terça-feira, 24 de março de 2009

O não emprego do hífen - Evanildo Bechara



Refeição Cultural

(os sublinhados são para meu estudo pessoal)


Publicado originalmente em: O Estado de S. Paulo (SP) 8/3/2009

Dirige-se a esta seção o leitor a quem começamos a responder no último artigo, preocupado em saber por que colocar hífen em pé-de-moleque e não colocá-lo em pai dos burros, expressão popular referida a "dicionário".

O acordo ortográfico ensina-nos que as locuções de qualquer natureza devem ser usadas sem hífen, incluindo as duas locuções lembradas: pé de moleque e pai dos burros. A lição vem pôr ordem em matéria que corria indisciplinada em sistemas ortográficos oficiais anteriores, já que as locuções pronominais (cada um, ele próprio, nós mesmos, quem quer que seja, etc.), as prepositivas (abaixo de, acerca de, acima de, a fim de, a par de, a partir de, apesar de, aquando de, debaixo de, enquanto a, por baixo de, por cima de, quanto à, etc.), as conjuncionais (a fim de que, ao passo que, contanto que, logo que, visto que, etc.) eram usadas normalmente sem hífen, as demais locuções pareciam pertencer a terra de ninguém. Se fim-de-safra e fim-de-século eram contempladas com hífen, fim do mundo e fim de semana, também locuções, não gozaram do privilégio de ostentar o hífen.

Ainda neste terreno, tínhamos de exigir de quem escrevia saber distinguir um à-toa hifenado, se era locução adjetiva (Trata-se de um problema à-toa) de um à toa, não hifenado, se locução adverbial (Este trabalhou à toa). Ou ainda um dia-a-dia, locução substantiva com o sentido de "cotidiano" (Meu dia-a-dia é agradável), de dia a dia, locução adverbial, valendo por "diariamente" (A criança cresce dia a dia).

Com a lição do acordo de 1990 desaparecem tais incoerências, e todas as locuções passam a não precisar desse sinal diacrítico. Quando escrevemos, nosso texto não representa diretamente ideias, senão palavras, e estas é que representam ideias num segundo momento dessa operação lógico-simbólica, auxiliada pelos saberes de que dispomos todos os falantes de uma língua. Nós não falamos só com o conhecimento das regras elementares do pensar e do conhecimento de mundo (saber elocutivo); usamos do conhecimento da construção do texto, por isso que quando de manhã auguramos a alguém Bom dia!, não aludimos a condições atmosféricas (pode até estar chovendo a cântaros!), mas sabemos que estamos usando um texto de saudação matinal (saber expressivo). Também contamos com a situação e o contexto em que se desenvolve nossa fala. Por tudo isso e por mais alguns fatores é que nem o freguês nem o doceiro irão ter dúvida diante do pedido de um pé de moleque, sem hífen.

Retornando à pergunta do consulente, pai dos burros, locução substantiva para aludir familiarmente a "dicionário", não terá hífen. Levando em conta uma tradição ortográfica refletida nos dicionários, o acordo abriu exceção a um pequeno grupo de locuções que, fugindo à nova orientação, ainda serão hifenados: água-de-colônia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará, à queima-roupa.

Pelo que se vê, não estão arroladas nas exceções explicitamente indicadas no acordo as locuções substantivas pé de moleque e pai dos burros. O Dicionário Escolar da ABL registra as locuções sem hífen pé de atleta, pé de boi, pé de cabra, pé de chinelo, pé de galinha, pé de moleque, pé de pato, pé de vento. Respeitando a exceção do acordo, acolhe pé-de-meia, com hífen.

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