros deixando-lhe uma escassa pensão e a boa vontade de um irmão mais moço que possuía alguma coisa. Rodrigo era o nome desse único parente a quem o Capitão Lúcio confiara D. Pulquéria na ocasião de partir para o Rio da Prata. Era bom homem, generoso e franco; D. Pulquéria não sentiu muito por esse lado a morte do marido.
Infelizmente, o cunhado não era tão remediado como parecia à viúva, e além disso não tinha meios nem tino para fazer crescer os poucos cabedais que ajuntara durante longos anos no negócio de armarinho. O estabelecimento de Rodrigo, excelente e afreguesado em outros tempos, não podia competir com os muitos estabelecimentos modernos que outros comerciantes abriram no mesmo bairro. Rodrigo vendia de vez em quando algum rapé, lenços de chita, agulhas e linhas, e outras coisas assim; sem poder oferecer ao freguês outros gêneros que aquele ramo de negócio havia adotado. Quem lá ia procurar um corte de vestido, uma camisa feita, uma bolsa, um sabonete, uns brincos de vidrilho, tinha o desgosto de voltar com as mãos vazias. Rodrigo estava atrás do seu tempo; a roda começou a desandar-lhe.
Além deste inconveniente, Rodrigo era generoso e franco, como disse acima, de maneira que, se por um lado não lhe crescia a bolsa, por outro ele próprio a desfalcava.
D. Pulquéria resolveu ir viver com o cunhado e foi uma felicidade para este, que tinha uma filha e precisava de lhe dar uma mãe. Ninguém melhor para esse papel do que a viúva do capitão, que, além de parenta da menina, era um símbolo de ordem e austeridade.
Miloca tinha dezessete anos. Até os quinze ninguém diria que viria a ser bela; mas, dessa idade em diante enfeitou muito, como dizia D. Pulquéria. Era a mais formosa cara do bairro e a mais elegante figura da Cidade Nova. Não tinha porém a viveza das moças da sua idade; era séria e empertigada demais. Quando saía olhava para diante de si sem volver a cabeça para nenhum lado nem se preocupar com os olhares de admiração que os rapazes lhe deitavam. Parecia ignorar ou desdenhar a admiração dos outros.
Esta circunstância, não menos que a beleza, tinha dado à filha de Rodrigo uma celebridade real. Os rapazes chamavam-lhe Princesa; as moças puseram-lhe a alcunha de Pescoço de pau. A inveja das outras explorou o mais que pôde o orgulho de Miloca; mas se ela desdenhava a admiração, parecia também desdenhar a inveja.
D. Pulquéria reconhecia na sobrinha essa altivez singular e procurava persuadi-la de que a modéstia é a primeira virtude de uma moça; perdoava-lhe porém o defeito, por ver que em tudo mais a sobrinha era um modelo.
Havia já cinco anos que a viúva do capitão Lúcio morava com a família do cunhado, quando este foi procurado por um rapaz desconhecido que lhe pediu meia hora de conversa particular.
— Chamo-me Adolfo P***, disse o moço quando se achou a sós com Rodrigo, e sou empregado no Tesouro. Pode informar-se do meu comportamento. Quanto ao meu caráter, espero que com o tempo conhecerá. Pretendo...
Aqui estacou o rapaz. Rodrigo, que era homem sagaz, percebeu qual era a pretensão de Adolfo. Não o auxiliou entretanto; preferiu saborear-lhe a perplexidade.
— Pretendo, repetiu Adolfo ao cabo de alguns segundos de silêncio, pretendo... ouso pedir-lhe a mão de sua filha.
Rodrigo ficou alguns instantes calado. Adolfo continuou...
— Repito; pode informar-se a meu respeito...
— Como pai, reconheço que me cumpre velar pelo futuro de minha filha, disse Rodrigo, mas a primeira condição de um casamento é a afeição recíproca. Tem autorização dela para?...
— Nunca nos falamos, disse Adolfo.
— Então... escrevem-se? perguntou Rodrigo.
— Nem isso. Duvido até que ela me conheça.
Rodrigo deu um salto na cadeira.
— Mas então, disse ele, que vem o senhor fazer à minha casa?
— Eu lhe digo, respondeu o pretendente. Amo sua filha apaixonadamente, e não há dia em que não procure vê-la; infelizmente, ela parece ignorar que eu existo no mundo. Até hoje, nem por distração, recebi um olhar dela. Longe de me desagradar esta indiferença, dou-me por feliz em achar tamanha discrição numa idade em que geralmente as moças gostam de ser admiradas e requestadas. Sei que não sou amado, mas não acho impossível vir a sê-lo. Seria porém impossível se continuasse a situação em que ambos nos achamos. Como saberia ela que eu a adoro, se nem suspeita que eu existo? Depois de refletir muito neste assunto, tive a ideia de vir pedir-lhe a mão de sua filha, e no caso de que o senhor não me achasse indigno dela, pediria para ser apresentado à sua família, caso este em que eu poderia saber se realmente...
— Paremos aqui, interrompeu Rodrigo. O senhor pede-me uma coisa singular; pelo menos não conheço semelhantes usos. Estimaria muito que o senhor fosse feliz, mas não me presto a isso... por semelhante modo.
Adolfo insistiu no pedido; mas o pai de Miloca cortou a conversa levantando-se e estendendo a mão ao pretendente.
— Não lhe quero mal, disse ele; faça-se amado e volte. Nada mais lhe concedo.
Adolfo saiu de cabeça baixa.
Nesse mesmo dia procurou Rodrigo sondar o espírito da filha, a fim de saber se ela, ao contrário do que parecia a Adolfo, tinha dado fé do rapaz. Pareceu-lhe que não.
“Tanto pior para ele”, disse Rodrigo consigo.
No domingo seguinte estava ele à janela com a cunhada, quando viu passar Adolfo, que lhe tirou o chapéu.
— Quem é aquele moço? perguntou D. Pulquéria.
Um leve sorriso foi a resposta de Rodrigo, — quanto bastou para aguçar a curiosidade de D. Pulquéria.
