Este blog é para reflexões literárias, filosóficas e do mundo do saber. É também para postar minhas aulas da USP. Quero partilhar tudo que aprendi com os mestres de meu curso de letras.
sábado, 31 de outubro de 2009
Literatura Espanhola: A literatura do exílio
Reflexões sobre o exílio - Edward W. Said (leitura de texto e fragmentos interessantes)
Said nos fala da "dor mutiladora da separação". Nos diz que o exilado tem uma fratura incurável.
Exílio: uma fratura incurável
"O exílio é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar".
Cultura ocidental: uma obra de exilados
Em seguida, Said afirma que a moderna cultura ocidental é obra de exilados, emigrantes e refugiados do fascismo, comunismo e demais regimes que não toleram os dissidentes.
Said alerta que o exílio não pode ser posto a serviço do humanismo e que "pensar que o exílio é benéfico para essa literatura é banalizar suas mutilações, as perdas que inflige aos que sofrem".
O exílio é "tal como a morte, mas sem sua última misericórdia, arrancou milhões de pessoas do sistema de tradição, da família e da geografia".
Said nos dá alguns exemplos de poetas exilados - palestinos, paquistaneses etc - para tratar o exílio como uma punição política contemporânea.
Paris: capital dos exilados cosmopolitas... e dos desconhecidos
"Paris pode ser a capital famosa dos exilados cosmopolitas, mas é também uma cidade em que homens e mulheres desconhecidos passaram anos de solidão miserável: vietnamitas, argelinos, cambojanos, libaneses, senegaleses, peruanos".
Nacionalismo e exílio
"Chegamos ao nacionalismo e a sua associação essencial ao exílio. O nacionalismo é uma declaração de pertencer a um lugar, a um povo, a uma herança cultural. Ele afirma uma pátria criada por uma comunidade de língua, cultura e costumes e, ao fazê-lo, rechaça o exílio, luta para evitar seus estragos (...) todos os nacionalismos têm seus pais fundadores, seus textos básicos, quase religiosos, uma retórica do pertencer, marcos históricos e geográficos, inimigos e heróis oficiais."
O hábito e a habitação
O sociólogo francês Pierre Bourdieu denomina esse ethos do amálgama de práticas coletivas como habitus, práticas que ligam o hábito à habitação.
Exílio: privação de estar na habitação comunal
"Os nacionalismos dizem respeito a grupos, mas, num sentido muito agudo, o exílio é uma solidão vivida fora do grupo: a privação sentida por não estar com os outros na habitação comunal."
"O exílio, ao contrário do nacionalismo, é fundamentalmente um estado de ser descontínuo. Os exilados estão separados das raízes, da terra natal, do passado."
"O pathos do exílio está na perda de contato com a solidez e a satisfação da terra: voltar para o lar está fora de questão."
Said nos explica que os exilados preferem ver a si mesmos como parte de uma ideologia triunfante ou de um povo restaurado.
O exílio é uma condição ciumenta
"Nada é seguro. O exílio é uma condição ciumenta. O que você consegue é exatamente o que você não tem vontade de compartilhar (...) um sentimento exagerado de solidariedade de grupo e uma hostilidade exaltada em relação aos de fora do grupo, mesmo aqueles que podem, na verdade, estar na mesma situação que você."
Uma questão muito clara quando pensamos em judeus e palestinos.
Exilado é diferente de refugiado, expatriado e emigrado
Apesar de usarmos em geral os termos citados, muitas vezes não compreendemos a diferença entre eles.
"O exílio tem origem na velha prática do banimento. Uma vez banido, o exilado leva uma vida anômala e infeliz, com o estigma de ser um forasteiro. Por outro lado, os refugiados são uma criação do Estado do século XX. A palavra 'refugiado' tornou-se política: ela sugere grandes rebanhos de gente inocente e desnorteada que precisa de ajuda internacional urgente, ao passo que o termo 'exilado', creio eu, traz consigo um toque de solidão e espiritualidade."
"Os expatriados moram voluntariamente em outro país, geralmente por motivos pessoais ou sociais (...) eles podem sentir a mesma solidão e alienação do exilado, mas não sofrem com suas rígidas interdições. Os emigrados gozam de uma situação ambígua. Do ponto de vista técnico, trata-se de alguém que emigra para um outro país."
