quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Releitura: O último leitor (2005) - Ricardo Piglia




Refeição Cultural

"Um território devastado no qual alguém reconstrói o mundo perdido a partir da leitura de um livro. Melhor seria dizer: a crença no que está escrito num livro permite manter e reconstruir o real perdido..." (Piglia, na página 145 de O último leitor)


Li este livro do professor e escritor argentino Ricardo Piglia em 2008. É um livro de reflexões sobre leitores e leituras. Sobre atos de leituras. O autor faleceu no início de 2017 aos 75 anos de idade.

Ao reler dias atrás uma postagem minha sobre um conto de Piglia - "A ilha" -, texto contido em seu livro "Cuentos Morales" (1995), acabei pegando em minha estante "O último leitor" (2005), livro muito reflexivo.

Nesta obra, Piglia nos leva a pensar sobre o mundo dos escritores e, consequentemente, nos leva ao mundo dos leitores, que complementam e dão sentido à produção literária, que nada seria sem o leitor.

Piglia aborda os atos de leitura de nada mais nada menos Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Ernesto Che Guevara, James Joyce, Liev Tolstói, dentre outros. Cada capítulo é uma viagem de conhecimento para nós leitores.

Não vou falar sobre cada um dos capítulos do livro, pois a intenção da postagem é despertar nos leitores do blog o interesse nas reflexões que Piglia registrou naquele que ele afirma ser seu livro mais pessoal, como leitor, inclusive.

Neste leitor que vos fala, a releitura do livro uma década depois da primeira leitura reacendeu algumas preocupações e sentimentos que trago comigo desde o fim da adolescência: meu tempo está passando e sigo sem ter lido grandes clássicos da literatura mundial. É desesperadora a tomada de consciência disso.

Quando Piglia aborda James Joyce, fico leve e transito bem pelo capítulo, afinal li "Ulisses" (1922) e "Dublinenses" (1914). Por outro lado, quando Piglia fala de Borges e de Raymond Chandler, me sinto mal, porque não conheço suas obras. 

Dois livros centrais nos ensaios de Piglia e de quase toda crítica literária que conhecemos, eu nunca acabei de ler, porque sabemos o final e isso dificulta muito a minha leitura de algum clássico: "Madame Bovary" (1857), de Flaubert, e "Anna Kariênina" (1877), de Tolstói. É um absurdo eu não ter terminado a leitura, mas não terminei.

Me lembro da birra que tive para terminar a leitura do clássico de Guimarães Rosa - "Grande Sertão: veredas" (1956) - porque quando adolescente tive acesso ao segredo de Reinaldo (Diadorim), segredo que o autor esconde dos leitores até as últimas páginas do relato do jagunço Riobaldo Tatarana.

Vejam abaixo um exemplo das questões abordadas por Piglia num dos capítulos do livro:

ANNA KARIÊNINA E TOLSTÓI

No capítulo "O lampião de Anna Kariênina", Piglia faz uma bela análise e reflexão sobre a leitura de literatura dentro da própria literatura. Grandes personagens da história literária nos são apresentadas como leitoras nos enredos de romances.

A personagem Anna lê romances ingleses no livro de Tolstói, publicado em 1877. Da mesma forma Emma Bovary é leitora de romances no clássico "Madame Bovary", de Flaubert, publicado em 1857. Piglia não faz referência a autores brasileiros, mas quem nunca leu em Machado de Assis ou José de Alencar personagens femininas que são leitoras incansáveis de romances?

Outra característica deste capítulo é pontuar a importância da luz e da forma de iluminação possível para os leitores de romances nos séculos passados - velas, lampiões, lamparinas, luzes fugazes em geral. Legal a ideia de uma luz que ilumina o romance assim como uma história de ficção que pode iluminar a nossa vida.

Neste sentido de busca existencial, Piglia cita Sartre, que diz: "Por que se leem romances? Falta alguma coisa na vida da pessoa que lê, e é isso que ela procura no livro. O sentido, evidentemente, é o sentido de sua vida, dessa vida que para todo mundo é torta, mal vivida, explorada, alienada, enganada, mistificada, mas acerca da qual, ao mesmo tempo, aquele que a vive sabe muito bem que poderia ser outra coisa.".

Não precisamos generalizar a tese de Sartre, pois muitos leitores leem por distração e simples prazer na leitura, mas que parte dos leitores leem com um sentido muito mais profundo, isso é fato.

Outro ponto muito atual sobre leitoras de romances é a questão que Piglia nos traz sobre como eram vistas as mulheres leitoras durante muito tempo e que reflete sobre o papel e o lugar das mulheres na sociedade machista: 

"De alguma maneira, a feminização do leitor de romances confirma os preconceitos dominantes sobre o papel da mulher e da inteligência feminina. Os romances eram considerados adequados para as mulheres, vistas como criaturas de capacidade intelectual limitada, imaginativas, frívolas e emotivas. Os romances, circunscritos ao reino da imaginação, eram o oposto da leitura prática e instrutiva.".

É mole! Que sacanagem a sociedade machista passar séculos tratando as mulheres dessa forma.

POR FIM

O livro "O último leitor" é um livro de leitura para sempre, ou seja, para a vida inteira para aquele ou aquela que o tem na estante.

É inevitável ler um capítulo sobre Kafka e querer ler ou reler tudo que você tem dele e ir atrás do que falta das obras publicadas por ele ou postumamente.

É impossível não ficar martirizado com o peso na consciência de leitor por não ter lido clássicos como "Robinson Crusoé" (1719), de Daniel Defoe, ou "As viagens de Gulliver" (1726), de Jonathan Swift, ou ainda "Moby Dick" (1851), de Herman Melville. Sim, amig@s, eu ainda não li estes três livros!

Percebem como é difícil pegar para ler um livro de economia, história e política, como li recentemente "A desordem mundial" (2016), de Luiz Alberto Moniz Bandeira, um catatau de 600 páginas (ler sobre AQUI), e não ficar com certo remorso caso a maioria dos livros que eu optar por ler não sejam os clássicos que me faltam? Posso morrer sem ter lido grandes feitos literários da humanidade.

Enfim, sigamos adiante com as leituras, com os atos de leitura e como últimos leitores que estão sempre em busca das descobertas e, quem sabe, das respostas para as perguntas que temos ou que não sabemos que temos, apesar de elas estarem em nós.

William


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