quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Miloca - Conto de Machado de Assis, de 1874



Machado de Assis.

CAPÍTULO I

D. Pulquéria da Assunção era uma senhora de seus sessenta anos, arguta, devota, gorda, paciente, crônica viva, catecismo ambulante. Era viúva de um capitão de cavalaria que morrera em Monte Caseros deixando-lhe uma escassa pensão e a boa vontade de um irmão mais moço que possuía alguma coisa. Rodrigo era o nome desse único parente a quem o Capitão Lúcio confiara D. Pulquéria na ocasião de partir para o Rio da Prata. Era bom homem, generoso e franco; D. Pulquéria não sentiu muito por esse lado a morte do marido.

Infelizmente, o cunhado não era tão remediado como parecia à viúva, e além disso não tinha meios nem tino para fazer crescer os poucos cabedais que ajuntara durante longos anos no negócio de armarinho. O estabelecimento de Rodrigo, excelente e afreguesado em outros tempos, não podia competir com os muitos estabelecimentos modernos que outros comerciantes abriram no mesmo bairro. Rodrigo vendia de vez em quando algum rapé, lenços de chita, agulhas e linhas, e outras coisas assim; sem poder oferecer ao freguês outros gêneros que aquele ramo de negócio havia adotado. Quem lá ia procurar um corte de vestido, uma camisa feita, uma bolsa, um sabonete, uns brincos de vidrilho, tinha o desgosto de voltar com as mãos vazias. Rodrigo estava atrás do seu tempo; a roda começou a desandar-lhe.

Além deste inconveniente, Rodrigo era generoso e franco, como disse acima, de maneira que, se por um lado não lhe crescia a bolsa, por outro ele próprio a desfalcava.

D. Pulquéria resolveu ir viver com o cunhado e foi uma felicidade para este, que tinha uma filha e precisava de lhe dar uma mãe. Ninguém melhor para esse papel do que a viúva do capitão, que, além de parenta da menina, era um símbolo de ordem e austeridade.

Miloca tinha dezessete anos. Até os quinze ninguém diria que viria a ser bela; mas, dessa idade em diante enfeitou muito, como dizia D. Pulquéria. Era a mais formosa cara do bairro e a mais elegante figura da Cidade Nova. Não tinha porém a viveza das moças da sua idade; era séria e empertigada demais. Quando saía olhava para diante de si sem volver a cabeça para nenhum lado nem se preocupar com os olhares de admiração que os rapazes lhe deitavam. Parecia ignorar ou desdenhar a admiração dos outros.

Esta circunstância, não menos que a beleza, tinha dado à filha de Rodrigo uma celebridade real. Os rapazes chamavam-lhe Princesa; as moças puseram-lhe a alcunha de Pescoço de pau. A inveja das outras explorou o mais que pôde o orgulho de Miloca; mas se ela desdenhava a admiração, parecia também desdenhar a inveja.

D. Pulquéria reconhecia na sobrinha essa altivez singular e procurava persuadi-la de que a modéstia é a primeira virtude de uma moça; perdoava-lhe porém o defeito, por ver que em tudo mais a sobrinha era um modelo.

Havia já cinco anos que a viúva do capitão Lúcio morava com a família do cunhado, quando este foi procurado por um rapaz desconhecido que lhe pediu meia hora de conversa particular.

— Chamo-me Adolfo P***, disse o moço quando se achou a sós com Rodrigo, e sou empregado no Tesouro. Pode informar-se do meu comportamento. Quanto ao meu caráter, espero que com o tempo conhecerá. Pretendo...

Aqui estacou o rapaz. Rodrigo, que era homem sagaz, percebeu qual era a pretensão de Adolfo. Não o auxiliou entretanto; preferiu saborear-lhe a perplexidade.

— Pretendo, repetiu Adolfo ao cabo de alguns segundos de silêncio, pretendo... ouso pedir-lhe a mão de sua filha.

Rodrigo ficou alguns instantes calado. Adolfo continuou...

— Repito; pode informar-se a meu respeito...

— Como pai, reconheço que me cumpre velar pelo futuro de minha filha, disse Rodrigo, mas a primeira condição de um casamento é a afeição recíproca. Tem autorização dela para?...

— Nunca nos falamos, disse Adolfo.

— Então... escrevem-se? perguntou Rodrigo.

— Nem isso. Duvido até que ela me conheça.

Rodrigo deu um salto na cadeira.

— Mas então, disse ele, que vem o senhor fazer à minha casa?

— Eu lhe digo, respondeu o pretendente. Amo sua filha apaixonadamente, e não há dia em que não procure vê-la; infelizmente, ela parece ignorar que eu existo no mundo. Até hoje, nem por distração, recebi um olhar dela. Longe de me desagradar esta indiferença, dou-me por feliz em achar tamanha discrição numa idade em que geralmente as moças gostam de ser admiradas e requestadas. Sei que não sou amado, mas não acho impossível vir a sê-lo. Seria porém impossível se continuasse a situação em que ambos nos achamos. Como saberia ela que eu a adoro, se nem suspeita que eu existo? Depois de refletir muito neste assunto, tive a ideia de vir pedir-lhe a mão de sua filha, e no caso de que o senhor não me achasse indigno dela, pediria para ser apresentado à sua família, caso este em que eu poderia saber se realmente...

— Paremos aqui, interrompeu Rodrigo. O senhor pede-me uma coisa singular; pelo menos não conheço semelhantes usos. Estimaria muito que o senhor fosse feliz, mas não me presto a isso... por semelhante modo.

Adolfo insistiu no pedido; mas o pai de Miloca cortou a conversa levantando-se e estendendo a mão ao pretendente.

— Não lhe quero mal, disse ele; faça-se amado e volte. Nada mais lhe concedo.

Adolfo saiu de cabeça baixa.

Nesse mesmo dia procurou Rodrigo sondar o espírito da filha, a fim de saber se ela, ao contrário do que parecia a Adolfo, tinha dado fé do rapaz. Pareceu-lhe que não.

“Tanto pior para ele”, disse Rodrigo consigo.