Criar um novo mundo para governar
"Grande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientadora, criando um novo mundo para governar.
Lukacs fala da criação da vida ficcional de maneira semelhante.
"Georg Lukács, na Teoria do romance, sustentou de modo convincente que o romance, forma literária criada a partir da irrealidade da ambição e da fantasia, é a forma da 'ausência de uma pátria transcendental'. De acordo com o teórico húngaro, as epopeias clássicas emanam de culturas estabelecidas em que os valores são claros, as identidades estáveis, a vida imutável."
Cultura clássica e cultura ocidental: opostas do ponto de vista do exilado
"O romance europeu baseia-se exatamente na experiência oposta, a de uma sociedade em mudança na qual um herói de classe média, itinerante e deserdado, busca construir um mundo novo que de alguma forma se pareça com o antigo, deixado para trás para sempre."
Simone Weil
"Ter raízes é talvez a necessidade mais importante e menos reconhecida da alma humana."
"É mais comum a pressão sobre o exilado para entrar - em partidos, movimentos nacionais ou no Estado. O exilado recebe a oferta de um novo conjunto de afiliações e estabelece novas lealdades. Mas há também uma perda - de perspectiva crítica, de reserva intelectual, de coragem moral."
O exílio pode ser uma oportunidade de resgate histórico
Said não enaltece o exílio, mas explica, entretanto, que estar na condição de povo exilado pode ser uma oportunidade de não ficar sentado à margem das coisas e ir em busca de seu passado, criar instituições e estudos de sua história, língua, tradições etc.
Theodor Adorno
O pensamento de Adorno é radical no que diz respeito à subjetividade de um povo exilado. Said nos diz isso comentando a obra-prima de Adorno - Minima Moralia, reflexões de uma vida mutilada.
"Adorno era um opositor implacável do que chamou de mundo 'administrado'; para ele, a vida era comprimida em formas prontas, 'lares' pré-fabricados. Sustentava que tudo o que dizemos ou pensamos, assim como todos os objetos que possuímos, são, em última análise, uma mera mercadoria. A linguagem é jargão, os objetos são para venda. Recusar esse estado de coisas é a missão intelectual do exilado."
"As reflexões de Adorno são animadas pela crença de que o único lar realmente disponível agora, embora frágil e vulnerável, está na escrita. Fora isso
a casa é passado. O bombardeio das cidades europeias, bem como os campos de trabalho e de concentração, é apenar antecedente do que o desenvolvimento imanente da tecnologia decidiu há muito tempo que seria o destino das casas. Elas agora servem apenas para serem jogadas fora, como latas velhas.
Adorno diz, com grave ironia, que 'faz parte da moralidade não se sentir em casa na própria casa' ".
Hugo de Saint Victor: para o homem forte o lar são todos os lugares
"Portanto, é fonte de grande virtude para a mente exercitada aprender, pouco a pouco, primeiro a mudar em relação às coisas invisíveis e transitórias, de tal modo que depois ela possa deixá-las para trás completamente. O homem que acha doce seu torrão natal ainda é um iniciante fraco; aquele para quem todo solo é sua terra natal já é forte; mas perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é uma terra estrangeira. A alma frágil fixou seu amor em um ponto do mundo; o homem forte estendeu seu amor para todos os lugares; o homem perfeito extinguiu isso"
(Que pensamento instigante, heim?!)
No entanto, a observação de Said também é muito perspicaz. Observe:
"Mas observe-se que Hugo deixa claro que o homem 'forte' ou 'perfeito' alcança independência e desapego trabalhando mediante apegos, não com a rejeição deles. O exílio baseia-se na existência do amor pela terra natal e nos laços que nos ligam a ela - o que é verdade para todo exílio não é a perda da pátria e do amor à pátria, mas que a perda é inerente à própria existência de ambos."
O exílio: pelo menos duas visões de mundo
Diferente de quem vive em seu mundo, o exilado tem a visão privilegiada de quem conhece ao menos dois mundos, dois cenários, duas culturas e "essa pluralidade de visão dá origem a uma consciência de dimensões simultâneas, uma consciência que é contrapontística."
COMENTÁRIO: o texto de Said é muito profundo e esclarecedor. Conceitual e que nos faz refletir muito, como seus demais textos.
Bibliografia:
SAID, Edward W. Representações do intelectual - As Conferências Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. Editora Companhia das Letras, 2005.
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