Este blog é para reflexões literárias, filosóficas e do mundo do saber. É também para postar minhas aulas da USP. Quero partilhar tudo que aprendi com os mestres de meu curso de letras.
quarta-feira, 6 de maio de 2020
Leitura: As sandálias do Pescador - Morris West
Refeição Cultural
"- Meus irmãos, meus auxiliares na causa de Cristo... - A sua voz era forte, embora carinhosa, como se lhes pedisse a fraternidade e a compreensão. - O que hoje sou, fostes vós que o fizestes. Mas, se aquilo em que eu creio é verdadeiro, então não fostes vós, mas sim Deus, quem me calçou as sandálias do Pescador..." (p. 49)
INTRODUÇÃO
Hoje é 6 de maio de 2020. Uma quarta-feira chuvosa em Osasco, São Paulo. Tempos de quarentena por causa da pandemia mundial do novo coronavírus (Covid-19). O mundo parou e mudou drasticamente nestes primeiros meses do ano após o aparecimento desta peste que se espalha com rapidez e já infectou 3,7 milhões de pessoas e matou 261 mil delas até hoje.
O necrocapitalismo já impactava fortemente na miséria dos povos do mundo quando começou a pandemia; agora, com o isolamento social, as quarentenas forçadas ou sugeridas pelas autoridades e a paralisação das economias dos países, e ainda sem previsão de vacina e sem cura, temos um cenário de incertezas em relação à vida presente e futura.
Foi nesse contexto que decidi acelerar a leitura de um monte de livros que leio ao mesmo tempo. Depois de meses lendo aos poucos este romance, acabei lendo 100 páginas de ontem pra hoje. Havia começado a leitura de Morris West em 27 de dezembro do ano passado.
O enredo começa com a morte do Papa e com a escolha de um novo representante de Pedro na terra. É escolhido um homem jovem, 50 anos, vindo do bloco comunista, a URSS. Ele foi um sacerdote preso e torturado pelo líder da União Soviética. Os tempos são de guerra fria e ameaça nuclear que colocaria em risco a vida no planeta. O novo Papa terá que lidar com toda a burocracia da Igreja Católica e do Vaticano para realizar sua missão ao assumir o chamado para calçar as sandálias do Pescador.
A LEITURA
Não sei por que decidi ler este livro, talvez pelo nome, pela temática, por algum saudosismo por tê-lo lido na adolescência. Talvez por não ter religião desta vez, sendo que era religioso da primeira vez que o li. Enfim, por que não ler As sandálias do Pescador, já que se trata de um romance de ficção? Só os seres humanos têm essa capacidade de inventar e isso nos fez diferentes do restante dos animais da natureza.
A leitura me gerou boas reflexões. Eu fui criado e educado através da visão católica do mundo. Fui muito religioso até vinte e poucos anos. Li muito sobre o tema também. Além da leitura do Novo Testamento e outros livros da Bíblia, li alguns romances que me trouxeram conhecimento sobre a religião católica ou que questionavam dogmas dela - Paulo, O caminho para Bitínia, As sandálias do Pescador e Operação Cavalo de Troia são alguns livros com temática religiosa que li.
Ainda no período de buscas por alguma explicação do mundo e algum sentido para a vida, li livros espíritas como, por exemplo, Violetas na janela; li vários livros sobre gnose, livros de numerologia, I Ching, ufologia e por aí vai. Hoje, não tenho mais uma concepção religiosa de mundo e de vida. No entanto, compreendo perfeitamente a importância das religiões e a fé que os seres humanos têm nas diversas formas de energias e deuses que contribuem para a criação de sentidos à vida e para melhor aceitação da morte, ou seja, dão certa conformação à vida trágica de todos os seres vivos.
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"... e ele se recordou do que escrevera ao contemplar, pela primeira vez, o Grand Canyon do Colorado... 'Contudo ficar ou completamente frio, ou profundamente perturbado pela visão grandiosa da Natureza, ou mesmo pela dos espetaculares monumentos antigos, abandonados pelos seus criadores. Logo que o homem aparece, sinto-me reconfortado, porque ele é o único elo significativo entre a ordem física e a espiritual. Sem o homem, o universo é terra inculta e ululante, contemplada por um demônio invisível...' Se o homem desertasse deste esplendor intemporal de São Pedro, sobreviria a decrepitude e ele se transformaria num terreno baldio, onde as raízes das árvores cresceriam por entre as pedras, e os animais viriam beber nos tanques das fontes." (p. 128: uma reflexão do personagem Télémond que me pôs a pensar)
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Mesmo não tendo concepção religiosa alguma, li também nesses meses um livro com ensinamentos do Dalai Lama. Os dois livros, que falam de um deus e de reencarnações e várias vidas do mesmo ser, nos colocam a refletir, nem que seja pela capacidade do ser humano em criar ficções para além da física, da química e da biologia. Culturas, culturas proporcionadas pelo animal humano.
Uma das partes mais interessantes do livro são os finais dos 10 capítulos, quando nos é apresentado um excerto das memórias do Papa - "Extrato das memórias secretas de Kiril I, Pontífice Máximo". É quase uma obra à parte, com reflexões muito interessantes do personagem, seus medos, anseios, escolhas e a denúncia da solidão, a solidão do poder. Todos nós que já estivemos em altos cargos já experimentamos essa solidão terrível.