No domingo seguinte estava ele à janela com a cunhada, quando viu passar Adolfo, que lhe tirou o chapéu.

— Quem é aquele moço? perguntou D. Pulquéria.

Um leve sorriso foi a resposta de Rodrigo, — quanto bastou para aguçar a curiosidade de D. Pulquéria.

— Você ri-se, disse ela. Que mistério é esse?

— Mistério nenhum, disse Rodrigo.

Insistiu a velha; e o cunhado não hesitou em lhe contar a conversa e o pedido do rapaz, acrescentando que, na sua opinião Adolfo era um palerma.

— E por quê? disse D. Pulquéria.

— Porque a um rapaz como ele não faltam meios de se fazer conhecido da dama de seus pensamentos. Eu vendo muito papel bordado e muita tinta azul, e onde a palavra não chega, chega uma carta.

— Não faltava mais nada! exclamou D. Pulquéria. Mandar cartas à rapariga e transtornar-lhe a cabeça... Seu irmão nunca se atreveu a tanto comigo...

— Meu irmão era um maricas em tempo de paz, observou Rodrigo sorvendo uma pitada.

D. Pulquéria protestou energicamente contra a opinião do cunhado, e este foi obrigado a confessar que o irmão era pelo menos um homem prudente. Passada essa questão incidente, voltou D. Pulquéria ao assunto principal e condenou a resposta que Rodrigo dera a Adolfo, dizendo que era talvez um excelente marido para Miloca.

— Miloca, acrescentou a velha, é uma rapariga muito metida consigo. Pode ser que não ache casamento tão cedo, e nós não havemos de viver sempre. Quer você que ela aí fique sem proteção no mundo?

— Não, decerto, retorquiu Rodrigo, mas que devia eu fazer?

— O que devia fazer era informar-se do rapaz, e se lhe parecesse digno dela, apresentá-lo cá. Eu aqui estou para velar por ela.

D. Pulquéria desenvolveu este tema com a autoridade de uma senhora convencida. Rodrigo não deixou de lhe achar alguma razão.

— Pois bem, disse ele, eu indagarei do procedimento do rapaz, e se vir que merece, cá o trago... Mas isso é impossível, agora reparo; não acho bonito, nem decente que eu vá agora buscá-lo; parecerá que lhe meto a rapariga à cara.

— Tem razão, concordou a cunhada. E a culpa da dificuldade é toda sua. Em suma, é bom indagar; depois veremos o que se há de fazer.

As informações foram excelentes. Adolfo gozava de excelente reputação; era econômico, morigerado, laborioso, a pérola da repartição, o beijinho dos superiores. Nem com uma lanterna se encontraria marido daquela qualidade, tão à mão.

— Bem me dizia o coração, ponderou D. Pulquéria, que este rapaz era cá enviado pela Providência Divina. E você estragou tudo. Mas Deus é grande; esperemos que ele nos favoreça.

CAPÍTULO II

Não confiava debalde na Providência Divina a Srª. D. Pulquéria da Assunção. Cinco dias não eram passados quando um acontecimento desastroso veio atar as relações entre Adolfo e a família de Miloca.

Rodrigo era um dos mais extremos partidários da escola romântico-estragada. Ia ver algum drama de senso comum só por comprazer à família. Mas sempre que podia assistir a um daqueles matadouros literários tão em moda há vinte anos, — e ainda hoje —, vingava-se da condescendência a que o obrigava às vezes o amor dos seus. Estava então fazendo bulha um drama em seis ou oito quadros e outras tantas mortes, obra que o público aplaudia com delírio. Rodrigo tinha ido ver o drama, e viera para casa entusiasmadíssimo, a tal ponto que D. Pulquéria também se entusiasmou e ficou assentado que iriam no dia seguinte ao teatro.

Miloca tentou impedir a resolução, mas não teve força para o conseguir. De tarde caiu sobre a cidade uma daquelas trovoadas de que o nosso clima vai perdendo a tradição, e Rodrigo, que em tempo seco preferia andar de carro, com mais razão desta vez mandou vir um e lá foi a família ver a peça da moda.

Não nos interessa saber que impressões trouxeram de lá as duas senhoras; ambas começaram a dormir apenas entraram no carro, e se em Miloca era talvez aborrecimento, em D. Pulquéria era evidentemente cansaço. A boa velha já não era para dramas tão compridos nem paixões tão fortes. Encostou a cabeça e começou a ressonar.

Rodrigo ficou reduzido a um completo monólogo. Elogiava ele o drama, soltava exclamações, interrogava inutilmente as senhoras, e parecia engolfado na ideia de tudo que vira quando sentiu que o carro descambava docemente para o lado esquerdo. O cocheiro passara a casa e dera uma volta com o fim de chegar mais à porta; nessa ocasião as rodas da frente ficaram debaixo e isto produziu a queda suave do veículo.

Os três passageiros deram um grito, que foi o prelúdio de muitos outros gritos, principalmente de D. Pulquéria que misturava atrapalhadamente preces e pragas. Felizmente havia na vizinhança um baile, e os cocheiros de outros carros acudiram depressa para impedir que os burros disparassem. Esta providência era de todo ponto inútil porque os burros, em cujo ânimo parece que também influíra o drama, aproveitaram a queda para dormir completamente.

O cocheiro saltou no chão e tratou de salvar os náufragos; mas já encontrou junto da portinhola que ficara voltada para cima um rapaz desconhecido, que parecia ter a mesma ideia.

Dizer-lhes que esse rapaz era Adolfo seria supor que os leitores nunca leram romances. Adolfo não passara por acaso; estava ali havia muito aguardando a volta de Miloca para ter a satisfação de a ver de longe. Quis a fortuna dele que houvesse desastre do carro. Levado por um duplo sentimento de humanidade e de egoísmo, o bom rapaz atirou-se ao veículo e começou a pescar as vítimas.