— Você ri-se, disse ela. Que mistério é esse?
— Mistério nenhum, disse Rodrigo.
Insistiu a velha; e o cunhado não hesitou em lhe contar a conversa e o pedido do rapaz, acrescentando que, na sua opinião Adolfo era um palerma.
— E por quê? disse D. Pulquéria.
— Porque a um rapaz como ele não faltam meios de se fazer conhecido da dama de seus pensamentos. Eu vendo muito papel bordado e muita tinta azul, e onde a palavra não chega, chega uma carta.
— Não faltava mais nada! exclamou D. Pulquéria. Mandar cartas à rapariga e transtornar-lhe a cabeça... Seu irmão nunca se atreveu a tanto comigo...
— Meu irmão era um maricas em tempo de paz, observou Rodrigo sorvendo uma pitada.
D. Pulquéria protestou energicamente contra a opinião do cunhado, e este foi obrigado a confessar que o irmão era pelo menos um homem prudente. Passada essa questão incidente, voltou D. Pulquéria ao assunto principal e condenou a resposta que Rodrigo dera a Adolfo, dizendo que era talvez um excelente marido para Miloca.
— Miloca, acrescentou a velha, é uma rapariga muito metida consigo. Pode ser que não ache casamento tão cedo, e nós não havemos de viver sempre. Quer você que ela aí fique sem proteção no mundo?
— Não, decerto, retorquiu Rodrigo, mas que devia eu fazer?
— O que devia fazer era informar-se do rapaz, e se lhe parecesse digno dela, apresentá-lo cá. Eu aqui estou para velar por ela.
D. Pulquéria desenvolveu este tema com a autoridade de uma senhora convencida. Rodrigo não deixou de lhe achar alguma razão.
— Pois bem, disse ele, eu indagarei do procedimento do rapaz, e se vir que merece, cá o trago... Mas isso é impossível, agora reparo; não acho bonito, nem decente que eu vá agora buscá-lo; parecerá que lhe meto a rapariga à cara.
— Tem razão, concordou a cunhada. E a culpa da dificuldade é toda sua. Em suma, é bom indagar; depois veremos o que se há de fazer.
As informações foram excelentes. Adolfo gozava de excelente reputação; era econômico, morigerado, laborioso, a pérola da repartição, o beijinho dos superiores. Nem com uma lanterna se encontraria marido daquela qualidade, tão à mão.
— Bem me dizia o coração, ponderou D. Pulquéria, que este rapaz era cá enviado pela Providência Divina. E você estragou tudo. Mas Deus é grande; esperemos que ele nos favoreça.
CAPÍTULO II
CAPÍTULO II
Não confiava debalde na Providência Divina a Srª. D. Pulquéria da Assunção. Cinco dias não eram passados quando um acontecimento desastroso veio atar as relações entre Adolfo e a família de Miloca.
Rodrigo era um dos mais extremos partidários da escola romântico-estragada. Ia ver algum drama de senso comum só por comprazer à família. Mas sempre que podia assistir a um daqueles matadouros literários tão em moda há vinte anos, — e ainda hoje —, vingava-se da condescendência a que o obrigava às vezes o amor dos seus. Estava então fazendo bulha um drama em seis ou oito quadros e outras tantas mortes, obra que o público aplaudia com delírio. Rodrigo tinha ido ver o drama, e viera para casa entusiasmadíssimo, a tal ponto que D. Pulquéria também se entusiasmou e ficou assentado que iriam no dia seguinte ao teatro.
Miloca tentou impedir a resolução, mas não teve força para o conseguir. De tarde caiu sobre a cidade uma daquelas trovoadas de que o nosso clima vai perdendo a tradição, e Rodrigo, que em tempo seco preferia andar de carro, com mais razão desta vez mandou vir um e lá foi a família ver a peça da moda.
Não nos interessa saber que impressões trouxeram de lá as duas senhoras; ambas começaram a dormir apenas entraram no carro, e se em Miloca era talvez aborrecimento, em D. Pulquéria era evidentemente cansaço. A boa velha já não era para dramas tão compridos nem paixões tão fortes. Encostou a cabeça e começou a ressonar.
Rodrigo ficou reduzido a um completo monólogo. Elogiava ele o drama, soltava exclamações, interrogava inutilmente as senhoras, e parecia engolfado na ideia de tudo que vira quando sentiu que o carro descambava docemente para o lado esquerdo. O cocheiro passara a casa e dera uma volta com o fim de chegar mais à porta; nessa ocasião as rodas da frente ficaram debaixo e isto produziu a queda suave do veículo.
Os três passageiros deram um grito, que foi o prelúdio de muitos outros gritos, principalmente de D. Pulquéria que misturava atrapalhadamente preces e pragas. Felizmente havia na vizinhança um baile, e os cocheiros de outros carros acudiram depressa para impedir que os burros disparassem. Esta providência era de todo ponto inútil porque os burros, em cujo ânimo parece que também influíra o drama, aproveitaram a queda para dormir completamente.
O cocheiro saltou no chão e tratou de salvar os náufragos; mas já encontrou junto da portinhola que ficara voltada para cima um rapaz desconhecido, que parecia ter a mesma ideia.
Dizer-lhes que esse rapaz era Adolfo seria supor que os leitores nunca leram romances. Adolfo não passara por acaso; estava ali havia muito aguardando a volta de Miloca para ter a satisfação de a ver de longe. Quis a fortuna dele que houvesse desastre do carro. Levado por um duplo sentimento de humanidade e de egoísmo, o bom rapaz atirou-se ao veículo e começou a pescar as vítimas.
A primeira pessoa que saiu foi D. Pulquéria, que apenas se achou sã e salva, deu graças a Nossa Senhora e descompôs em termos brandos o cocheiro. Enquanto ela falava, estendia Adolfo a mão para dentro do carro, para tirar Miloca. A moça estendeu-lhe a mão, e o rapaz estremeceu. Daí a dois minutos saía ela do carro, e Adolfo tirava a terceira vítima, que gemia com a dor de uma ferida no nariz. Miloca apenas teve uma contusão no rosto. D. Pulquéria parece que por ser gorda ofereceu mais resistência ao choque.
