segunda-feira, 19 de julho de 2010

A linguagem do preconceito no jornalismo brasileiro


Este texto de Bernardo kucinski, foi publicado originalmente na Revista do Brasil, edição de janeiro de 2008 e na Carta Maior.

Ele é um texto de formação basilar para mim. Eu o recomendo a todas as pessoas que se interessam pelo tema preconceito, comunicação, filologia e que são contrárias ao modus operandi do PIG - Partido da Imprensa Golpista -, contra todos que participam e pertencem aos movimentos sociais no Brasil e no mundo.


DEBATE ABERTO

A linguagem do preconceito no jornalismo brasileiro

Virou moda dizer que “Lula não entende das coisas”. Ou “confundiu isso com aquilo”. É a linguagem do preconceito, adotada até mesmo por jornalistas ilustres e escritores consagrados.

Data: 21/01/2008


Um dia encontrei Lula, ainda no Instituto Cidadania, empolgado por um livro de Câmara Cascudo sobre os hábitos alimentares dos nordestinos. Lula saboreava cada prato mencionado, cada fruta, cada ingrediente. Lembrei-me desse episódio ao ler a coluna recente do João Ubaldo Ribeiro, “De caju em caju”, em que ele goza o presidente por falar do caju, “sem conhecer bem o caju”. Dias antes, Lula havia feito um elogio apaixonado ao caju, no lançamento do Projeto Caju, que procura valorizar o uso da fruta na dieta do brasileiro.

“É uma pena que o presidente Lula não seja nordestino, portanto não conheça bem a farta presença sociocultural do caju naquela remota região do país...”, escreveu João Ubaldo. Alegou que Lula não era nordestino porque tinha vindo ainda pequeno para São Paulo. E em seguida esparramou-se citações sobre o caju, para mostrar sua própria erudição.

Estou falando de João Ubaldo porque além de escritor notável, ele já foi um grande jornalista. Outro jornalista ilustre, o querido Mino Carta, escreveu que Lula “confunde parlamentarismo com presidencialismo”. "Seria bom”, disse Mino, “que alguém se dispusesse a explicar ao nosso presidente que no parlamentarismo o partido vencedor das eleições assume a chefia do governo por meio de seu líder...”. Essa do Mino me fez lembrar outra ocasião, no Instituto Cidadania, em que Lula defendeu o parlamentarismo. Parlamentarista convicto, Lula diz que partidos são os instrumentos principais de ação política numa democracia. Pelo mesmo motivo Lula é a favor da lista partidária única e da tese de que o mandato pertence ao partido. Em outubro de 2001, o Instituto Cidadania iniciou uma série de seminários para o Projeto Reforma Política, que Lula fazia questão de assistir do começo ao fim. Desses seminários resultou o livro de 18 ensaios, “Reforma Política e Cidadania", organizado por Maria Victória Benevides e Fábio Kerche e prefaciados por Lula.

Se pessoas com a formação de um Mino Carta ou João Ubaldo sucumbiram à linguagem do preconceito, temos mais é que perdoar as dezenas de jornalistas de menos prestígio que também dizem o tempo todo que “Lula não sabe nada disso, nada daquilo". Acabou virando o que em teoria do jornalismo chamamos de “clichê”. É muito mais fácil escrever usando um clichê porque ele sintetiza idéias com as quais o leitor já está familiarizado, de tanto que foi repetido. O clichê estabelece de imediato uma identidade entre o que o jornalista quer dizer e o que o leitor quer compreender. Por isso, o clichê do preconceito “Lula não entende” realimenta o próprio preconceito. (o sublinhado é do blog)

Alguns jornalistas sabem que Lula não é nem um pouco ignorante mas propagam essa tese por malandragem política. Nesse caso, pode-se dizer que é uma postura contrária à ética jornalística, mas não que seja preconceituosa. Aproveitam qualquer exclamação ou uso de linguagem figurada de Lula, para dizer que ele é ignorante. “Por que Lula não se informa antes de falar?, escreveu Ricardo Noblat, quando Lula disse que o caso da menina presa junto com homens no Pará “parecia coisa de ficção” . Quando Lula disse, até com originalidade, que ainda faltava à política externa brasileira achar “o ponto G”, William Waack escreveu : “Ficou claro que o presidente brasileiro não sabe o que é o ponto G”. . .

