terça-feira, 28 de outubro de 2008

Sobre a função cultural das privadas - Rubem Alves


Temos que saber apreciar os bons textos. Os textos artísticos ou literários têm a capacidade de trazer com maestria ideias que os leitores compartilham. Também têm a capacidade de despertar visões que os leitores não tinham até então.

Curtam esse de Rubem Alves, publicado na Folha de São Paulo. Muito bom o texto.


RUBEM ALVES

Sobre a função cultural das privadas

A privada é o lugar onde estamos sós e ninguém tem o direito de nos incomodar. Lugar de refúgio, santuário de solidão


"POR GENTILEZA, a senhora podia me dizer onde fica a privada?" A anfitriã, ao ouvir a palavra "privada", assusta-se e ruboriza-se. "Privada" não é palavra que se fale. Trata então de remendar: "Ah, o banheiro... O banheiro fica no fim daquele corredor...". O homem encaminha-se para o local indicado, intrigado: "Eu já tomei banho. Não quero tomar banho de novo...". Mas, logo ao entrar no banheiro, vê que a anfitriã estava enganada.

Lá não há nem banheira nem chuveiro. Só há uma privada, que é, precisamente, aquilo que ele está procurando.

Não é educado falar "privada", principalmente pelo fato de que essa palavra é sinônima da "latrina", palavra de música feia, há muito fora de uso, exceto nos escritos do Manoel de Barros -ele diz: "Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro -elas podem um dia milagrar violetas". Mas como as pessoas comuns não leem o Manoel de Barros, não se pode esperar que elas, ao ouvirem a palavra "latrina", pensem em violetas.

A primeira vez que fui aos Estados Unidos, arranhando inglês, numa escola, premido por forças fisiológicas, procurei o dito quarto. E logo vi, numa porta, escrito: "Private". Achei que private era "privada". Entrei pela porta. Mas logo descobri que "private" queria dizer que aquele era um cômodo onde eu não podia entrar. Quando, pela primeira vez, desci num aeroporto nos Estados Unidos e vi placas indicando "rest-rooms", achei que eram salas vip, com poltronas confortáveis, onde as pessoas descansavam, porque rest-room, traduzido literalmente, é "quarto de repouso". Mas não era. Era o lugar onde estavam as privadas e os mictórios.

Estou propondo que se recupere a dignidade da palavra "privada". Pois suspeito que ela esteja ligada a "privacidade", como o "private" americano. A privada é o lugar onde estamos sós e ninguém tem o direito de nos incomodar. Lugar de refúgio, santuário de solidão. Em festas, eu me escondo frequentemente nas privadas. Ali a gente não tem que estar sorrindo, não tem que achar as piadas engraçadas e pode se dar ao luxo de não falar.

Hoje, com os inúmeros estímulos da televisão e a correria da vida, as pessoas leem cada vez menos e, com isso, ficam burras cada vez mais. Mas a privada, onde nada nos perturba e ninguém tem o direito de nos interromper (a menos que você seja dos tolos que levam o telefone para a privada...), é um lugar excepcional para a leitura.

Vi, muitos anos atrás, nos Estados Unidos, uma coisa insólita, que jamais passaria pela minha cabeça: um papel higiênico que tinha, em cada folha, um aforismo, máxima ou conselho. O usuário não resistia à tentação e, antes de fazer o uso normal do papel, lia o que estava escrito, o que contribuía decisivamente para sua formação intelectual e espiritual. Imaginei uma melhoria nessa ideia: livros inteiros impressos no papel higiênico. Assim, aos poucos, assentada na privada, a pessoa iria lendo as grandes obras da literatura mundial. E a propaganda diria: "Use o papel higiênico "Inteligente", que dá cultura antes de limpar".

Se, no futuro, aparecerem tais papéis higiênicos inteligentes no mercado, quererei receber minha porcentagem de direitos autorais. E invocarei vocês, leitores, como testemunhas de que a ideia original foi minha.

Fonte: FSP

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