sábado, 20 de junho de 2020

200620 (d.C.) - Diário e reflexões




Refeição Cultural

Manhã de sábado. Dia vinte de junho do novo mundo depois da Covid-19. Início do inverno no mundo físico onde vivo (está calor). Continuação da longa noite de trevas que nos enfiaram desde que decidiram destruir o país e alterar o comportamento da população para interromper a democracia tupiniquim, onde a maioria do povo insistia em desafiar a casa grande e votar num partido que estava melhorando a vida do povo oriundo da escravidão de mais de três séculos. Enfim, manhã de sábado em Osasco, São Paulo, Brasil.

Acabei de ler a novela do dia do livro de Giovanni Boccaccio, Decameron, escrita entre os anos de 1.348 e 1.353, no auge de uma das pandemias mais severas que o mundo dos humanos conheceu, a Peste Negra, na Europa do século XIV. Desde o início de abril, decidi ler uma narrativa por dia, ao longo de cem dias.

Boccaccio foi um dos sobreviventes e o livro narra a história de dez jovens, sete moças e três rapazes, que decidem sair de Florença por causa da pandemia, em meio a pilhas de mortos nas calçadas e fim das regras sociais mais comezinhas, e vão para os arredores em busca de lugares aprazíveis (locus amoenus) para se deleitarem com os prazeres da carne - comer, beber, contar histórias - enquanto a vida existe e enquanto não morrem com a Peste. Serão cem narrativas contadas, em dez jornadas diárias, com descansos nas sextas e nos sábados, dias de respeito à religião.

Iniciei a leitura do livro de Boccaccio faz 80 dias. A pandemia mundial do novo coronavírus foi o mola propulsora da ideia de pegar na estante o livro e começar a leitura, já que o contexto narrativo tem como pano de fundo uma pandemia que alterou a vida social e encerrou todos os costumes à época, por exemplo, fim dos velórios e a confraternização de famílias e amigos devido ao grande número de mortos pela Peste, mudanças de hábitos e tradições que imperavam sob o forte domínio de nobres e igreja etc. A peste foi um desses momentos que mudam as coisas devido ao imponderável. 

O livro nos traz o tempo todo a questão da Fortuna, pois nada aconteceria sem autorização ou sem influência decisiva da Sorte. Enfim, brinquei com essa ideia e me coloquei a viver cem dias lendo as narrativas de Boccaccio, isso se a Sorte me permitir. Lá se vão 80 dias, e a deusa Fortuna me permitiu viver e ler 80 narrativas. Tive que ser disciplinado e obstinado. Teve dia que li a novela em pé e de madrugada para não falhar nenhuma jornada diária. Agora faltam 20 dias...

Escrever diários ou textos desse mesmo gênero discursivo tem alguns pontos positivos em termos históricos ou cronológicos, mesmo sendo textos da vida privada, porque ao voltar a eles depois é possível ver o andamento de alguns fatos da vida cotidiana em sociedade. Um exemplo disso é o efeito da pandemia mundial da Covid-19. Ao ler o primeiro texto que fiz sobre o Decameron no dia 4 de abril, podemos ver que a pandemia já havia matado 60 mil pessoas no mundo e mais de um milhão havia contraído o vírus. E os presidentes de dois grandes países, EUA e Brasil, faziam pouco caso da pandemia e diziam que ela era uma 'gripezinha":

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4/4/20: "Neste momento, já passa de um milhão o número de pessoas atingidas pelo vírus e mais de 60 mil perderam suas vidas, sendo que Itália, Espanha e demais países da Europa foram fortemente atingidos. Agora a pandemia avança nas Américas, e um dos novos epicentros dela são os Estados Unidos. Semanas atrás, o presidente de lá e o de cá afirmaram que a pandemia era um exagero, coisa de gente alarmista, e que não passava de uma "gripezinha"." (Blog Refeitório Cultural, ler o texto aqui)
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E hoje, 80 dias depois?

O Brasil é o novo epicentro da doença no mundo. E como aqui tudo é diferente do resto do planeta, as mais de mil mortes por dia não causam comoção a essa gente miserável, embrutecida e bárbara que somos. Enquanto os países do mundo fizeram duras quarentenas e isolamentos sociais quando o vírus se alastrava e contaminava bem menos gente que aqui, com algumas centenas de mortos diários, o que vemos nesta terra é o inverso total, a começar pelo comportamento das autoridades governamentais.

Multidão, multidões, trânsito, aglomerações, transporte público lotado, gente que pode dentro de seus carrões... o comércio e as ruas lotados de gente, com a contaminação pelo coronavírus em curva crescente (e não há vacina nem remédio). 

O inumano que colocaram no poder após o fim da democracia e o golpe de 2016 venceu, e mesmo não sendo uma "gripezinha", ele venceu, e o povo preto, pobre e sem recursos é o povo que está morrendo na amplíssima maioria dos casos. A porcentagem de mortos diminui nas tabelas e gráficos na proporção inversa de rendimento e posse. Mais pobre morre mais. Mais rico morre menos. 

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O menor número de mortos é de brancos e com altos salários e rendas e propriedades. E sobrenomes difíceis de pronunciar. Aqui, a casa grande venceu. Ela vence sempre.
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Finalizo com os números oficiais de ontem, que não são mais tão confiáveis em relação ao Brasil porque o inumano no poder atua para alterar os dados sobre mortos e contaminados. 

Segundo o site da John Hopkins University (manhã de 20/4/20), temos no momento 8.698.234 pessoas no mundo contaminadas pelo vírus, e 460.783 mortos no mundo. Os dois países que trataram a pandemia como "gripezinha" lideram a escalada de mortes e contaminados. EUA com 2.226.282 contaminados e 119.224 mortes. Brasil com 1.032.913 contaminados e 48.954 mortes. 

Dias atrás, estudos já apontavam que 66% dos mortos por Covid-19 na Grande São Paulo ganhavam até 3 mil reais e no outro extremo, cerca de 5% dos mortos eram aqueles que ganhavam acima de 11,5 mil reais, e, dentre esses, 1,2% ganhava acima de 19 mil reais. É preciso dizer mais alguma coisa?

Seguimos vivos e lendo o Decameron e outras leituras que possam nos tornar mais humanos, mais conscientes e menos bárbaros. As estatísticas favorecem pessoas como este que aqui reflete o momento em um diário, a começar porque sua pele é branca, apesar do cabelo "ruim" e sobrenome fácil. Tudo poderia ser diferente e melhor para o povo, bastava os humanos quererem.

William
Um leitor

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