segunda-feira, 22 de maio de 2017

Leitura: Ponciá Vicêncio (2003) - Conceição Evaristo




(atualizado em 14/12/19)

Refeição Cultural

"O humano não tem força para abreviar nada e quando insiste colhe o fruto verde, antes de amadurar. Tudo tem o seu tempo certo. Não vê a semente? A gente semeia e é preciso esquecer a vida guardada de debaixo da terra, até que um dia, no momento exato, independente do querer de quem espalhou a semente, ela arrebenta a terra desabrochando o viver. Nada melhor que o fruto maduro, colhido e comido no tempo exato, certo..." (p. 91)

"A mulher sofrera muito com a ida da filha, depois com a do filho. Antes, havia vivido o pesar da passagem de seu homem, naquela tarde clara e ensolarada. E foi acumulando idas, partidas, ausências. Às vezes, vinha um desespero tal, que ela pensava, então, em abreviar a sua hora. Sentia-se tão só, tão vazia, que poderia ir buscar o barro lá no fundo do rio... Sozinha, entretanto, se recuperava. Ela acreditava que a vida tem o tempo certo, assim como o fruto tem o momento exato para ser colhido. Sabia que a sua vida não era ainda um fruto amadurecido..." (p. 65)

"Lembrou-se novamente das palavras do pai. As mulheres pareciam estrelas. Eram bonitas. Enfeitavam a noite que existia no peito dos homens..." (p. 82)

 (Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo)


Sobre a leitura

Num afã de me permitir, tenho experimentado novos autores e autoras, novos textos e tecituras, nos poucos momentos que posso dedicar ao meu próprio prazer intelectual e sensorial, haja vista que as boas obras me emocionam, me arrepiam, me humanizam.

Dias atrás, em uma matéria do site da revista Carta Capital, vi que está em cartaz uma exposição chamada "ocupação" de uma autora chamada Conceição Evaristo. Li o artigo, fiquei bastante interessado e gostaria de estar em São Paulo para ir ao evento até 16 de junho.

Eu sou um curioso literário e tenho muitas lacunas culturais, como quase todo mundo. Além de dezenas de clássicos que ainda não li, tenho sempre interesse em conhecer novos autores e obras. 

Não conhecia a mineira Conceição Evaristo. Após o artigo, pesquisei e consegui achar algumas obras dela e comprei três livros. Neste fim de semana, peguei para ler o romance Ponciá Vicêncio. Acabei no domingo à noite. Emoção pura!

Terminei a leitura emocionado com a estória de Ponciá Vicêncio e sua família. A autora lida com temas que continuam urgentes em nossa sociedade como o preconceito e discriminação racial e social. Trata da questão da condição da mulher, e principalmente da mulher negra. Aborda de maneira muito inteligente e sensível a questão das consequências históricas da escravidão em nossa sociedade.

A questão da incomunicabilidade e da ausência, da saudade e dos desencontros entre as pessoas que convivem entre si é muito forte. Me fez ficar pensando no hoje, no que vivemos neste momento, em casa, na rua, no trabalho, nas relações virtuais, que parecem ser mas não são como as relações presenciais.

Eu me lembrei da personagem de Clarice Lispector em A hora da estrela (1977) e também lembrei do conto "Sorôco, sua mãe, sua filha" do livro Primeiras Estórias (1962) de Guimarães Rosa.

Aí fiquei pensando na incomunicabilidade que vivemos todos nós, num mundo que, em tese, seria um mundo das comunicações. Não é.

Eu realmente recomendo a leitura deste romance de Conceição Evaristo. Fiquei muito feliz de preencher esta lacuna cultural ao conhecer sua obra. Vou ler com muito gosto o outro romance que adquiri dela - Becos da Memória (2006).

William
Um leitor


Passagens do livro que nos põe a pensar:

TERRA DE BRANCOS

"Desde pequena, ouvia dizer, também, que as terras que o primeiro Coronel Vicêncio tinha dado para os negros, como presente de libertação, eram muito mais, e que pouco a pouco elas estavam sendo tomadas novamente pelos descendentes dele. Alguns negros, quando o Coronel lhes doou as terras, pediram-lhe que escrevesse o presente no papel e assinasse. Isto foi feito para uns. Estes exibiram aqueles papéis por algum tempo, até que, um dia, o próprio doador se ofereceu para guardar a assinatura-doação. Ele dizia que, na casa dos negros, o papel poderia rasgar, sumir, não sei mais o quê... Os negros entregaram, alguns desconfiados, outros não. O Coronel guardou os papéis e nunca mais a doação assinada voltou às mãos dos negros. Enquanto isso, as terras voltavam às mãos dos brancos. Brancos que se fizeram donos, desde os passados tempos." (p. 53)

E O CONGRESSO BRASILEIRO GOLPISTA EM 2017 QUER VOLTAR A ESCRAVIDÃO...

"Crescera na pobreza. Os pais, os avós, os bisavós sempre trabalhando nas terras dos senhores. A cana, o café, toda a lavoura, o gado, as terras, tudo tinha dono, os brancos. Os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida. Alguns saíam da roça, fugiam para a cidade, com a vida a se fartar de miséria, e com o coração a sobrar esperança..." (p. 70)

INCOMUNICABILIDADES

"Ponciá Vicêncio achava que os homens falavam pouco. O pai e o irmão tinham sido exemplos do estado da quase mudez dos homens no espaço doméstico. Agora, aquele, o dela, ali calado, confirmava tudo. Ele também só falava o necessário. Só que o necessário dele era bem pouco, bem menos do que a precisão dela. Quantas vezes quis ouvir, por exemplo, se o dia dele tinha sido difícil, se o pequeno machucado que ele trazia na testa tinha sido causado por algum tijolo, ou mesmo saber quando começaria a nova obra. Muitas vezes quis dizer das tonturas e do desejo de comer estrelas de que era acometida todas as vezes que ficava grávida. Quis confidenciar a respeito de um medo antigo que sentia, às vezes. Quis saber se ele também sofria do mal do medo, se ele vivia também agonias. Quis que o homem lhe falasse dos sonhos, dos planos, das esperanças que ele depositava na vida. Mas ele era quase mudo. Não chorava, não ria..." (p. 57)


Bibliografia:

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 1ª edição - Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

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