A primeira pessoa que saiu foi D. Pulquéria, que apenas se achou sã e salva, deu graças a Nossa Senhora e descompôs em termos brandos o cocheiro. Enquanto ela falava, estendia Adolfo a mão para dentro do carro, para tirar Miloca. A moça estendeu-lhe a mão, e o rapaz estremeceu. Daí a dois minutos saía ela do carro, e Adolfo tirava a terceira vítima, que gemia com a dor de uma ferida no nariz. Miloca apenas teve uma contusão no rosto. D. Pulquéria parece que por ser gorda ofereceu mais resistência ao choque.

Rodrigo estancava o sangue com o lenço; Miloca entrara no corredor da casa, o cocheiro tratava de levantar o carro ajudado por alguns colegas, quando D. Pulquéria, que já durante alguns minutos tinha os olhos pregados em Adolfo, exclamou:

— Foi o senhor quem nos salvou! Ó mano Rodrigo, aqui está a pessoa que nos salvou... Olhe!

— Mas não me salvou o nariz! objetou Rodrigo com mau humor. Pois quê! é o senhor! continuou ele aproximando-se do rapaz.

— É verdade, respondeu modestamente Adolfo.

Rodrigo estendeu-lhe a mão.

— Oh! fico-lhe muito obrigado!

— Devemos-lhe a vida, observou Dona Pulquéria, e creio que lhe seremos eternamente gratos. Quer descansar?

— Obrigado, minha senhora.

— Mas ao menos prometa que há de vir à nossa casa, disse D. Pulquéria.

— Se me permitem essa honra...

— Não permitimos, exigimos, disse Rodrigo.

— O meu serviço não vale nada, respondeu Adolfo; fiz o que faria outra qualquer pessoa. Todavia, se me permite, virei saber da saúde do senhor...

— Da saúde do meu nariz, emendou galhofeiramente Rodrigo; venha que nos dará grande prazer. Deixe-me apresentá-lo a minha filha...

Era tarde. Miloca, menos grata que os dois velhos, ou mais necessitada de descanso que eles, tinha subido havia já cinco minutos.

Adolfo despediu-se de Rodrigo e de D. Pulquéria e foi esperar na esquina a passagem do carro. Chamou o cocheiro e deu-lhe uma nota de cinco mil-réis.

— Aqui está o que você perdeu quando o carro tombou.

— Eu? perguntou o cocheiro que sabia não ter um vintém na algibeira.

— É verdade, disse Adolfo.

E sem mais explicações foi andando.

O cocheiro era sagaz como bom cocheiro que era. Sorriu e guardou o dinheiro no bolso.

Adolfo não era tão pouco fino que fosse logo apresentar-se em casa de Rodrigo. Esperou quarenta e oito horas antes que desse sinal de si. E não foi à casa da família, mas à loja de Rodrigo, que já lá estava com um pequeno emplastro no nariz. Rodrigo agradeceu outra vez o serviço que lhe prestara assim como à sua família na noite do desastre e procurou estabelecer desde logo uma salutar familiaridade.

— Não sabe, lhe disse ele quando o rapaz se dispunha a sair, não sabe como minha cunhada ficou morrendo pelo senhor...

— Parece ser uma excelente senhora, disse Adolfo.

— É uma pérola, respondeu Rodrigo. E se quer que lhe fale franco, eu estou sendo infiel à promessa que lhe fiz.

— Como assim?

— Prometi a minha cunhada que o levaria lá em casa apenas o encontrasse, e separo-me do senhor sem desempenhar a minha palavra.

Adolfo curvou levemente a cabeça.

— Muito agradeço essa prova de bondade, disse ele, e sinto realmente não poder corresponder ao desejo de sua cunhada. Estou pronto porém a lá ir apresentar-lhe os meus respeitos no dia e hora que me designar.

— Quer que lhe diga uma coisa? disse alegremente o comerciante. Eu não sou homem de etiqueta; sou cá do povo. Simpatizo com o senhor, e sei a simpatia que minha cunhada lhe tem. Faça uma coisa: venha jantar conosco domingo.

Adolfo não pôde conter a sua alegria. Evidentemente não contava com tamanha maré de felicidade. Agradeceu e aceitou o convite de Rodrigo e saiu.

No domingo seguinte, apresentou-se Adolfo em casa do comerciante. Ia de ponto em branco, sem que esta expressão se deva entender no sentido da alta elegância fluminense. Adolfo era pobre e vestia com apuro relativamente à sua classe. Estava longe porém do rigor e da opulência aristocrática.

D. Pulquéria recebeu o pretendente com aquelas carícias que as velhas de bom coração costumam ter. Rodrigo desfez-se em solícitos cumprimentos. Só Miloca parecia indiferente. Estendeu-lhe a ponta dos dedos, e nem olhou para ele enquanto o mísero namorado murmurou algumas palavras relativas ao desastre. O introito foi mau. D. Pulquéria percebeu isso, e tratou de animar o rapaz, falando-lhe com animada familiaridade.

Nunca a filha de Rodrigo parecera tão formosa aos olhos de Adolfo. A mesma severidade lhe dava um ar distinto e realçava a incomparável beleza das suas feições. Mortificava-o, é verdade, a indiferença; mas podia ele esperar mais alguma coisa logo da primeira vez?

Miloca tocou piano a convite do pai. Era excelente pianista, e entusiasmou deveras o pretendente, que não pôde disfarçar a sua impressão e murmurou um respeitoso cumprimento. Mas a moça limitou-se a um gesto de cabeça, acompanhado de um olhar que parecia dizer: “O senhor entende disto?”.

Durante o jantar, a velha e o cunhado fizeram galhardamente as honras da casa. Adolfo ia perdendo a pouco e pouco as maneiras cerimoniosas, conquanto a atitude de Miloca lhe acanhasse o espírito. Era inteligente, polido e galhofeiro; a boa vontade dos olhos e as qualidades reais dele venceram em pouco tempo grande caminho. No fim do jantar era um conhecido velho.

— Tenho uma ideia, disse Rodrigo quando chegaram à sala. Vamos dar um passeio?

A ideia foi aceita por todos, exceto por Miloca que declarou estar incomodada, pelo que a ideia ficou sem execução.