Rodrigo estancava o sangue com o lenço; Miloca entrara no corredor da casa, o cocheiro tratava de levantar o carro ajudado por alguns colegas, quando D. Pulquéria, que já durante alguns minutos tinha os olhos pregados em Adolfo, exclamou:
— Foi o senhor quem nos salvou! Ó mano Rodrigo, aqui está a pessoa que nos salvou... Olhe!
— Mas não me salvou o nariz! objetou Rodrigo com mau humor. Pois quê! é o senhor! continuou ele aproximando-se do rapaz.
— É verdade, respondeu modestamente Adolfo.
Rodrigo estendeu-lhe a mão.
— Oh! fico-lhe muito obrigado!
— Devemos-lhe a vida, observou Dona Pulquéria, e creio que lhe seremos eternamente gratos. Quer descansar?
— Obrigado, minha senhora.
— Mas ao menos prometa que há de vir à nossa casa, disse D. Pulquéria.
— Se me permitem essa honra...
— Não permitimos, exigimos, disse Rodrigo.
— O meu serviço não vale nada, respondeu Adolfo; fiz o que faria outra qualquer pessoa. Todavia, se me permite, virei saber da saúde do senhor...
— Da saúde do meu nariz, emendou galhofeiramente Rodrigo; venha que nos dará grande prazer. Deixe-me apresentá-lo a minha filha...
Era tarde. Miloca, menos grata que os dois velhos, ou mais necessitada de descanso que eles, tinha subido havia já cinco minutos.
Adolfo despediu-se de Rodrigo e de D. Pulquéria e foi esperar na esquina a passagem do carro. Chamou o cocheiro e deu-lhe uma nota de cinco mil-réis.
— Aqui está o que você perdeu quando o carro tombou.
— Eu? perguntou o cocheiro que sabia não ter um vintém na algibeira.
— É verdade, disse Adolfo.
E sem mais explicações foi andando.
O cocheiro era sagaz como bom cocheiro que era. Sorriu e guardou o dinheiro no bolso.
Adolfo não era tão pouco fino que fosse logo apresentar-se em casa de Rodrigo. Esperou quarenta e oito horas antes que desse sinal de si. E não foi à casa da família, mas à loja de Rodrigo, que já lá estava com um pequeno emplastro no nariz. Rodrigo agradeceu outra vez o serviço que lhe prestara assim como à sua família na noite do desastre e procurou estabelecer desde logo uma salutar familiaridade.
— Não sabe, lhe disse ele quando o rapaz se dispunha a sair, não sabe como minha cunhada ficou morrendo pelo senhor...
— Parece ser uma excelente senhora, disse Adolfo.
— É uma pérola, respondeu Rodrigo. E se quer que lhe fale franco, eu estou sendo infiel à promessa que lhe fiz.
— Como assim?
— Prometi a minha cunhada que o levaria lá em casa apenas o encontrasse, e separo-me do senhor sem desempenhar a minha palavra.
Adolfo curvou levemente a cabeça.
— Muito agradeço essa prova de bondade, disse ele, e sinto realmente não poder corresponder ao desejo de sua cunhada. Estou pronto porém a lá ir apresentar-lhe os meus respeitos no dia e hora que me designar.
— Quer que lhe diga uma coisa? disse alegremente o comerciante. Eu não sou homem de etiqueta; sou cá do povo. Simpatizo com o senhor, e sei a simpatia que minha cunhada lhe tem. Faça uma coisa: venha jantar conosco domingo.
Adolfo não pôde conter a sua alegria. Evidentemente não contava com tamanha maré de felicidade. Agradeceu e aceitou o convite de Rodrigo e saiu.
No domingo seguinte, apresentou-se Adolfo em casa do comerciante. Ia de ponto em branco, sem que esta expressão se deva entender no sentido da alta elegância fluminense. Adolfo era pobre e vestia com apuro relativamente à sua classe. Estava longe porém do rigor e da opulência aristocrática.
D. Pulquéria recebeu o pretendente com aquelas carícias que as velhas de bom coração costumam ter. Rodrigo desfez-se em solícitos cumprimentos. Só Miloca parecia indiferente. Estendeu-lhe a ponta dos dedos, e nem olhou para ele enquanto o mísero namorado murmurou algumas palavras relativas ao desastre. O introito foi mau. D. Pulquéria percebeu isso, e tratou de animar o rapaz, falando-lhe com animada familiaridade.
Nunca a filha de Rodrigo parecera tão formosa aos olhos de Adolfo. A mesma severidade lhe dava um ar distinto e realçava a incomparável beleza das suas feições. Mortificava-o, é verdade, a indiferença; mas podia ele esperar mais alguma coisa logo da primeira vez?
Miloca tocou piano a convite do pai. Era excelente pianista, e entusiasmou deveras o pretendente, que não pôde disfarçar a sua impressão e murmurou um respeitoso cumprimento. Mas a moça limitou-se a um gesto de cabeça, acompanhado de um olhar que parecia dizer: “O senhor entende disto?”.
Durante o jantar, a velha e o cunhado fizeram galhardamente as honras da casa. Adolfo ia perdendo a pouco e pouco as maneiras cerimoniosas, conquanto a atitude de Miloca lhe acanhasse o espírito. Era inteligente, polido e galhofeiro; a boa vontade dos olhos e as qualidades reais dele venceram em pouco tempo grande caminho. No fim do jantar era um conhecido velho.
— Tenho uma ideia, disse Rodrigo quando chegaram à sala. Vamos dar um passeio?
A ideia foi aceita por todos, exceto por Miloca que declarou estar incomodada, pelo que a ideia ficou sem execução.
Adolfo saiu de lá mal impressionado; e teria desistido da empresa, se o amor não fosse engenhoso em derrubar imaginariamente todas as dificuldades deste mundo. Continuou a frequentar a casa de Rodrigo, onde era recebido com verdadeira satisfação, menos por Miloca que parecia cada vez mais indiferente ao namorado.