ALGUNS MOMENTOS QUE NOS COLOCAM A PENSAR
Os efeitos duradouros da tortura:
"Fora espancado muitas vezes, mas a carne magoada logo se recompunha. Fora interrogado até a exaustão, com os nervos a vibrar, gritantes, e o espírito caindo em misericordioso aturdimento. A tudo isso escapara, mais forte na fé e na razão, mas o horror à prisão solitária ficaria nele até morrer. Kamenev cumprira a sua promessa: 'Você nunca mais me esquecerá. Onde quer que vá, eu estarei sempre a seu lado. Não importa o que possa vir a ser, ter-me-á como parte do que for'. Mesmo aqui, nos confins neutrais da Cidade do Vaticano, naquela câmara principesca, sob os afrescos de Rafael, Kamenev, o insidioso torturador, estava presente a seu lado. Só uma forma havia de lhe fugir, a que aprendera no segredo do cárcere: a entrega total do seu espírito atormentado nos braços do Todo-Poderoso." (p. 23)
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Marxistas, nacionalistas e democratas e a imortalidade:
"Por toda parte ecoa o grito da sobrevivência, mas, visto que a morte de todo homem é inevitável, a suprema ironia da Criação, os que procuram o domínio do seu espírito ou dos seus músculos têm de prometer-lhe uma extensão da sua própria vida, que se assemelha à imortalidade. Os marxistas prometem uma união completa dos trabalhadores do mundo. Os nacionalistas dão-lhe uma bandeira e uma fronteira, uma ampliação local de si próprio. Os democratas oferecem-lhe a liberdade, através de uma urna eleitoral, mas avisam-no que talvez tenha de morrer para salvaguardar essa liberdade." (p. 27)
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A necessidade do homem numa continuidade pós-morte:
"Os homens do Vaticano meditam, igualmente, sobre a imortalidade e a eternidade. Compreendem a necessidade que o homem tem de criar uma extensão de si próprio, para além do limite dos anos de vida terrena. Afirmam, como ponto de fé, a persistência da alma em união eterna com o seu Criador, ou de exílio da Sua Face. Vão ainda mais longe, prometendo ao homem a permanência da sua identidade e uma vitória final, malgrado o terror de uma morte física. Porém, o que não compreendem, muitas vezes, é que a imortalidade tem de começar a tempo; que o homem tem de gozar de recursos físicos para sobreviver antes que seu espírito seja capaz de ansiar por algo mais do que a sobrevivência física..." (p. 29)
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O trato com os mais velhos e poderosos deve ser diferente, deve ser calculado:
"Quando os homens são velhos e poderosos, têm de ser levados pela razão e pelo calculismo, porque a seiva do coração seca com a idade..." (p. 64)
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O homem não foi feito para viver só:
"Creio que deveria escrever estas coisas para os outros, porque a doença do espírito é um sintoma dos nossos tempos, e todos nós devemos tentar curar-nos uns aos outros. O homem não foi feito para viver só. O próprio Criador o afirmou. Somos todos membros de um mesmo corpo. A cura de um membro doente é função de todo o organismo..." (p. 93)
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Querer saber de tudo é um ato de orgulho... o mistério da cebola:
"... A vida é um mistério, mas a sua solução está fora de nós, não dentro. Não podemos descascar-nos como se fôssemos cebolas, esperando que, ao alcançar a última camada, descubramos como é feita uma cebola. No final, nada nos restaria. O mistério da cebola ainda não foi explicado porque, tal como o homem, é o resultado de um ato criativo eterno... Eu calço os sapatos de Deus, mas nada mais lhe posso dizer. Entende o que quero explicar? O que eu tenho de ensinar e propagar é um mistério! Quem pedir que lhe expliquemos a Criação, do começo ao fim, pede o impossível. Já alguma vez terá pensado que, ao pedir uma explicação para tudo, está cometendo um ato de orgulho? Nós somos criaturas limitadas... Como pode qualquer um de nós ter um saber infinito?..." (p. 108)
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West cita Brasil no romance como exemplo de país com ameaça comunista por causa da miséria em que o povo vive:
"... Aqui, no Brasil, deparamo-nos com uma imensa expansão industrial e, ao mesmo tempo, com uma enorme população de camponeses a viver na mais degradante pobreza. Para quem se voltam eles, em busca de um paladino para a sua causa? Para os comunistas. Não pregamos nós a justiça? Não deveríamos estar prontos a morrer por ela, tal como por qualquer outro artigo de fé? Pergunto-vos de novo: em que falhamos?" (p. 114)
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A vida cotidiana é uma rebelião contra o medo da morte:
"Contudo, a vida cotidiana de cada homem é uma série de pequenas rebeliões contra o medo da morte, ou de vitórias esporádicas na esperança do impossível." (p. 143)
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Uma dica para quem quer fazer um trabalho de base social:
"O Bom Pastor vai em busca das ovelhas perdidas e leva-as às costas para o redil. Não exige que venham de rastos, de cauda murcha e arrependida, com o cordão de penitente em torno do pescoço..." (p. 149)
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O livro tem momentos que nos fazem pensar sobre várias coisas. É um bom romance. Mais de meio século após seu lançamento, vale a pena a leitura desta ficção de Morris West.
William
Bibliografia:
WEST, Morris. As sandálias do Pescador. Círculo do Livro S.A., São Paulo.
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