Aqui apresento um capítulo curto e interessante sobre o fazer narrativo do "autor" de Esaú e Jacó - o falecido Conselheiro Aires.
CAPÍTULO V
HÁ CONTRADIÇÕES EXPLICÁVEIS
Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua história, ou prezasse a lógica aparente dos acontecimentos (1), levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as cousas se passaram, e refiro-as tais quais (2). Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não pegue. Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar (3). O melhor é ler com atenção.
Quanto à contradição de que se trata aqui, é de ver que naquele recanto de um larguinho modesto, nenhum conhecido daria com eles, ao passo que eles gozariam o assombro local; tal foi a reflexão de Santos, se se pode dar semelhante nome a um movimento interior que leva a gente a fazer antes uma cousa que outra (4). Resta a missa; a missa em si mesma bastava que fosse sabida no céu e em Maricá. Propriamente vestiram-se para o céu. O luxo do casal temperava a pobreza da oração; era uma espécie de homenagem ao finado. Se a alma de João de Melo os visse de cima, alegrar-se-ia do apuro em que eles foram rezar por um pobre escrivão. Não sou eu que o digo; Santos é que o pensou (5).
BREVES COMENTÁRIOS
As partes que destaquei são aquelas em que podemos observar características do fazer literário.
O narrador da história é bem complexo. Ele tanto se coloca como personagem interno na história porque ela se trata de escritos próprios do Conselheiro Aires, já falecido e que foi conhecido do casal, como também se coloca como narrador em terceira pessoa onisciente ao estilo demiurgo que tudo sabe, pois ele entra na mente dos personagens.
Não esqueçamos porém que o autor é Machado de Assis, que de forma fantástica criou e narrou a grande maioria de seus romances e contos através de "autores" internos que não o comprometeriam na vida real de seu mundo escravocrata, católico, branco, patriarcal e patrimonialista.
(1) O narrador da história está aqui falando da verossimilhança, uma das principais ferramentas para que uma história tenha sucesso - em se tratando de trama que busca reproduzir um fato "real" ou "possível no mundo real".
(2) Aqui o narrador reafirma que ele é personagem da história, então estaríamos falando de discurso direto. Depois veremos que há choques de estilos, porque no discurso direto não é possível afirmar o que os personagens estão pensando. Poderia supor, mas não afirmar.
(3) Muito interessante a afirmação do narrador, porque de fato uma das técnicas para acelerar ou retardar a velocidade interna do romance é ter mais ou menos descrição, reflexão, digressão etc. Essa técnica faz que passemos várias páginas parados no "tempo interno" da história. Muita vez, ocorre o contrário: aceleramos anos em poucas páginas no tempo interno da história.
(4) e (5) Aqui vemos características de autor demiurgo do discurso indireto livre. Um personagem interno de uma trama não poderia afirmar o que outros estão pensando. Mas o Conselheiro Aires é contundente ao dizer que foi Santos que "pensou".
MINHA INTERPRETAÇÃO AO SABOR DA LEITURA
Eu ainda não conheço o fim deste romance. Pode ser que ao final da leitura encontre as explicações para as misturas de discurso direto com discurso indireto livre. Sem estresse! É ler "com atenção" como sugere o narrador e curtir cada capítulo.
Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: Obras Completas. Editora Globo, 1997.
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