Vendo que a situação do rapaz não melhorava, e parecendo-lhe que a sobrinha não acharia melhor marido do que ele, interveio D. Pulquéria, não por meio da autoridade, mas com as armas dóceis da persuasão.
— Acho singular, Miloca, a maneira por que tratas o Sr. Adolfo.
— De que maneira o trato? perguntou a moça mordendo os beiços.
— Secamente. E não compreendo isto porque ele é um excelente moço, muito bem-educado, e além disso já nos prestou um serviço em ocasião séria.
— Tudo isso é verdade, respondeu Miloca, mas eu não sei como quer que o trate. Meu modo é esse. Não posso afetar o que não sinto; e a sinceridade creio que é uma virtude.
— É também a virtude do sr. Adolfo, observou D. Pulquéria sem parecer abalada com a sequidão da sobrinha; devias ter reparado que é um moço muito sincero, e eu...
Aqui parou D. Pulquéria por um artifício que lhe pareceu excelente: esperou que a curiosidade de Miloca lhe pedisse o resto. Mas a sobrinha parecia completamente ausente dali, e não deu mostras de querer saber o resto do período.
D. Pulquéria fez um gesto de despeito, e não disse palavra, enquanto Miloca folheava os jornais em todos os sentidos.
— Não acho casa, disse ela depois de algum tempo.
— Casa? perguntou D. Pulquéria admirada.
— É verdade, minha tia, disse Miloca sorrindo, eu pedi a papai para que nos mudássemos daqui. Acho isto muito feio: não faria mal que morássemos em algum bairro mais bonito. Papai disse que sim, e eu ando a ler os anúncios...
— Ainda agora sei disso, disse D. Pulquéria.
— Casas aparecem muitas, continuou a moça, mas as ruas não prestam. Se fosse no Catete...
— Estás doida? perguntou D. Pulquéria; lá as casas são mais caras do que aqui, e além disso transtornaria o negócio de teu pai. Admira como ele consente em semelhante coisa!
Miloca pareceu não atender às objeções da tia. Esta, que era sagaz, e vivia com a sobrinha havia muito tempo, atinava com a razão do recente capricho. Levantou-se e pôs a mão na cabeça da moça.
— Miloca, por que hás de ser assim?
— Assim como?
— Por que hás de olhar tanto para cima?
— Se titia está de pé, respondeu maliciosamente a moça, eu hei de por força olhar para cima.
D. Pulquéria achou graça à resposta evasiva que a sobrinha lhe deu e não pôde reter um sorriso.
— Tonta! lhe disse a boa velha.
E acrescentou:
— Tenho pensado muito em ti.
— Em mim? perguntou ingenuamente Miloca.
— Sim; nunca pensaste no casamento?
— Nunca.
— E se aparecesse um noivo digno de ti?
— Digno de mim? Conforme; se eu o amasse...
— O amor vem com o tempo. Há bem perto de nós alguém que te ama, um moço digno de toda a estima, laborioso, grave, um marido como não há muitos.
Miloca desatou a rir.
— E titia viu isso primeiro que eu? perguntou ela. Quem é esse achado?
— Não adivinhas?
— Não posso adivinhar.
— O Adolfo, declarou D. Pulquéria depois de um minuto de hesitação.
Miloca franziu o sobrolho; depois deu uma nova risada.
— De que te ris?
— Acho engraçado. Com que então o Sr. Adolfo dignou-se olhar para mim? Não tinha percebido; não podia esperar tamanha felicidade. Infelizmente, não o amo... e por mais digno que seja o noivo, se eu o não amar vale para mim o mesmo que um vendedor de fósforos.
— Miloca, disse a velha contendo a indignação que lhe causavam estas palavras da sobrinha, o que acaba de dizer não é bonito, e eu...
— Perdão, titia, interrompeu Miloca, não se dê por ofendida; respondia gracejando a uma notícia que também me pareceu gracejo. A verdade é que eu não desejo casar-me. Quando vier a minha hora, saberei tratar seriamente o noivo que o céu me destinar. Creio porém que não há de ser o sr. Adolfo, um pé-rapado...
Aqui a boa velha cravou um olhar de indignação na sobrinha, e saiu. Miloca levantou os ombros e foi tocar umas variações de Thalberg.
CAPÍTULO III
A causa de Adolfo estava condenada, e parece que ele ajudava o seu triste destino. Já vemos que Miloca aborrecia nele a sua não brilhante condição social, que era aliás um ponto de contato entre ambos, coisa que a moça não podia compreender. Adolfo, entretanto, além desse pecado original, tinha a mania singular de fazer discursos humanitários, e mais do que discursos, ações; perdeu-se de todo.
Miloca não era cruel; pelo contrário, tinha sentimentos caridosos; mas, como ela mesma disse um dia ao pai, nunca se deve dar esmola sem luvas de pelica, porque o contato da miséria não aumenta a grandeza da ação. Um dia, em frente da casa, caiu uma preta velha ao chão, abalroada por um tílburi; Adolfo, que ia a entrar, correu à infeliz, levantou-a nos braços e levou-a à botica da esquina, onde a deixou curada. Agradeceu ao céu o ter-lhe proporcionado o ensejo de uma bela ação diante de Miloca que estava à janela com a família, e subiu alegremente as escadas. D. Pulquéria abraçou o herói; Miloca mal lhe estendeu a ponta dos dedos.
Rodrigo e D. Pulquéria conheciam o caráter da moça e procuravam modificá-lo por todas as maneiras, lembrando-lhe que o nascimento dela não era tão brilhante que pudesse ostentar tamanho orgulho. A tentativa era sempre inútil. Duas causas havia para que ela não mudasse de sentimentos: a primeira era proveniente da natureza; a segunda da educação. Rodrigo estremecia a filha, e buscou dar-lhe uma educação esmerada. Fê-la entrar como pensionista em um colégio, onde Miloca ficou em contato com as filhas das mais elevadas senhoras da capital. Afeiçoou-se a muitas delas, cujas famílias visitou desde a infância. O pai tinha orgulho em ver que a filha era assim tão festejada nos primeiros salões, onde aliás ele nunca passou de um intruso. Miloca bebeu assim um ar que não era precisamente o do armarinho da Cidade Nova.
