sábado, 28 de janeiro de 2017

Leitura: Discurso da Servidão Voluntária (s. XVI) - Étienne de La Boétie





Refeição Cultural

"E quando vemos, não cem, não mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens se absterem de atacar aquele que trata a todos como servos e escravos, que nome poderemos dar a isso? Será covardia? Todos os vícios têm naturalmente um limite, além do qual podem passar..." (La Boétie)


Ganhei de presente do amigo Sandro Sedrez, companheiro de lutas em defesa da Cassi, autogestão baseada na Atenção Primária e Estratégia Saúde da Família, este pequeno livro de Étienne de La Boétie (1530-63) - Discurso da Servidão Voluntária -, obra marcante e de grande influência no mundo da política desde quando começou a circular de forma não oficial já no século XVI, a partir dos anos 1550.

Eu tenho grandes lacunas culturais e literárias. Nunca neguei isso porque somos o resultado do percurso de nossas vidas, e a minha foi de trabalho braçal na infância e adolescência até virar bancário e tive pouca oportunidade de leitura durante vários anos centrais da formação de um jovem. Mesmo assim, sempre corri atrás das leituras nas poucas horas livres que pude ter ao longo da vida subproletária e proletária.

As leituras que faço na minha vida têm origens variadas. Tenho centenas de livros que sonho ler e estudar. Quando dá, pego eles para ler. Tem as leituras que vão sendo obrigatórias por razões diversas. E tem as leituras que aparecem pela convivência em sociedade. Agora, conheço mais uma obra clássica, que influenciou a forma de pensar das sociedades contemporâneas ocidentais.

Eu comparo esta obra em importância e influência a outras como Utopia (1516), do inglês Thomas More (ler comentário AQUI) e O Príncipe (1513), do italiano Maquiavel (ler comentário AQUI). Li ambas em 2011.

Não poderia ter lido obra mais condizente com a realidade política de nosso País do que esta sobre a servidão voluntária, pois sofremos um golpe de Estado em 2016 e estamos sob um regime de exceção, com o poder na mão de uma camarilha de corruptos que tomaram conta das instituições estatais do Estado, em conluio com empresários da comunicação e parcelas de capitalistas nacionais e imperialistas norte-americanos.

Das teses apresentadas por La Boétie justificando os porquês das pessoas se submeterem à servidão voluntária, acrescento uma de conceito mais recente em relação ao século XVI: a ideologia.

Gostaria que todas as pessoas envolvidas com os movimentos sociais e lideranças populares lessem esse pequeno texto, que é possível ler em um dia, para reavivarem suas naturezas e sentirem o instinto de liberdade que nos baliza e norteia e, assim, começarem a organizar a resistência e reversão da servidão voluntária aos golpistas tiranos, que destroem tudo em nosso País a cada semana que passa, desde maio de 2016.

Apresento abaixo alguns excertos do livro e logo depois, uma síntese que está na enciclopédia livre (Wikipédia) e está muito boa.

William


Excertos

- "Eu não lhe pediria tão vivamente para recuperar a liberdade se lhe custasse alguma coisa. Não existe nada mais caro para o homem do que readquirir o seu direito natural e, por assim dizer, de animal voltar a ser homem..."


- "Para conseguir o bem que deseja, o homem ousado não teme nenhum perigo, o homem prudente não regateia nenhum esforço. Só os covardes e os preguiçosos não sabem suportar o mal nem recuperar o bem. Limitam-se a desejá-lo e a energia de sua pretensão lhes é tirada por sua própria covardia..."


- "É incrível ver o povo, quando é submetido, cai de repente num esquecimento tão profundo de sua liberdade, que não consegue despertar para reconquistá-la. Serve tão bem e de tão bom grado que se diria, ao vê-lo, que não só perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão..."


- "Se todas as coisas se tornam naturais para o homem quando se acostuma a elas, só permanece em sua natureza aquele que deseja apenas as coisas simples e não alteradas. Assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito..."


- "Os homens livres, ao contrário, disputam a preferência em lutar pelo bem comum, porque associam a ele seu interesse particular: todos esperam ter sua parte no mal da derrota ou no bem da vitória. Mas os homens submissos, desprovidos de coragem guerreira, perdem também a vivacidade em todas as outras coisas, têm o coração tão fraco e mole que não são capazes de qualquer grande ação. Os tiranos sabem muito bem disso. Por isso, fazem o possível para torná-los ainda mais fracos e covardes."

Bibliografia:

LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da Servidão Voluntária. Texto integral. Edição bilíngue. Tradução: Casemiro Linarth. Martin Claret.


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Wikipédia 

Étienne de La Boétie (Sarlat, 1 de novembro de 1530 - Germignan, 18 de agosto de 1563) foi um humanista e filósofo francês, contemporâneo e amigo de Michel de Montaigne (este que em seu ensaio "Sobre a Amizade" faz uma homenagem a la Boétie). Poucos anos antes de morrer, aos 32 anos, Étienne de La Boétie deixou em testamento seus escritos a Montaigne, o qual, mais tarde, destacou os méritos nos Ensaios e em várias cartas, apontando este autor como um importante homem daquele século.