Adolfo saiu de lá mal impressionado; e teria desistido da empresa, se o amor não fosse engenhoso em derrubar imaginariamente todas as dificuldades deste mundo. Continuou a frequentar a casa de Rodrigo, onde era recebido com verdadeira satisfação, menos por Miloca que parecia cada vez mais indiferente ao namorado.

Vendo que a situação do rapaz não melhorava, e parecendo-lhe que a sobrinha não acharia melhor marido do que ele, interveio D. Pulquéria, não por meio da autoridade, mas com as armas dóceis da persuasão.

— Acho singular, Miloca, a maneira por que tratas o Sr. Adolfo.

— De que maneira o trato? perguntou a moça mordendo os beiços.

— Secamente. E não compreendo isto porque ele é um excelente moço, muito bem-educado, e além disso já nos prestou um serviço em ocasião séria.

— Tudo isso é verdade, respondeu Miloca, mas eu não sei como quer que o trate. Meu modo é esse. Não posso afetar o que não sinto; e a sinceridade creio que é uma virtude.

— É também a virtude do sr. Adolfo, observou D. Pulquéria sem parecer abalada com a sequidão da sobrinha; devias ter reparado que é um moço muito sincero, e eu...

Aqui parou D. Pulquéria por um artifício que lhe pareceu excelente: esperou que a curiosidade de Miloca lhe pedisse o resto. Mas a sobrinha parecia completamente ausente dali, e não deu mostras de querer saber o resto do período.

D. Pulquéria fez um gesto de despeito, e não disse palavra, enquanto Miloca folheava os jornais em todos os sentidos.

— Não acho casa, disse ela depois de algum tempo.

— Casa? perguntou D. Pulquéria admirada.

— É verdade, minha tia, disse Miloca sorrindo, eu pedi a papai para que nos mudássemos daqui. Acho isto muito feio: não faria mal que morássemos em algum bairro mais bonito. Papai disse que sim, e eu ando a ler os anúncios...

— Ainda agora sei disso, disse D. Pulquéria.

— Casas aparecem muitas, continuou a moça, mas as ruas não prestam. Se fosse no Catete...

— Estás doida? perguntou D. Pulquéria; lá as casas são mais caras do que aqui, e além disso transtornaria o negócio de teu pai. Admira como ele consente em semelhante coisa!

Miloca pareceu não atender às objeções da tia. Esta, que era sagaz, e vivia com a sobrinha havia muito tempo, atinava com a razão do recente capricho. Levantou-se e pôs a mão na cabeça da moça.

— Miloca, por que hás de ser assim?

— Assim como?

— Por que hás de olhar tanto para cima?

— Se titia está de pé, respondeu maliciosamente a moça, eu hei de por força olhar para cima.

D. Pulquéria achou graça à resposta evasiva que a sobrinha lhe deu e não pôde reter um sorriso.

— Tonta! lhe disse a boa velha.

E acrescentou:

— Tenho pensado muito em ti.

— Em mim? perguntou ingenuamente Miloca.

— Sim; nunca pensaste no casamento?

— Nunca.

— E se aparecesse um noivo digno de ti?

— Digno de mim? Conforme; se eu o amasse...

— O amor vem com o tempo. Há bem perto de nós alguém que te ama, um moço digno de toda a estima, laborioso, grave, um marido como não há muitos.

Miloca desatou a rir.

— E titia viu isso primeiro que eu? perguntou ela. Quem é esse achado?

— Não adivinhas?

— Não posso adivinhar.

— O Adolfo, declarou D. Pulquéria depois de um minuto de hesitação.

Miloca franziu o sobrolho; depois deu uma nova risada.

— De que te ris?

— Acho engraçado. Com que então o Sr. Adolfo dignou-se olhar para mim? Não tinha percebido; não podia esperar tamanha felicidade. Infelizmente, não o amo... e por mais digno que seja o noivo, se eu o não amar vale para mim o mesmo que um vendedor de fósforos.

— Miloca, disse a velha contendo a indignação que lhe causavam estas palavras da sobrinha, o que acaba de dizer não é bonito, e eu...

— Perdão, titia, interrompeu Miloca, não se dê por ofendida; respondia gracejando a uma notícia que também me pareceu gracejo. A verdade é que eu não desejo casar-me. Quando vier a minha hora, saberei tratar seriamente o noivo que o céu me destinar. Creio porém que não há de ser o sr. Adolfo, um pé-rapado...

Aqui a boa velha cravou um olhar de indignação na sobrinha, e saiu. Miloca levantou os ombros e foi tocar umas variações de Thalberg.

CAPÍTULO III

A causa de Adolfo estava condenada, e parece que ele ajudava o seu triste destino. Já vemos que Miloca aborrecia nele a sua não brilhante condição social, que era aliás um ponto de contato entre ambos, coisa que a moça não podia compreender. Adolfo, entretanto, além desse pecado original, tinha a mania singular de fazer discursos humanitários, e mais do que discursos, ações; perdeu-se de todo.

Miloca não era cruel; pelo contrário, tinha sentimentos caridosos; mas, como ela mesma disse um dia ao pai, nunca se deve dar esmola sem luvas de pelica, porque o contato da miséria não aumenta a grandeza da ação. Um dia, em frente da casa, caiu uma preta velha ao chão, abalroada por um tílburi; Adolfo, que ia a entrar, correu à infeliz, levantou-a nos braços e levou-a à botica da esquina, onde a deixou curada. Agradeceu ao céu o ter-lhe proporcionado o ensejo de uma bela ação diante de Miloca que estava à janela com a família, e subiu alegremente as escadas. D. Pulquéria abraçou o herói; Miloca mal lhe estendeu a ponta dos dedos.