Que vinha pois fazer o mísero Adolfo nesta galera? Não era assim o marido que a moça sonhava; a imaginação da orgulhosa dama aspirava a maiores alturas. Podia não exigir tudo quanto quisera ter, um príncipe ou um duque se os houvesse cá disponíveis; mas entre um príncipe e Adolfo a distância era enorme. Donde resultava que a moça não se limitava a um simples desdém; tinha ódio ao rapaz porque a seus olhos era grande afronta, não já nutrir esperanças, mas simplesmente amá-la.
Para completar esta notícia do caráter de Miloca, é mister dizer que ela sabia do amor de Adolfo muito antes que o pai e a tia tivessem conhecimento dele. Adolfo estava persuadido que a filha de Rodrigo nunca tinha reparado nele. Iludia-se. Miloca possuía essa qualidade excepcional de ver sem olhar. Percebeu que o rapaz gostava dela, quando o via na igreja ou em alguma partida em casa de amizade no mesmo bairro. Perceber isto foi condená-lo.
Ignorando todas estas coisas, Adolfo atribuía à sua má ventura o não ter ganho a menor polegada de terreno. Não ousava comunicar as suas impressões ao comerciante nem à cunhada, posto descobrisse que ambos eram favoráveis ao seu amor. Meditou longamente no caso, e resolveu dar um golpe decisivo.
Um ex-comerciante abastado da vizinhança casou uma filha, e convidou a família de Rodrigo para as bodas. Adolfo também recebeu convite e não deixou de comparecer, disposto a espreitar ali uma ocasião de falar a Miloca, o que não lhe fora possível nunca em casa dela. Para os amantes multidão quer dizer solidão. Não acontece o mesmo com os pretendentes. Mas Adolfo tinha um plano feito; alcançaria dançar com ela, e nessa ocasião soltaria a palavra decisiva. A fim de obter uma concessão que julgava difícil na noite do baile, pediu-lhe uma quadrilha, na véspera, em casa dela, em presença da tia e do pai. A moça concedeu-lha sem hesitação, e se o rapaz pudesse penetrar no espírito dela, não teria aplaudido, como fez, a sua resolução.
Miloca estava deslumbrante na sala do baile, e ofuscou completamente a noiva, objeto da festa. Se Adolfo estivesse nas boas graças dela, teria sentido legítimo orgulho ao ver a admiração que ela despertava em torno de si. Mas para um namorado repelido não há pior situação do que ver desejado um bem que lhe não pertence. A noite foi pois um suplício para o rapaz.
Afinal chegou a quadrilha concedida. Adolfo atravessou a sala trêmulo de comoção e palpitante de incerteza, e estendeu a mão a Miloca. A moça levantou-se com a graça do costume e acompanhou o par. Durante as primeiras figuras, Adolfo não ousou dizer palavra sobre coisa nenhuma. Ao ver porém que o tempo corria, e era necessário uma decisão, dirigiu-lhe algumas palavras banais como são as primeiras palavras de um homem pouco afeito a tais empresas.
Pela primeira vez Miloca encarou o namorado, e, longe do que se poderia supor, não havia em seu gesto a menor sombra de aborrecimento; pelo contrário, parecia animar o novel cavalheiro a mais positivo ataque.
Animado com esse introito, Adolfo foi direto ao coração do assunto.
— Talvez, D. Emília, disse ele, talvez tenha notado que eu...
E parou.
— Que o senhor... o quê? perguntou a moça que parecia saborear a perplexidade do rapaz.
— Que eu sinto...
Nova interrupção.
Era chegada a Chaine des Dames. Miloca deixou o rapaz meditar nas dificuldades da sua posição.
“Sou um asno, dizia Adolfo consigo. Pois que razão me arriscarei a deixar para depois uma explicação que vai em tão bom caminho? Ela parece disposta...”
No primeiro intervalo reatou a conversação.
— Dir-lhe-ei tudo de uma vez... Amo-a. Miloca fingiu-se admirada.
— A mim? perguntou ela ingenuamente.
— Sim... atrevi-me a... Perdoa-me?
— Com uma condição.
— Qual?
— Ou antes, com duas condições. A primeira é que se há de esquecer de mim; a segunda é que não há de voltar lá à casa.
Adolfo olhou espantado para a moça e durante alguns segundos não achou resposta que lhe dar. Preparou-se para tudo, mas aquilo ia além dos seus cálculos. A única coisa que lhe pôde dizer foi esta pergunta:
— Fala sério?
Miloca fez um gesto de cólera, que reprimiu logo; depois sorriu e murmurou:
— Que se atreva a amar-me, é muito, mas injuriar-me, é demais!
— Injúria pede injúria, retorquiu Adolfo.
Miloca desta vez não olhou para ele. Voltou-se para o cavalheiro que ficava próximo e disse:
— Quer conduzir-me ao meu lugar?
Deu-lhe o braço e atravessou a sala, no meio do pasmo geral. Adolfo humilhado, vendo-se alvo de todas as vistas, procurou esquivar-se. D. Pulquéria não viu o que se passou; estava conversando com a dona da casa em uma saleta contígua; Rodrigo jogava nos fundos da casa.
Aquele misterioso lance teatral foi o assunto das palestras durante o resto da noite. Impossível foi porém saber a causa dele. O dono da casa, sabedor do acontecimento, pediu desculpa dele à filha de Rodrigo, pois julgava ter parte indireta nele pelo fato de haver convidado Adolfo. Miloca agradeceu a atenção, mas nada revelou do que se passara.
