segunda-feira, 8 de novembro de 2010

FLC0383 - Literatura Portuguesa IV - A jangada de pedra

Revoada de estorninhos - imagem do Daily Mirror

Alguns trechos interessantes do capítulo segundo do livro.

FRAGMENTO 2 – A JANGADA DE PEDRA


“A primeira fenda apareceu numa grande laje natural... e por onde agora vagueiam os mal-aventurados cães de Cerbère... um desses cães, de seu nome Ardent, graças ao finíssimo ouvido de que está dotada a espécie, terá percebido o estalar da pedra...”

E a fenda ganha tamanho em distância e lonjura. O cão preferiu a Espanha...

“O cão Ardent rondava, inquieto, mas não podia fugir, atraído por aquela serpente de que já não se via nem a cabeça nem a cauda, e subitamente perdido, sem saber de que lado ficar, se em França, onde estava, se em Espanha, já distante três palmos... de um salto, galgou o abismo, com o perdão do evidente exagero vocabular, e achou-se do lado de aquém, preferiu as regiões infernais...”

A segunda fenda apareceu em Roncesvales. Rios secam e cascatas aparecem entre Espanha e França.

“A expedição partiu no dia seguinte, ainda antes do nascer do sol, caminho da fronteira, sempre ao lado ou à vista do rio seco, e quando os fatigados inspectores lá chegaram compreenderam que nunca mais tornaria a haver Irati. Por uma fenda que não teria mais de uns três metros de largura, as águas precipitavam-se para o interior da terra, rugindo como um pequeno Niágara...”

Interessante a classificação do narrador aqui:

“Um jornalista francês, Michel e cínico, dizia a um seu colega espanhol, sério e Miguel...”

O diferente é a fenda e não a cascata (mas Miguel, o sério, não se lembrou de dizer ao cínico, Michel, que):

“Não se lembrou Miguel de responder-lhe que do lado espanhol dos Pirinéus também não faltam quedas-d’água, e das mui belas e altas, mas que a questão ali era outra, uma cascata a céu aberto não é mistério nenhum, sempre igual, à vista de toda a gente, ao passo que a fenda do Irati, vê-se-lhe o princípio, não se lhe conhece o fim, é como a vida...” (esta observação é do narrador, que o veremos a seguir)

Aqui , o narrador aparece no próprio texto, de forma bem peculiar: só ele ouviu alguém da história falando algo.


“Porém, foi outro jornalista, aliás galego e de passagem, como a galegos acontece tantas vezes, quem lançou a pergunta que ainda faltava fazer, Para onde vai esta água. Era então o tempo em que discutiam, com ciência brusca e seca, os geólogos de ambas as partes, e a pergunta, como de criança tímida, apenas foi ouvida por quem agora a regista.” (BÁRBARO!)

Critica de um português a Portugal:

“A racha tinha então meio palmo de largura, uns quatro metros de comprimento, se tanto. O homem, que era português, de nome Sousa, e viajava com a mulher e os sogros, voltou para o carro e disse, Até parece que já entramos em Portugal, imagina, uma vala enorme, podia amolgar-me as jantes, partir um semieixo.”

METALINGUAGEM: e o narrador fala novamente das técnicas da fala e do discurso:


“não era vala, nem era enorme, mas as palavras, assim nós as fizemos, têm muito de bom, ajudam, só porque as dizemos exageradas logo aliviam os sustos e as emoções, porquê, porque os dramatizam”

Novamente, referência a Portugal destacando sua pequeneza:

“[...] os locutores da televisão, nervosos, liam o último comunicado e davam as suas próprias opiniões, enaltecendo a luta titânica, a gesta colectiva, a solidariedade internacional em acção, até de Portugal, esse pequeno país, saiu um comboio de dez betoneiras, estrada fora, têm à sua frente uma longa viagem, mais de mil e quinhentos quilômetros, esforço extraordinário, não vai ser preciso o betão que trazem, mas a história registará o simbólico gesto”

ESTAVA ESCRITO...

“Pela primeira vez um arrepio de medo perpassou na península e na próxima Europa. Em Cerbère, bem perto dali, as pessoas, correndo para a rua premonitoriamente como o tinham feitos seus cães, diziam umas para as outras, Estava escrito, quando eles ladrassem acabava-se o mundo, e não era precisamente assim, escrito nunca estivera, mas nos grandes momentos precisamos sempre de grandes frases, e esta, Estava escrito, não sabemos que prestígio tem que ocupa o primeiro lugar nos prontuários do estilo fatal.”

E fechando o capítulo:

“De efeitos e causas muito aqui se tem falado, sempre com extremos de ponderação, observando a lógica, respeitando o bom senso, reservando o juízo, pois a todos é patente que de uma betesga ninguém seria capaz de retirar um rossio. Aceitar-se-á, portanto, como natural e legítima, a dúvida de ter sido aquele risco no chão, feito por Joana Carda com a vara de negrilho, causa directa de se estarem rachando os Pirinéus, que é o que tem vindo a ser insinuado desde o princípio. Mas não se rejeite este outro facto, e inteira verdade, que foi partir Joaquim Sassa à procura de Pedro Orce por dele ter ouvido falar nas notícias da noite, e o que disse”


Bibliografia:
SARAMAGO, José. A jangada de pedra. Companhia de Bolso. Edição 2010. (livro de 1986)

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