Traduções de obras clássicas greco-romanas eram comuns entre os studia humanitates, por isso entre os trabalhos de Étienne de La Boétie estão as traduções do grego para o francês de obras de Xenofonte e Plutarco - Étienne escreveu também algumas obras originais, a sua obra mais famosa é seu "Discurso da Servidão voluntária", escrita no século XVI, depois da derrota do povo francês contra o exército e fiscais do rei, que estabeleceram um novo imposto sobre o sal. 


A obra se mostra como uma espécie de hino à liberdade, com questionamentos sobre as causas da dominação de muitos por poucos, da indignação da opressão e das formas como vencê-las. Já no título aparece a contradição do termo servidão voluntária, pois como se pode servir de forma voluntária, isto é, sacrificando a própria liberdade de espontânea vontade? 

Na obra, o autor pergunta-se sobre a possibilidade de cidades inteiras submeterem-se a vontade de um só. De onde um só tira o poder para controlar todos? Isso só poderia acontecer mediante uma espécie de servidão voluntária. Ele afirma então que são os próprios homens que se fazem dominar, pois, caso quisessem sua liberdade de volta, precisariam apenas de se rebelar para consegui-la. 

Étienne afirma que é possível resistir à opressão, e ainda por cima sem recorrer à violência - segundo ele a tirania se destrói sozinha quando os indivíduos se recusam a consentir com sua própria escravidão. Como a autoridade constrói seu poder principalmente com a obediência consentida dos oprimidos, uma estratégia de resistência sem violência é possível, organizando coletivamente a recusa de obedecer ou colaborar.

Graças a suas reflexões profundas sobre a condição humana e a liberdade, La Boétie é considerado um filósofo de tradição libertária e um precursor do pensamento anarquista.

Discurso sobre a Servidão Voluntária

O "Discurso da Servidão Voluntária", escrito em 1548 quando Étienne de La Boétie tinha 18 anos, é uma crítica à legitimidade dos governantes, chamados por ele de “tiranos”. La Boétie explica de que maneira os povos podem se submeter voluntariamente ao governo de um só homem: em primeiro lugar, pelo hábito, uma vez que quem está acostumado à servidão tende a não questioná-la; em seguida, pela religião e pela superstição que se cria em torno da figura do líder. 

No entanto, não são apenas esses dois métodos os elementos necessários para criar a servidão voluntária: o segredo da dominação consiste em envolver o dominado na própria estrutura da dominação, a saber, uma pirâmide de poder: o tirano domina meia dúzia, essa meia dúzia domina seiscentos, esses seiscentos dominam seis mil, e abaixo desses seis mil vêm todos os outros. Para dominar a meia dúzia, ou seja, os seus cortesãos, o tirano atira-lhes migalhas, e estes, gratos, aceitam a submissão. Essa estrutura de domínio é repetida, então, nos demais níveis: a meia dúzia em relação aos seiscentos; os seiscentos em relação aos seis mil; os seis mil em relação a todos os outros. 

Para La Boétie, os que estão em volta do tirano são os menos livres de todos, pois, se as outras pessoas estão obrigadas a obedecer, esses, além disso, querem antecipar os desejos do tirano, escolhendo, com essa atitude, livremente a própria servidão. Portanto, os que estão na base da pirâmide, os camponeses e artesãos, são, em certo sentido, mais livres e mais felizes, pois após obedecerem a uma ordem, podem gastar o resto do tempo com o que quiserem; já os cortesãos, por estarem próximos ao tirano, estão afastados dessa liberdade. 

O autor quer levar seus leitores a refletir sobre uma questão que está na base da política: o motivo que leva as pessoas a obedecerem. Concretamente, o que está por trás dessa questão é entender a causa que pode levar uma pessoa a abrir mão de sua própria liberdade, já que, para obtê-la, o homem precisa apenas desejá-la. Assim, a servidão voluntária, em La Boétie, se refere à perda do desejo de liberdade, uma vez que, “os homens, enquanto neles houver algo de humano, só se deixam subjugar se forem forçados ou enganados”. Para ele, é possível que os homens percam a liberdade pela força, mas o que surpreende é o fato de não lutarem para reconquistá-la. 

No livro, são descritos três tipos de tiranos: os que chegam ao poder pela eleição do povo, pela força ou pela sucessão de raça. Mas, independentemente da forma como o tirano tenha chegado ao poder, o que intriga é o fato de as pessoas continuarem a obedecê-lo mesmo quando prejudicadas por ele. O autor defende ainda a igualdade de todos os homens na dimensão política: “Uma coisa é claríssima na natureza, tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito, e é o fato de a natureza, ministra de Deus e governanta dos homens, nos ter feito todos iguais, com igual forma, aparentemente num mesmo molde, de forma a que todos nos reconhecêssemos como companheiros ou mesmo irmãos”.


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