Nem o pai nem a tia souberam de nada; no dia seguinte porém recebeu Rodrigo uma longa carta de Adolfo relatando o sucesso da véspera e pedindo desculpa ao velho de ter dado causa a um escândalo. Nada ocultou do que se passara, mas absteve-se de moralizar a atitude da moça. Rodrigo conhecia o defeito da filha e não lhe foi difícil perceber que a causa primordial do acontecimento fora ela. Todavia não lhe disse nada. D. Pulquéria porém foi menos discreta na primeira ocasião que se lhe ofereceu, disse amargas verdades à sobrinha, que lhas ouviu sem replicar.
CAPÍTULO IV
Felizes aqueles cujos dias correm com a insipidez de uma crônica vulgar. Geralmente os dramas da vida humana são mais toleráveis no papel que na realidade.
Poucos meses depois da cena que deixamos relatada, a família de Miloca sofreu um grave revés pecuniário; Rodrigo perdeu o pouco que tinha, e não tardou que a este acontecimento sucedesse outro não menos sensível: a morte de D. Pulquéria. Reduzido à extrema pobreza e achacado de moléstias, Rodrigo viveu ainda alguns meses atribulado e aborrecido da vida.
Miloca mostrou nesses dias amargos uma grande força de ânimo, maior do que se podia esperar daquele espírito quimérico. Bem sabia ela que o seu futuro era negro e nenhuma esperança poderia vir animá-lo. Todavia, parecia completamente alheia a essa ordem de considerações.
Rodrigo faleceu repentinamente uma noite em que parecia começar a recobrar a saúde. Era o último golpe que vinha ferir a moça, e esse não o suportou ela com a mesma coragem até ali manifestada. Uma família da vizinhança ofereceu-lhe asilo logo na noite do dia em que se enterrou o pai. Miloca aceitou o favor, disposta a dispensá-lo por qualquer maneira razoável e legítima.
Não tinha muito que escolher. Só uma carreira lhe estava aberta: a do professorado. A moça resolveu-se a ir ensinar em algum colégio. Custava-lhe isto ao orgulho, e era com certeza a morte de suas esperanças aristocráticas. Mas segundo ela disse a si mesma, era isso menos humilhante do que comer as sopas alheias. Verdade é que as sopas eram servidas em pratos modestos...
Nesse projeto estava, — apesar de combatido pela família que tão afetuosamente lhe abrira as portas, — quando apareceu em cena um anjo enviado do céu. Era uma de suas companheiras de colégio, casada de fresco, que vinha pedir-lhe o obséquio de ir morar com ela. Miloca recusou o pedido com alguma resolução; mas a amiga vinha disposta a esgotar todos os argumentos possíveis até vencer as repugnâncias de Miloca. Não lhe foi difícil; a altiva órfã cedeu e aceitou.
Leopoldina era o nome da amiga que lhe aparecera como um deus ex machina, acompanhada pelo marido, jovem deputado do Norte, governista inabalável e aspirante a ministro. Quem conversava com ele durante meia hora, nutria logo algumas dúvidas sobre se os negócios do Estado ganhariam muito em que ele os dirigisse. Dúvida realmente frívola, que ainda não fechou a ninguém as avenidas do poder.
Leopoldina era o contraste de Miloca; tanto uma tinha de altiva, imperiosa e seca, quanto a outra de dócil, singela e extremamente afável. E não era esta a única diferença. Miloca era sem dúvida uma moça distinta; mas era mister estar só. A sua distinção precisava não ser comparada com outra. Nesse terreno também Leopoldina lhe levava muita vantagem. Tinha uma distinção mais própria, mais natural, mais inconsciente. Onde porém Miloca lhe levava a melhor era nos dotes físicos, o que não quer dizer que Leopoldina não fosse bela.
Para ser exato devo dizer que a filha de Rodrigo não aceitou alegremente, nos primeiros dias, a hospitalidade de Leopoldina. Orgulhosa como era, doía-lhe a posição dependente em que se achava. Mas isso durou pouco, graças à extrema habilidade da amiga, que empregou todos os esforços para disfarçar a aspereza das circunstâncias, colocando-a na posição de pessoa de família.
Alcançara Miloca os seus desejos. Vivia numa sociedade bem diferente daquela em que vivera a família. Já não via todas as tardes o modesto boticário da esquina ir jogar o gamão com o pai; não suportava as histórias devotas de D. Pulquéria; não via à mesa uma velha doceira amiga de sua casa; nem parava à porta do armarinho quando voltava da missa nos domingos. Era muito outra sociedade, era a única que ela ambicionava e compreendia. Aceitaram todos a posição em que Leopoldina tinha a amiga; muitas das moças que lá iam foram suas companheiras de colégio; tudo lhe correu fácil, tudo se lhe tornou brilhante.
Uma só coisa, porém, vinha de quando em quando escurecer o espírito de Miloca. Ficaria ela sempre naquela posição, que apesar de excelente e brilhante, tinha a desvantagem de ser equívoca? Esta pergunta, cumpre dizê-lo, não lhe surgia no espírito por si mesma, mas como prelúdio de outra ideia, capital para ela. Por outras palavras, o que a agitava principalmente era o problema do casamento. Casar-se, mas casar-se bem, eis o fim e a preocupação de Miloca. Não faltava onde escolher. Iam à casa de Leopoldina muitos rapazes bonitos, elegantes, distintos, e não poucos ricos. Talvez Miloca ainda não sentisse amor verdadeiro por nenhum deles; mas essa circunstância era puramente secundária no sistema adotado por ela.
Parece que Leopoldina também pensara nisso, porque mais de uma vez tocara nesse assunto com a liberdade que lhe dava a afeição. Miloca respondia evasivamente, mas não repelia de todo a ideia de um consórcio feliz.
— Por ora, acrescentava ela, ainda o meu coração não bateu; e o casamento sem amor é uma coisa terrível, penso eu; mas quando vier o amor, espero em Deus que serei feliz. Sê-lo-ei?
— Sê-lo-ás, respondeu comovida a amiga hospitaleira. Nesse dia conta que eu te ajudarei.