Rodrigo e D. Pulquéria conheciam o caráter da moça e procuravam modificá-lo por todas as maneiras, lembrando-lhe que o nascimento dela não era tão brilhante que pudesse ostentar tamanho orgulho. A tentativa era sempre inútil. Duas causas havia para que ela não mudasse de sentimentos: a primeira era proveniente da natureza; a segunda da educação. Rodrigo estremecia a filha, e buscou dar-lhe uma educação esmerada. Fê-la entrar como pensionista em um colégio, onde Miloca ficou em contato com as filhas das mais elevadas senhoras da capital. Afeiçoou-se a muitas delas, cujas famílias visitou desde a infância. O pai tinha orgulho em ver que a filha era assim tão festejada nos primeiros salões, onde aliás ele nunca passou de um intruso. Miloca bebeu assim um ar que não era precisamente o do armarinho da Cidade Nova.

Que vinha pois fazer o mísero Adolfo nesta galera? Não era assim o marido que a moça sonhava; a imaginação da orgulhosa dama aspirava a maiores alturas. Podia não exigir tudo quanto quisera ter, um príncipe ou um duque se os houvesse cá disponíveis; mas entre um príncipe e Adolfo a distância era enorme. Donde resultava que a moça não se limitava a um simples desdém; tinha ódio ao rapaz porque a seus olhos era grande afronta, não já nutrir esperanças, mas simplesmente amá-la.

Para completar esta notícia do caráter de Miloca, é mister dizer que ela sabia do amor de Adolfo muito antes que o pai e a tia tivessem conhecimento dele. Adolfo estava persuadido que a filha de Rodrigo nunca tinha reparado nele. Iludia-se. Miloca possuía essa qualidade excepcional de ver sem olhar. Percebeu que o rapaz gostava dela, quando o via na igreja ou em alguma partida em casa de amizade no mesmo bairro. Perceber isto foi condená-lo.

Ignorando todas estas coisas, Adolfo atribuía à sua má ventura o não ter ganho a menor polegada de terreno. Não ousava comunicar as suas impressões ao comerciante nem à cunhada, posto descobrisse que ambos eram favoráveis ao seu amor. Meditou longamente no caso, e resolveu dar um golpe decisivo.

Um ex-comerciante abastado da vizinhança casou uma filha, e convidou a família de Rodrigo para as bodas. Adolfo também recebeu convite e não deixou de comparecer, disposto a espreitar ali uma ocasião de falar a Miloca, o que não lhe fora possível nunca em casa dela. Para os amantes multidão quer dizer solidão. Não acontece o mesmo com os pretendentes. Mas Adolfo tinha um plano feito; alcançaria dançar com ela, e nessa ocasião soltaria a palavra decisiva. A fim de obter uma concessão que julgava difícil na noite do baile, pediu-lhe uma quadrilha, na véspera, em casa dela, em presença da tia e do pai. A moça concedeu-lha sem hesitação, e se o rapaz pudesse penetrar no espírito dela, não teria aplaudido, como fez, a sua resolução.

Miloca estava deslumbrante na sala do baile, e ofuscou completamente a noiva, objeto da festa. Se Adolfo estivesse nas boas graças dela, teria sentido legítimo orgulho ao ver a admiração que ela despertava em torno de si. Mas para um namorado repelido não há pior situação do que ver desejado um bem que lhe não pertence. A noite foi pois um suplício para o rapaz.

Afinal chegou a quadrilha concedida. Adolfo atravessou a sala trêmulo de comoção e palpitante de incerteza, e estendeu a mão a Miloca. A moça levantou-se com a graça do costume e acompanhou o par. Durante as primeiras figuras, Adolfo não ousou dizer palavra sobre coisa nenhuma. Ao ver porém que o tempo corria, e era necessário uma decisão, dirigiu-lhe algumas palavras banais como são as primeiras palavras de um homem pouco afeito a tais empresas.

Pela primeira vez Miloca encarou o namorado, e, longe do que se poderia supor, não havia em seu gesto a menor sombra de aborrecimento; pelo contrário, parecia animar o novel cavalheiro a mais positivo ataque.

Animado com esse introito, Adolfo foi direto ao coração do assunto.

— Talvez, D. Emília, disse ele, talvez tenha notado que eu...

E parou.

— Que o senhor... o quê? perguntou a moça que parecia saborear a perplexidade do rapaz.

— Que eu sinto...

Nova interrupção.

Era chegada a Chaine des Dames. Miloca deixou o rapaz meditar nas dificuldades da sua posição.

“Sou um asno, dizia Adolfo consigo. Pois que razão me arriscarei a deixar para depois uma explicação que vai em tão bom caminho? Ela parece disposta...”

No primeiro intervalo reatou a conversação.

— Dir-lhe-ei tudo de uma vez... Amo-a. Miloca fingiu-se admirada.

— A mim? perguntou ela ingenuamente.

— Sim... atrevi-me a... Perdoa-me?

— Com uma condição.

— Qual?

— Ou antes, com duas condições. A primeira é que se há de esquecer de mim; a segunda é que não há de voltar lá à casa.

Adolfo olhou espantado para a moça e durante alguns segundos não achou resposta que lhe dar. Preparou-se para tudo, mas aquilo ia além dos seus cálculos. A única coisa que lhe pôde dizer foi esta pergunta:

— Fala sério?

Miloca fez um gesto de cólera, que reprimiu logo; depois sorriu e murmurou:

— Que se atreva a amar-me, é muito, mas injuriar-me, é demais!

— Injúria pede injúria, retorquiu Adolfo.

Miloca desta vez não olhou para ele. Voltou-se para o cavalheiro que ficava próximo e disse:

— Quer conduzir-me ao meu lugar?

Deu-lhe o braço e atravessou a sala, no meio do pasmo geral. Adolfo humilhado, vendo-se alvo de todas as vistas, procurou esquivar-se. D. Pulquéria não viu o que se passou; estava conversando com a dona da casa em uma saleta contígua; Rodrigo jogava nos fundos da casa.

Aquele misterioso lance teatral foi o assunto das palestras durante o resto da noite. Impossível foi porém saber a causa dele. O dono da casa, sabedor do acontecimento, pediu desculpa dele à filha de Rodrigo, pois julgava ter parte indireta nele pelo fato de haver convidado Adolfo. Miloca agradeceu a atenção, mas nada revelou do que se passara.

