segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Romaria - Um homem na estrada


Um homem na estrada...

Refeição Cultural

Estou em Uberlândia, Minas Gerais. Vim para realizar minha caminhada anual até a cidade de Água Suja ou Romaria, local de peregrinação de milhares de pessoas das mais diversas cidades do Triângulo Mineiro, de Minas e creio que até de outros estados do país.

Fiz o percurso de 75 km entre Uberlândia e Água Suja da sexta-feira 12 para o sábado 13. Cada ano de caminhada traz uma experiência diferente se for comparar com as experiências já vividas nas caminhadas anteriores. Desta vez foi muito difícil, e é curioso, porque de alguma forma eu sentia e imaginava que seria assim. 

Sentia que iria pesar toda a carga que se abateu sobre o trabalhador brasileiro, sobre a nossa democracia que sofreu um golpe por um bando de fascistas desgraçados, calculava que sentiria os efeitos de toda a dureza de meu trabalho e de minha luta diária pelo que defendo na entidade de saúde onde participo da gestão como representante eleito por trabalhadores, enfim, que de alguma forma as crises vividas estariam pesando em meus ombros nesta caminhada. 

E devem ter pesado! Talvez meu peso corporal mais leve não tenha conseguido superar o peso em nossos ombros e cabeça. E meus pés e meus calcanhares sentiram.


A saída de Uberlândia

Cheguei à casa de meus pais na tarde de quinta-feira, após trabalhar em Uberaba, cidade da região do Triângulo Mineiro. Foi bom rever meus pais e familiares que não via há meses.

A primeira decisão sobre a caminhada foi escolher qual seria o melhor horário para sair neste ano, de manhã ou de tarde. Optei por sair na sexta-feira depois do almoço. E do bairro Alvorada.

Para se ter uma ideia do momento pelo qual passamos, mesmo tendo abonado o dia de trabalho, tive que me ocupar de algumas questões ainda pela manhã, porque elas são de minha responsabilidade.

Momento da saída, no carro com os pais,
que me levaram até o bairro Alvorada.

Saí do bairro Alvorada às 15h. O primeiro ponto de referência no meu percurso é chegar ao Rio Araguari, cerca de 16 km adiante. Calculei chegar por volta de 18h e cheguei. Vi o Por do Sol na estrada.

Um dos segredos dessas caminhadas é acertar o calçado que se vai usar. Outro conhecimento que se adquire com a experiência é o jeito de andar, é o economizar energia corporal para andar dezenas de quilômetros por horas e horas.

Eu não saí com a mochila pesada, e estou leve também. 

Outra coisa: depois que iniciamos uma caminhada, é seguir adiante, não tem mais volta (na minha opinião). Enfim, escolheu a vereda, agora é seguir.

Ipê amarelo com aquele
céu azul mineiro.

Eu senti nos primeiros quilômetros que seria dura a jornada. O Sol escaldante já faz parte do previsto, mas os pés passavam uma impressão de desconforto. Adequei o pisar ao calçado para amenizar e protelar as sequelas que viriam com o tênis mais duro que o previsto.

Vi várias plantas características do seco mês de agosto na estrada (BR 365). Não quis ficar parando e batendo fotos. Fui econômico. Fiz umas vinte fotos em toda a Romaria. A primeira foi de um belo ipê amarelo com aquele céu azul mineiro.

Em minhas costas, o lado Sul do rio Araguari. 

A ponte sobre o Rio Araguari

Enquanto descansava uns 10 minutos, alonguei um pouco os músculos e admirei o belo rio, a paisagem e os reflexos do Por do Sol sob o vale. 

Agora era a hora de encarar uns 11,5 km até um antigo posto que já está desativado faz tempo, mas que é uma referência no meu roteiro.

Imaginem andar quase 10 km em subida na estrada... 

Cheguei por volta das 21h. Havia uma barraca de ajuda aos romeiros. Parei uns minutos, comi alguma coisa e preparei para a saída rumo ao próximo ponto de referência, o Posto N. Sra. da Guia.

Início da noite clara de Lua Crescente...

O caminhar com a luz da Lua Crescente

A caminhada do anoitecer até um pouco depois da meia-noite foi clara e sem necessidade de lanterna. A luz do luar deixava a nossa sombra na estrada assim como o andar sob o Sol.

Vi o Sol se por à esquerda de minhas costas e a Lua brilhar e fazer um círculo até descer, sempre à minha direita. A Lua Crescente foi uma grata companhia.

Ao chegar ao Posto N. Sra. da Guia, cerca de 23:30h, eu já havia caminhado uns 37 km e meus pés já me incomodavam um pouco. Já sabia que meus calcanhares estavam machucados. Porém, eu nunca tiro o tênis para verificar o estado de meus pés. 

Uma técnica que aprendi faz tempo é preparar com esparadrapos os locais onde podem surgir bolhas, porque elas não estouram e se evita que fiquem em carne viva.

Quase meia-noite, após andar 37 km.
Me preparava para andar até a Antena.

Comi um pão com carne e deitei no chão para relaxar uns 30 minutos. Começava a administrar a dor. Coloquei para funcionar meu toca-fitas Aiwa (1987), um aparelho precursor da independência em ouvir músicas por onde se vai. 

Meu Aikman e minhas fitas de rock e pop são guardados por mim exclusivamente para as caminhadas anuais porque tenho que virar as fitas a cada meia hora de música e isso quebra a monotonia de andar pela noite, por vezes quase dormindo acordado.


Esse bichinho tem 29 anos de uso.

Barraca da Antena, a tentação onde muitos desistem de seguir

A caminhada do Posto N. Sra. da Guia até a Antena, de 11 km, foi difícil como todos os anos, mas eu tinha os pés machucados, coisa que não ocorria desde 2012.