Um beijo terminava estas confidências.
Infelizmente para Miloca, estes desejos pareciam longe da realização. Dos rapazes casadeiros nenhum contestava a beleza da moça; mas corria entre eles uma teoria de que a mais bela mulher deste mundo precisa de não vir com as mãos abanando.
Ao cabo de dois anos de inúteis esperanças, Miloca transigiu com a sua altivez, trocou o papel de praça que pede assédio pelo de exército sitiador.
Um primo segundo de Leopoldina foi o seu primeiro objetivo. Era um jovem bacharel, formado poucos meses antes em S. Paulo, rapaz inteligente, alegre e franco. Os primeiros fogos das baterias de Miloca produziram efeito; sem ficar apaixonado de todo, começou a gostar da rapariga. Infelizmente para ela, coincidiu este ataque de frente com um ataque de flanco, e a praça foi tomada por uma rival mais feliz.
Não desanimou a moça. Dirigiu os seus tiros para outro ponto, desta vez não pegaram as bichas, o que obrigou a bela pretendente a lançar mão de terceiro recurso. Com mais ou menos felicidade, andou Miloca nesta campanha durante um ano, sem alcançar o seu máximo desejo.
A derrota não lhe quebrou o orgulho; antes lhe deu um toque de azedume e hipocondria, que a fez um tanto insuportável. Mais de uma vez pretendeu deixar a casa da amiga e ir professar em algum colégio. Mas Leopoldina resistia sempre a esses projetos, já mais veementes que ao princípio. O despeito parecia aconselhar à bela órfã o completo esquecimento de seus planos matrimoniais. Compreendia agora que, talvez pela mesma razão com que ela recusara o amor de Adolfo, recusavam-lhe agora o amor dela. A punição, dizia ela consigo, fora completa.
A imagem de Adolfo surgiu então em seu espírito atribulado e abatido. Não se arrependeu do que fizera; mas lamentou que Adolfo não estivesse em posição cabal de lhe realizar os seus sonhos e ambições.
“Se assim fosse, pensava Miloca, eu seria hoje feliz, porque esse amava-me.”
Tardias queixas eram aquelas. O tempo corria, e a moça com o seu orgulho se definhava na solidão povoada da sociedade a que aspirava desde os tempos da sua mediania.
CAPÍTULO V
Uma noite, estando no teatro, viu em um camarote fronteiro duas moças e dois rapazes; um dos rapazes era Adolfo. Miloca estremeceu; involuntariamente, não de amor, não de saudade, mas de inveja. Seria uma daquelas moças esposa dele? Ambas eram distintas, elegantes; ambas formosas. Miloca perguntou a Leopoldina se conhecia os dois rapazes; o marido da amiga foi quem lhe respondeu:
— Só conheço um deles; o mais alto.
O mais alto era Adolfo.
— Parece-me que também o conheço, disse Miloca, e foi por isso que lho perguntei. Não é um empregado do Tesouro?
— Talvez fosse, respondeu o deputado; agora é um amável vadio.
— Como assim?
— Herdou do padrinho, explicou o deputado.
Leopoldina que tinha assentado o binóculo para ver as moças perguntou:
— Será casado com alguma daquelas moças?
— Não; é amigo da família, respondeu o deputado; e parece que não está disposto a casar.
— Por quê? aventurou Miloca.
— Dizem que teve um amor infeliz outrora.
Miloca estremeceu de alegria, e pôs o binóculo para o camarote de Adolfo. Este pareceu perceber que era objeto das indagações e conversas das três personagens, e já havia conhecido a antiga amada; todavia, disfarçou e conversou alegremente com as moças do seu camarote.
Depois de algum silêncio, disse Miloca:
— Parece que o senhor acredita em romances; pois há quem conserva assim um amor a ponto de não querer casar?
E como se se arrependesse desta generalidade, emendou: Nos homens é difícil encontrar tamanha constância às afeições passadas.
— Nem eu lhe disse que ele conservava essa afeição, observou o deputado; esse amor infeliz do meu amigo Adolfo...
— É teu amigo? perguntou Leopoldina.
— É, respondeu o marido. E continuou: Esse amor infeliz do meu amigo Adolfo serviu para lhe dar uma triste filosofia a respeito de amores. Jurou não casar...
— E onde escreveu esse juramento?
— Não acredita que ele o cumpra? perguntou sorrindo o marido de Leopoldina.
— Francamente, não, respondeu Miloca.
Dias depois levou o deputado à casa o seu amigo Adolfo e o apresentou às duas senhoras. Adolfo falou a Miloca como pessoa de seu conhecimento, mas nenhuma palavra ou gesto revelou aos donos da casa o sentimento que ele tivera outrora. A mesma Miloca compreendeu que tudo estava extinto no coração do rapaz; mas não era fácil reviver a chama apagada? Miloca contava consigo, e reuniu todas as suas forças para uma luta suprema.
Infelizmente era verdade o que dissera o marido de Leopoldina. Adolfo parecia ter mudado completamente. Já não era o rapaz afetuoso, e tímido de outro tempo; mostrava-se agora gelado em coisas do coração. Não só o passado estava extinto, como nem era possível criar-lhe nenhum presente. Miloca compreendeu isto no fim de alguns dias, e todavia não desanimou.
Animou-a nesse propósito Leopoldina, que percebeu a tendência da amiga para o rapaz sem todavia conhecer uma sílaba do passado que havia entre ambos. Miloca negou a princípio, mas conveio-lhe dizer tudo, e mais do que isso, não pôde resistir, porque ela começava a amar deveras o rapaz.
— Não desanimes, lhe disse a amiga; estou que hás de triunfar.
— Quem sabe? murmurou Miloca.
Esta pergunta foi triste e desanimada. Era a primeira vez que ela amava, e isto lhe pareceu uma espécie de castigo que a Providência lhe infligia.
— Se ele me não corresponder, pensava Miloca, sinto que serei a mais desgraçada de todas as mulheres.