Nem o pai nem a tia souberam de nada; no dia seguinte porém recebeu Rodrigo uma longa carta de Adolfo relatando o sucesso da véspera e pedindo desculpa ao velho de ter dado causa a um escândalo. Nada ocultou do que se passara, mas absteve-se de moralizar a atitude da moça. Rodrigo conhecia o defeito da filha e não lhe foi difícil perceber que a causa primordial do acontecimento fora ela. Todavia não lhe disse nada. D. Pulquéria porém foi menos discreta na primeira ocasião que se lhe ofereceu, disse amargas verdades à sobrinha, que lhas ouviu sem replicar.

CAPÍTULO IV

Felizes aqueles cujos dias correm com a insipidez de uma crônica vulgar. Geralmente os dramas da vida humana são mais toleráveis no papel que na realidade.

Poucos meses depois da cena que deixamos relatada, a família de Miloca sofreu um grave revés pecuniário; Rodrigo perdeu o pouco que tinha, e não tardou que a este acontecimento sucedesse outro não menos sensível: a morte de D. Pulquéria. Reduzido à extrema pobreza e achacado de moléstias, Rodrigo viveu ainda alguns meses atribulado e aborrecido da vida.

Miloca mostrou nesses dias amargos uma grande força de ânimo, maior do que se podia esperar daquele espírito quimérico. Bem sabia ela que o seu futuro era negro e nenhuma esperança poderia vir animá-lo. Todavia, parecia completamente alheia a essa ordem de considerações.

Rodrigo faleceu repentinamente uma noite em que parecia começar a recobrar a saúde. Era o último golpe que vinha ferir a moça, e esse não o suportou ela com a mesma coragem até ali manifestada. Uma família da vizinhança ofereceu-lhe asilo logo na noite do dia em que se enterrou o pai. Miloca aceitou o favor, disposta a dispensá-lo por qualquer maneira razoável e legítima.

Não tinha muito que escolher. Só uma carreira lhe estava aberta: a do professorado. A moça resolveu-se a ir ensinar em algum colégio. Custava-lhe isto ao orgulho, e era com certeza a morte de suas esperanças aristocráticas. Mas segundo ela disse a si mesma, era isso menos humilhante do que comer as sopas alheias. Verdade é que as sopas eram servidas em pratos modestos...

Nesse projeto estava, — apesar de combatido pela família que tão afetuosamente lhe abrira as portas, — quando apareceu em cena um anjo enviado do céu. Era uma de suas companheiras de colégio, casada de fresco, que vinha pedir-lhe o obséquio de ir morar com ela. Miloca recusou o pedido com alguma resolução; mas a amiga vinha disposta a esgotar todos os argumentos possíveis até vencer as repugnâncias de Miloca. Não lhe foi difícil; a altiva órfã cedeu e aceitou.

Leopoldina era o nome da amiga que lhe aparecera como um deus ex machina, acompanhada pelo marido, jovem deputado do Norte, governista inabalável e aspirante a ministro. Quem conversava com ele durante meia hora, nutria logo algumas dúvidas sobre se os negócios do Estado ganhariam muito em que ele os dirigisse. Dúvida realmente frívola, que ainda não fechou a ninguém as avenidas do poder.

Leopoldina era o contraste de Miloca; tanto uma tinha de altiva, imperiosa e seca, quanto a outra de dócil, singela e extremamente afável. E não era esta a única diferença. Miloca era sem dúvida uma moça distinta; mas era mister estar só. A sua distinção precisava não ser comparada com outra. Nesse terreno também Leopoldina lhe levava muita vantagem. Tinha uma distinção mais própria, mais natural, mais inconsciente. Onde porém Miloca lhe levava a melhor era nos dotes físicos, o que não quer dizer que Leopoldina não fosse bela.

Para ser exato devo dizer que a filha de Rodrigo não aceitou alegremente, nos primeiros dias, a hospitalidade de Leopoldina. Orgulhosa como era, doía-lhe a posição dependente em que se achava. Mas isso durou pouco, graças à extrema habilidade da amiga, que empregou todos os esforços para disfarçar a aspereza das circunstâncias, colocando-a na posição de pessoa de família.

Alcançara Miloca os seus desejos. Vivia numa sociedade bem diferente daquela em que vivera a família. Já não via todas as tardes o modesto boticário da esquina ir jogar o gamão com o pai; não suportava as histórias devotas de D. Pulquéria; não via à mesa uma velha doceira amiga de sua casa; nem parava à porta do armarinho quando voltava da missa nos domingos. Era muito outra sociedade, era a única que ela ambicionava e compreendia. Aceitaram todos a posição em que Leopoldina tinha a amiga; muitas das moças que lá iam foram suas companheiras de colégio; tudo lhe correu fácil, tudo se lhe tornou brilhante.

Uma só coisa, porém, vinha de quando em quando escurecer o espírito de Miloca. Ficaria ela sempre naquela posição, que apesar de excelente e brilhante, tinha a desvantagem de ser equívoca? Esta pergunta, cumpre dizê-lo, não lhe surgia no espírito por si mesma, mas como prelúdio de outra ideia, capital para ela. Por outras palavras, o que a agitava principalmente era o problema do casamento. Casar-se, mas casar-se bem, eis o fim e a preocupação de Miloca. Não faltava onde escolher. Iam à casa de Leopoldina muitos rapazes bonitos, elegantes, distintos, e não poucos ricos. Talvez Miloca ainda não sentisse amor verdadeiro por nenhum deles; mas essa circunstância era puramente secundária no sistema adotado por ela.

Parece que Leopoldina também pensara nisso, porque mais de uma vez tocara nesse assunto com a liberdade que lhe dava a afeição. Miloca respondia evasivamente, mas não repelia de todo a ideia de um consórcio feliz.

— Por ora, acrescentava ela, ainda o meu coração não bateu; e o casamento sem amor é uma coisa terrível, penso eu; mas quando vier o amor, espero em Deus que serei feliz. Sê-lo-ei?