Outra expressão preconceituosa que pegou é “Lula confunde”. A tal ponto que jornalistas passam a usar essa expressão para fazer seus próprios jogos de palavras. “Lula confunde agitação com trabalho”, escreveu Lúcia Hipólito. Ou usam o "confunde" para desqualificar uma posição programática do presidente com a qual não concordam... “O presidente confunde choque de gestão com aumento de contratações”, diz José Pastore. Confunde coisa alguma. Os neoliberais querem reduzir o tamanho do Estado, o presidente quer aumentar. Quer contratar mais médicos, professores, biólogos para o Ibama. É uma divergência programática. Carlos Alberto Sardenberg diz que Lula confundiu a Vale com uma estatal. “Trata-a como se fosse a Petrobrás, empresa que segundo o presidente não pode pensar só em lucro, mas em, digamos, ajudar o Brasil”. Esse caso é curioso porque no parágrafo seguinte o próprio Sardenberg pode ser acusado de confundir as coisas, ao reclamar da Petrobrás contratar a construção de petroleiros no país dela, apesar de custar mais. Não tem confusão nenhuma, assim como Lula também não fez confusão. Lula acha que tanto a Vale quanto a Petrobrás tem que atender interesses nacionais. Sardenberg acha que ambas devem pensar primeiro na remuneração dos acionistas.

A linguagem do preconceito contra Lula sofisticou-se a tal ponto que adquiriu novas dimensões, entre elas a de que Lula tem até problemas de aprendizagem ou compreensão da realidade. Ora, justamente por ter tido pouca educação formal, Lula só chegou onde chegou por captar rapidamente novos conhecimentos, além de ter memória de elefante e intuição. Mas na linguagem do preconceito, “Lula já não consegue mais encadear frases com alguma consequência lógica”, como escreveu o Paulo Ghiraldelli, apresentado como filósofo na página de comentários importantes do Estadão. Ou, como escreveu Rolf Kunz, jornalista especializado em economia e também professor de filosofia: “Lula não se conforma com o fato de, mesmo sendo presidente, não entender o que ocorre à sua volta”.

Como nasceu a linguagem do preconceito? As investidas vêm de longe. Mas o predomínio dessa linguagem na crônica política só se deu depois de Lula ser eleito presidente, e a partir de falas de políticos do PSDB e dos que hoje se autodenominam Democratas: “O presidente Lula não sabe o que é pacto federativo, disse Serra, no ano passado”. E continuam a falar: “O presidente Lula não sabe distinguir a ordem das prioridades”, escreveu Gilberto de Mello”. O presidente Lula em cinco anos não aprendeu lições básicas de gestão”, escreveu Everardo Maciel na Gazeta Mercantil.

A tese de que Lula confunde presidencialismo com parlamentarismo foi enunciada primeiro por Rodrigo Maia, logo depois por César Maia, e só então repetido por jornalistas. Um deles, dias depois dessas falas, escreveu que “só mesmo Lula, que não sabe a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, pode achar que um governante ter a aprovação da maioria é o mesmo que ser uma democracia no seu sentido exato...”.

O pre-conceito é juízo de valor que se faz sem conhecer os fatos. Em geral é fruto de uma generalização ou de um senso comum rebaixado. O preconceito contra Lula tem pelo menos duas raízes: a visão de classe, de que todo operário é ignorante, e a super-valorização do saber erudito, em detrimento de outras formas de saber, tais como o saber popular ou o que advém da experiência ou do exercício da liderança. Também não aceitam a possibilidade das pessoas transitarem por formas diferentes de saber.

A isso tudo se soma o outro preconceito, o de que Lula não trabalha. Todo jornalista que cobre o Palácio do Planalto sabe que é mentira, que Lula trabalha 12 a 14 horas por dia, mas ele é descrito com frequência por jornalistas como uma pessoa indolente.

Não atino com o sentido dessa mentira, exceto se o objetivo é difamar uma liderança operária, o que é, convenhamos, uma explicação pobre. Talvez as elites e com elas os jornalistas, não consigam aceitar que o presidente, ao estudar um problema com seus ministros esteja trabalhando, já que ele é “incapaz de entender” o tal problema. Ou achem que ao representar o Estado ou o país, esteja apenas passeando, porque onde já se viu um operário, além do mais ignorante, representar um país?


(Todos os sublinhados são do blog)

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