Adolfo percebeu o que se passava no coração da moça, mas pensou que era menos sincero o afeto que ela nutria. Quem lhe pintou claramente a situação foi o marido de Leopoldina, a quem esta havia contado tudo, com a certeza talvez da indiscrição dele.
Se Adolfo ainda a amasse, seriam ambos felicíssimos; mas sem o amor dele que esperança teria a moça? Digamos a verdade toda; Adolfo era em toda a extensão da palavra um rapaz cínico, mas cobria o cinismo com uma capa de seda, que o fazia apenas indiferente; de maneira que se algum raio de esperança podia entrar no ânimo de Miloca bem depressa se lhe devia esvaecer.
E quem arrancará a esperança de um coração que ama? Miloca continuava a esperar, e de certo tempo em diante alguma coisa lhe fazia crer que a esperança não seria vã. Adolfo parecia começar a reparar nela, e a ter alguma simpatia. Estes sintomas foram crescendo a pouco e pouco, até que Miloca teve um dia certeza de que o dia da sua felicidade estava próximo. Contara com a sua admirável beleza, com os vivos sinais do seu afeto, com algum germe do passado não de todo extinto no coração de Adolfo. Um dia acordou confiada de que todas estas armas lhe haviam dado o triunfo.
Não tardou que começasse o período epistolar. Seria coisa fastidiosa reproduzir aqui as cartas que os dois namorados trocaram durante um mês. Qualquer das minhas leitoras (sem ofensa de ninguém) conhece mais ou menos o que se diz nesse gênero de literatura. Copiarei todavia dois trechos interessantes de ambos. Seja o primeiro de Adolfo:
... Como poderia crer que eu houvesse esquecido o passado? Doloroso foi ele para mim, mas ainda mais que doloroso, delicioso; porque o meu amor me sustentava naquele tempo, e eu era feliz, posto não fosse amado. A ninguém mais amei senão a ti; mas confesso que até há pouco, o mesmo amor que te votei outrora já havia desaparecido. Tiveste o condão de reavivar uma chama já apagada. Fizeste um milagre, que eu tinha por impossível.
E confesso hoje, confesso sem hesitação, que tu vieste acordar um coração morto, e morto por ti mesma. Bem hajas tu! teu, serei teu até à morte!...
A estas calorosas expressões, respondia Miloca com igual ardor. De uma de suas cartas, a quinta ou sexta, copio estas palavras:
... Obrigada, meu Adolfo! tu és generoso, tu soubeste perdoar, porque soubeste amar outra vez aquela a quem devias ter ódio. Bem cruel fui eu em não conhecer a grandeza de tua alma! Hoje que te compreendo, choro lágrimas de sangue, mas ao mesmo tempo agradeço ao céu o ter-me dado a maior ventura desta vida, que é lograr a ventura que uma vez se repeliu... Se tu soubesses como eu te amo, escrava, pobre, mendiga, castigada por ti e desprezada por ti, amo-te, amar-te-ei sempre! etc., etc.
Numa situação como esta, o desenlace parecia claro; nada obstava que se casassem dali a um mês. Miloca era maior e não tinha nenhum parente. Adolfo era livre. Tal era a solução prevista por Leopoldina e seu marido; tal era a de Miloca.
Mas quem sabe o que nos guarda o futuro? E a que desvairamentos não arrasta o amor quando os corações são fracos? Um dia de manhã Leopoldina achou-se só; Miloca tinha desaparecido. Como, e por quê, e de que modo? Ninguém o soube. Com quem desaparecera, soube-se logo que fora Adolfo, que não voltou à casa do deputado.
Deixando-se arrastar pelo rapaz a quem amava, Miloca apenas consultou o seu coração; quanto a Adolfo, nenhuma ideia de vingança o dominara; cedeu a sugestões de libertinagem.
Durante cerca de um ano, ninguém soube dos dois fugitivos. A princípio soube-se que estavam na Tijuca; depois desapareceram dali sem que Leopoldina alcançasse a notícia deles.
Um ano depois do acontecimento narrado acima, reapareceu na corte o fugitivo Adolfo. Correu logo que vinha acompanhado da interessante Miloca. Casados? Não; e esse passo dado no caminho do erro foi funesto à ambiciosa moça. Que outra coisa podia ser? O mal engendra o mal.
Adolfo parecia estar aborrecido da aventura; e todavia Miloca ainda o amava como no princípio. Iludiu-se a respeito dele, nesses últimos tempos, mas afinal compreendeu que entre a atual situação e o fervor dos primeiros dias havia um abismo. Ambos arrastaram a cadeia durante um ano mais, até que Adolfo embarcou para Europa sem dar notícia de si à infeliz moça.
Miloca desapareceu tempos depois. Uns dizem que se fora à cata de novas aventuras; outros que se matara. E havia razão para ambas estas versões. Se morreu a terra lhe seja leve!
FIM
---------------------------
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1874. Em meus livros da coleção de Machado de Assis está no volume Escritos Avulsos I, de Obras Completas, Editora Globo, São Paulo, 1997.
COMENTÁRIO BREVE
O que mais chama a atenção nesta primeira fase de contos de Machado de Assis é a forma como ele dialoga com os leitores, quer dizer, via de regra, com as "leitoras".
"Não tardou que começasse o período epistolar. Seria coisa fastidiosa reproduzir aqui as cartas que os dois namorados trocaram durante um mês. Qualquer das minhas leitoras (sem ofensa de ninguém) conhece mais ou menos o que se diz nesse gênero de literatura..."
Outra coisa bem interessante são as frases ou sentenças que podemos retirar de suas narrativas. Veja essa que legal:
"Um ex-comerciante abastado da vizinhança casou uma filha, e convidou a família de Rodrigo para as bodas. Adolfo também recebeu convite e não deixou de comparecer, disposto a espreitar ali uma ocasião de falar a Miloca, o que não lhe fora possível nunca em casa dela. Para os amantes multidão quer dizer solidão..."
Por fim, uma característica na obra de Machado é o fato de não haver finais felizes ou idealizados como nas ficções água com açúcar.
William