— Sê-lo-ás, respondeu comovida a amiga hospitaleira. Nesse dia conta que eu te ajudarei.

Um beijo terminava estas confidências.

Infelizmente para Miloca, estes desejos pareciam longe da realização. Dos rapazes casadeiros nenhum contestava a beleza da moça; mas corria entre eles uma teoria de que a mais bela mulher deste mundo precisa de não vir com as mãos abanando.

Ao cabo de dois anos de inúteis esperanças, Miloca transigiu com a sua altivez, trocou o papel de praça que pede assédio pelo de exército sitiador.

Um primo segundo de Leopoldina foi o seu primeiro objetivo. Era um jovem bacharel, formado poucos meses antes em S. Paulo, rapaz inteligente, alegre e franco. Os primeiros fogos das baterias de Miloca produziram efeito; sem ficar apaixonado de todo, começou a gostar da rapariga. Infelizmente para ela, coincidiu este ataque de frente com um ataque de flanco, e a praça foi tomada por uma rival mais feliz.

Não desanimou a moça. Dirigiu os seus tiros para outro ponto, desta vez não pegaram as bichas, o que obrigou a bela pretendente a lançar mão de terceiro recurso. Com mais ou menos felicidade, andou Miloca nesta campanha durante um ano, sem alcançar o seu máximo desejo.

A derrota não lhe quebrou o orgulho; antes lhe deu um toque de azedume e hipocondria, que a fez um tanto insuportável. Mais de uma vez pretendeu deixar a casa da amiga e ir professar em algum colégio. Mas Leopoldina resistia sempre a esses projetos, já mais veementes que ao princípio. O despeito parecia aconselhar à bela órfã o completo esquecimento de seus planos matrimoniais. Compreendia agora que, talvez pela mesma razão com que ela recusara o amor de Adolfo, recusavam-lhe agora o amor dela. A punição, dizia ela consigo, fora completa.

A imagem de Adolfo surgiu então em seu espírito atribulado e abatido. Não se arrependeu do que fizera; mas lamentou que Adolfo não estivesse em posição cabal de lhe realizar os seus sonhos e ambições.

“Se assim fosse, pensava Miloca, eu seria hoje feliz, porque esse amava-me.”

Tardias queixas eram aquelas. O tempo corria, e a moça com o seu orgulho se definhava na solidão povoada da sociedade a que aspirava desde os tempos da sua mediania.

CAPÍTULO V

Uma noite, estando no teatro, viu em um camarote fronteiro duas moças e dois rapazes; um dos rapazes era Adolfo. Miloca estremeceu; involuntariamente, não de amor, não de saudade, mas de inveja. Seria uma daquelas moças esposa dele? Ambas eram distintas, elegantes; ambas formosas. Miloca perguntou a Leopoldina se conhecia os dois rapazes; o marido da amiga foi quem lhe respondeu:

— Só conheço um deles; o mais alto.

O mais alto era Adolfo.

— Parece-me que também o conheço, disse Miloca, e foi por isso que lho perguntei. Não é um empregado do Tesouro?

— Talvez fosse, respondeu o deputado; agora é um amável vadio.

— Como assim?

— Herdou do padrinho, explicou o deputado.

Leopoldina que tinha assentado o binóculo para ver as moças perguntou:

— Será casado com alguma daquelas moças?

— Não; é amigo da família, respondeu o deputado; e parece que não está disposto a casar.

— Por quê? aventurou Miloca.

— Dizem que teve um amor infeliz outrora.

Miloca estremeceu de alegria, e pôs o binóculo para o camarote de Adolfo. Este pareceu perceber que era objeto das indagações e conversas das três personagens, e já havia conhecido a antiga amada; todavia, disfarçou e conversou alegremente com as moças do seu camarote.

Depois de algum silêncio, disse Miloca:

— Parece que o senhor acredita em romances; pois há quem conserva assim um amor a ponto de não querer casar?

E como se se arrependesse desta generalidade, emendou: Nos homens é difícil encontrar tamanha constância às afeições passadas.

— Nem eu lhe disse que ele conservava essa afeição, observou o deputado; esse amor infeliz do meu amigo Adolfo...

— É teu amigo? perguntou Leopoldina.

— É, respondeu o marido. E continuou: Esse amor infeliz do meu amigo Adolfo serviu para lhe dar uma triste filosofia a respeito de amores. Jurou não casar...

— E onde escreveu esse juramento?

— Não acredita que ele o cumpra? perguntou sorrindo o marido de Leopoldina.

— Francamente, não, respondeu Miloca.

Dias depois levou o deputado à casa o seu amigo Adolfo e o apresentou às duas senhoras. Adolfo falou a Miloca como pessoa de seu conhecimento, mas nenhuma palavra ou gesto revelou aos donos da casa o sentimento que ele tivera outrora. A mesma Miloca compreendeu que tudo estava extinto no coração do rapaz; mas não era fácil reviver a chama apagada? Miloca contava consigo, e reuniu todas as suas forças para uma luta suprema.

Infelizmente era verdade o que dissera o marido de Leopoldina. Adolfo parecia ter mudado completamente. Já não era o rapaz afetuoso, e tímido de outro tempo; mostrava-se agora gelado em coisas do coração. Não só o passado estava extinto, como nem era possível criar-lhe nenhum presente. Miloca compreendeu isto no fim de alguns dias, e todavia não desanimou.

Animou-a nesse propósito Leopoldina, que percebeu a tendência da amiga para o rapaz sem todavia conhecer uma sílaba do passado que havia entre ambos. Miloca negou a princípio, mas conveio-lhe dizer tudo, e mais do que isso, não pôde resistir, porque ela começava a amar deveras o rapaz.

— Não desanimes, lhe disse a amiga; estou que hás de triunfar.

— Quem sabe? murmurou Miloca.

Esta pergunta foi triste e desanimada. Era a primeira vez que ela amava, e isto lhe pareceu uma espécie de castigo que a Providência lhe infligia.

— Se ele me não corresponder, pensava Miloca, sinto que serei a mais desgraçada de todas as mulheres.

