sábado, 16 de maio de 2020

Decamerão (Boccaccio) em tempos de pandemia





Refeição Cultural

"A peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável. Em Florença, apareciam no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs; outras, como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o populacho de bubões. Dessas duas referidas partes do corpo logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir por toda parte. Em seguida, o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas, as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras, eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte futura, também as manchas passaram a ser mortais, depois, para os que as tinham instaladas." (p.16)


Hoje li a 45ª novela ou narrativa do Decamerão, de Boccaccio. Faz 45 dias que me propus a ler uma estória por dia durante a quarentena que estamos vivendo por causa da pandemia mundial do novo coronavírus (Covid-19). Essa peste está matando neste momento mais de 800 pessoas por dia no Brasil. Já são mais de 200 mil infectados e mais de 15 mil mortos. Para piorar o quadro, a subnotificação no país é tão absurda que estima-se que os números podem ser muito maiores. No mundo são mais de 4,6 milhões de infectados e 310 mil mortos.

Boccaccio escreveu este clássico entre os anos de 1348 e 1353, no auge da Peste Negra na Europa. O mundo era muito diferente daquele que conhecemos hoje. Quer dizer... naquela época, achava-se que a Terra era plana... pensava-se que as doenças eram castigo de Deus... considerava-se que as mulheres não tinham os mesmos direitos que os homens... as leis estabeleciam que a escravidão e exploração humana era algo normal e aceitável... enfim, coisas impensáveis no século 21.

Uma das características do escritor é a ironia. Boccaccio era muito irônico e essa ferramenta estilística é de difícil compreensão ainda nos dias de hoje. Ao lermos as narrativas chegamos a ficar com raiva pela forma como as mulheres são tratadas e é preciso lembrar do quanto o escritor é irônico para compreender que até a forma como ele descreve a condição feminina é uma ironia e uma crítica à sociedade em que vivia.

Enfim, se os deuses me permitirem viver os próximos 55 dias, e afastarem de mim qualquer peste que me impeça de respirar, de comer e defecar, de enxergar, dormir e acordar, terei eu completado a leitura de mais um dos grandes e volumosos clássicos da literatura mundial.

Outras postagens sobre o Decamerão no blog podem ser acessadas aqui.

William
Um leitor


Bibliografia:

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Imortais da Literatura Universal, Nova Cultural, São Paulo, 1996.


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