Em uma barraca de ajuda aos romeiros, encontrei um casal amigo da família. Fiquei quase meia hora com eles. Fui muito bem tratado. Sentei ao redor de uma fogueira, me cobriram um pouco (estava começando a esfriar) e tomei uma sopa. Faltavam uns 4 km para a Antena.

Quem disse que eu cheguei na barraca da Antena bom para sair direto? Tive que encostar a cabeça na mesa e cochilar uns 30 minutos sentado. Já havia feito quase 50 km e agora faltavam menos de 30 km. Eu estava quebradaço por causa das dores e saí dali às 5:20h.

O alvorecer - é uma de minhas 
fotos preferidas desta caminhada.

Alvorada na estrada

Mesmo com dor, foi uma madrugada de caminhar ao som de muitas bandas de rock e pop. Ouvi todas as fitas que levei.

Após a Lua Crescente ir embora, o breu destacou os milhões de pontos luminosos no céu... Esfriou... a dor nos pés aumentou...

Não vi muitos romeiros durante a noite. Menos que outras épocas.

Alvorada na BR 365 num certo agosto. Foto William.

Tem uma coisa que é definidora nas minhas caminhadas na Romaria. Desistir não é uma opção. Tem momentos que você está quase se arrastando, mas não pode deixar de ir adiante.


Final da caminhada - superação

Eu cheguei ao Posto Santa Fé às 8h da manhã. Entrei e tomei um café mineiro básico: pão de queijo e café com leite. Troquei os apetrechos de caminhada. Tirar blusa e gorro de frio. Guardar lanterna. Colocar boné. 

Vai um pão de queijo e
café com leite?

Tomar coragem e esquecer a dor e sair para andar com Sol quente e andar a menos de 4 km por hora. Pisando do jeito que dá para completar os 14 km que faltam. 

Primeira referência que nunca chega desta fase final: o Atalho.

Andar... andar... Sol esquentando... e nada de Atalho chegar. E são só 6 km entre o posto e o Atalho.

Cheguei tão quebrado ao Atalho dos eucaliptais que não quis parar e descansar um pouco. Rejeitei comida na barraca de ajuda que havia ali. 

O Atalho nos eucaliptos.

Meu desejo era chegar e ainda tinha mais 8 km entre floresta de eucaliptos, plantações de café, pasto e descida em cascalho e pó, com uma subida "animal" de 1 km e inclinação de uns 45º. Detalhe: terrão vermelho onde os romeiros comem pó até pelos poros.


A chegada a cidade de Romaria

Cheguei cerca de meio dia e meia a cidade. Saí no dia anterior às 15h, andei 75 km, e lá estava eu mais uma vez no destino final.

Desta vez foi muito difícil. Em muitos momentos da metade do percurso para frente cheguei a pensar que não conseguiria completar. Mas os mesmos pés que reclamaram dor a noite toda, foram os que me levaram até o fim.


Chegando ao meu objetivo depois de
muito andar e muito sentir...

Na caminhada de um dia e uma noite, a gente alterna momentos de dor, de reflexão, de euforia, tem de tudo. Eu penso muito na vida neste dia todo. Nos desafios, nas escolhas, no passado e no presente, nas pessoas com quem convivemos, num provável futuro. Nos problemas do mundo. Nas maravilhas das coisas simples da natureza.


Igreja de N. Sra. da Abadia, Romaria - MG.

É possível fazer comparações usando uma régua interessante. A gente acha que nossa dor é insuportável, aí vê um senhor ou senhora com os pés mais feridos que o nosso e no maior pique para seguir. Aí vê um outro senhor subindo de joelhos a bendita ladeira de 1 km que a gente custa subir andando depois de mais de 70 km. Essas coisas nos fazem refletir que tem gente em condições piores que a gente e às vezes nós só reclamamos e terceirizamos responsabilidades...

Nossa dor não é maior que a dor dos outros. Fiquei pensando nas dores que meu pai reclama e sente faz anos. Fiquei pensando no relato de minha irmã com dores insuportáveis para conseguir trabalhar, com medo de se afastar por licença e ser demitida. O que é essa dor de meus calcanhares fodidos por causa de bolhas comparada até com a dor das pessoas que conheço? Nada!


Um dos inconvenientes desta jornada. Acho que vim
com o peso do mundo sobre meus ombros.

A dor permanente que sinto é muito maior que a física, a dor que disfarço ou abstraio diariamente, ao ver meu país sob um golpe e com bandidos no poder, nos órgãos do Estado, destruindo todos os direitos civis, políticos, trabalhistas, sociais e humanos conquistados com a nossa luta e suor e dores ao longo de anos e anos.

Mas desistir não é uma escolha. A gente tem que fazer o que deve ser feito. Eu por exemplo tenho um compromisso até o último dia de meu mandato de representação dos trabalhadores. Faço o que acredito ser o correto e dane-se até o que tenho passado por tentarem me impedir de trabalhar como entendo que devo fazer.

Vou embora pela manhã de segunda-feira sabendo o que provavelmente vem pela frente. E vou continuar fazendo o que acho que devo fazer. E sei que o mundo está um caos, e que há uma inversão de valores nos dias que correm. Não faz mal, seguimos adiante!

É isso! Fim da Romaria 2016.

William Mendes
Um homem na estrada

2 comentários:

  1. Filhão querido, eu sei disso.

    Mas na vida a gente vai conciliando nossas obrigações e fases com os desejos. Eu pensei muito em você durante a caminhada.

    Você vai ter muito tempo para fazer caminhadas. Agora é estudar né! Bjos

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