Adolfo percebeu o que se passava no coração da moça, mas pensou que era menos sincero o afeto que ela nutria. Quem lhe pintou claramente a situação foi o marido de Leopoldina, a quem esta havia contado tudo, com a certeza talvez da indiscrição dele.

Se Adolfo ainda a amasse, seriam ambos felicíssimos; mas sem o amor dele que esperança teria a moça? Digamos a verdade toda; Adolfo era em toda a extensão da palavra um rapaz cínico, mas cobria o cinismo com uma capa de seda, que o fazia apenas indiferente; de maneira que se algum raio de esperança podia entrar no ânimo de Miloca bem depressa se lhe devia esvaecer.

E quem arrancará a esperança de um coração que ama? Miloca continuava a esperar, e de certo tempo em diante alguma coisa lhe fazia crer que a esperança não seria vã. Adolfo parecia começar a reparar nela, e a ter alguma simpatia. Estes sintomas foram crescendo a pouco e pouco, até que Miloca teve um dia certeza de que o dia da sua felicidade estava próximo. Contara com a sua admirável beleza, com os vivos sinais do seu afeto, com algum germe do passado não de todo extinto no coração de Adolfo. Um dia acordou confiada de que todas estas armas lhe haviam dado o triunfo.

Não tardou que começasse o período epistolar. Seria coisa fastidiosa reproduzir aqui as cartas que os dois namorados trocaram durante um mês. Qualquer das minhas leitoras (sem ofensa de ninguém) conhece mais ou menos o que se diz nesse gênero de literatura. Copiarei todavia dois trechos interessantes de ambos. Seja o primeiro de Adolfo:

... Como poderia crer que eu houvesse esquecido o passado? Doloroso foi ele para mim, mas ainda mais que doloroso, delicioso; porque o meu amor me sustentava naquele tempo, e eu era feliz, posto não fosse amado. A ninguém mais amei senão a ti; mas confesso que até há pouco, o mesmo amor que te votei outrora já havia desaparecido. Tiveste o condão de reavivar uma chama já apagada. Fizeste um milagre, que eu tinha por impossível.

E confesso hoje, confesso sem hesitação, que tu vieste acordar um coração morto, e morto por ti mesma. Bem hajas tu! teu, serei teu até à morte!...

A estas calorosas expressões, respondia Miloca com igual ardor. De uma de suas cartas, a quinta ou sexta, copio estas palavras:

... Obrigada, meu Adolfo! tu és generoso, tu soubeste perdoar, porque soubeste amar outra vez aquela a quem devias ter ódio. Bem cruel fui eu em não conhecer a grandeza de tua alma! Hoje que te compreendo, choro lágrimas de sangue, mas ao mesmo tempo agradeço ao céu o ter-me dado a maior ventura desta vida, que é lograr a ventura que uma vez se repeliu... Se tu soubesses como eu te amo, escrava, pobre, mendiga, castigada por ti e desprezada por ti, amo-te, amar-te-ei sempre! etc., etc.

Numa situação como esta, o desenlace parecia claro; nada obstava que se casassem dali a um mês. Miloca era maior e não tinha nenhum parente. Adolfo era livre. Tal era a solução prevista por Leopoldina e seu marido; tal era a de Miloca.

Mas quem sabe o que nos guarda o futuro? E a que desvairamentos não arrasta o amor quando os corações são fracos? Um dia de manhã Leopoldina achou-se só; Miloca tinha desaparecido. Como, e por quê, e de que modo? Ninguém o soube. Com quem desaparecera, soube-se logo que fora Adolfo, que não voltou à casa do deputado.

Deixando-se arrastar pelo rapaz a quem amava, Miloca apenas consultou o seu coração; quanto a Adolfo, nenhuma ideia de vingança o dominara; cedeu a sugestões de libertinagem.

Durante cerca de um ano, ninguém soube dos dois fugitivos. A princípio soube-se que estavam na Tijuca; depois desapareceram dali sem que Leopoldina alcançasse a notícia deles.

Um ano depois do acontecimento narrado acima, reapareceu na corte o fugitivo Adolfo. Correu logo que vinha acompanhado da interessante Miloca. Casados? Não; e esse passo dado no caminho do erro foi funesto à ambiciosa moça. Que outra coisa podia ser? O mal engendra o mal.

Adolfo parecia estar aborrecido da aventura; e todavia Miloca ainda o amava como no princípio. Iludiu-se a respeito dele, nesses últimos tempos, mas afinal compreendeu que entre a atual situação e o fervor dos primeiros dias havia um abismo. Ambos arrastaram a cadeia durante um ano mais, até que Adolfo embarcou para Europa sem dar notícia de si à infeliz moça.

Miloca desapareceu tempos depois. Uns dizem que se fora à cata de novas aventuras; outros que se matara. E havia razão para ambas estas versões. Se morreu a terra lhe seja leve!

FIM

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Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1874. Em meus livros da coleção de Machado de Assis está no volume Escritos Avulsos I, de Obras Completas, Editora Globo, São Paulo, 1997.

COMENTÁRIO BREVE

O que mais chama a atenção nesta primeira fase de contos de Machado de Assis é a forma como ele dialoga com os leitores, quer dizer, via de regra, com as "leitoras".

"Não tardou que começasse o período epistolar. Seria coisa fastidiosa reproduzir aqui as cartas que os dois namorados trocaram durante um mês. Qualquer das minhas leitoras (sem ofensa de ninguém) conhece mais ou menos o que se diz nesse gênero de literatura..."

Outra coisa bem interessante são as frases ou sentenças que podemos retirar de suas narrativas. Veja essa que legal:

"Um ex-comerciante abastado da vizinhança casou uma filha, e convidou a família de Rodrigo para as bodas. Adolfo também recebeu convite e não deixou de comparecer, disposto a espreitar ali uma ocasião de falar a Miloca, o que não lhe fora possível nunca em casa dela. Para os amantes multidão quer dizer solidão..."

Por fim, uma característica na obra de Machado é o fato de não haver finais felizes ou idealizados como nas ficções água com açúcar.

William

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