quarta-feira, 1 de julho de 2020

90 contos do Decamerão em tempos de pandemia



Decamerão (1353), de Boccaccio.

Refeição Cultural

Estamos vivendo sob o advento de uma pandemia mundial que alterou drasticamente a sociedade humana neste ano de 2020. A vida em sociedade já não estava boa antes do aparecimento do novo coronavírus (Covid-19) no início do ano. A crise econômica mundial já era uma realidade por causa do predomínio do necrocapitalismo e neoliberalismo, crise que acentuou como nunca a desigualdade no mundo.

A pandemia surgiu faz seis meses e ainda não temos nem vacina nem remédio contra o vírus. Ao olharmos para trás nesses meses de pandemia e avaliarmos o momento, vemos o quanto estamos longe de um provável recomeço de uma vida minimamente estável para o povo do mundo, aqui falo principalmente no sentido da classe trabalhadora e das classes populares do mundo. 

Dos poucos dados que temos, sabemos que o vírus mata mais certos segmentos de seres humanos. Idosos, pessoas com doenças pré-existentes (mas também quem não tinha doenças) e pobres, pobres pretos e pobres que se situam nas camadas populares sem direitos cidadãos e discriminadas pelas elites dos países atingidos pelo vírus.

Foi nesse cenário de pandemia que peguei o livro de Giovanni Boccaccio 90 dias atrás para ler uma novela por dia e desafiar o vírus e a pandemia assim como os personagens do Decamerão buscaram no isolamento e nas narrativas uma fonte de prazer e reflexão. Terminei ontem a 9ª jornada e agora vou para a 10ª e para as 10 narrativas finais. Isso, é claro, se a Sorte me permitir.

Confesso a vocês que a maioria das 90 novelas ou contos ou narrativas não me agradou, não me trouxe prazer ou reflexão. Algumas foram bem divertidas, algumas até excitam o leitor porque são de sexo explícito; mas algumas são tão violentas contra as mulheres e contra pessoas simples que nos causam repulsa. 

Eu sei que os críticos de literatura saem em defesa de Boccaccio ou da obra em si, contextualizando o livro e a técnica narrativa como, por exemplo, o uso da ironia. A ironia é de difícil compreensão, ontem e hoje. Aliás, estou influenciado pelos tempos que vivemos, e a forma como as mulheres são tratadas na obra é espelho da regressão atual nos direitos das mulheres. Eu sei que é ficção, mas as novelas com sentenças como essa abaixo me desagradaram bastante.

"A tal respeito, agrada-me narrar-lhes um conselho que Salomão deu, conselho este que é excelente para curar, daquele mal, todas as mulheres que agem assim. A mulher que não se acha merecedora desse castigo nem precisada desse remédio não deve tomar aquele conselho como dirigido a ela mesma. Contudo, deve observar que os homens usam um provérbio que afirma que tanto o cavalo bom como o mau cavalo exigem o uso de espora no tacão, e que tanto a boa mulher como a mulher má necessitam de surra de bastão" (p. 657)

Se eu pegar a novela 89, do exemplo acima, na qual o "conselho" que Salomão deu aos sujeitos protagonistas foi de espancar a mulher como alguns bárbaros espancavam burros e cavalos para amansá-los, imagino que não há técnica narrativa que faça leitores da idade média ou da nova idade média no Brasil do bolsonarismo compreenderem que aquilo é no sentido figurado, é ironia e não deveria ser levado ao pé da letra. 

Enfim, tenho comigo que é melhor ler os clássicos do que não ler os clássicos, como nos ensinam os mestres e educadores. Nós não precisamos gostar ou concordar com o que lemos. Muito menos censurar textos literários. A leitura disciplinada e persistente é um ato transformador e deve ser realizado por todos nós.

Como registrei ao longo da jornada do Decamerão o avanço da nova Peste, a do Covid-19, registro que neste momento já morreram 512.114 pessoas no mundo, estando contaminadas 10,5 milhões (dados da Johns Hopkins University). Os dois países com maiores números de contaminados e mortos são os dois nos quais seus governantes, dois seres bárbaros e desprezíveis, trataram o novo coronavírus como uma "gripezinha". 

Falo dos Estados Unidos e do Brasil, este com 10% dos mortos no mundo, tendo menos que 3% da população mundial. Já morreram 59.594 brasileir@s e não há política nacional de isolamento social e apoio à quarentena. A pandemia cresce e o bolsonarismo venceu! A ampla maioria da população está nas ruas, está tudo aberto. 

Aqui venceu a morte, principalmente a morte dos pobres e pretos e grupos discriminados e miseráveis há séculos, segmentos humanos que já morriam assassinados desde sempre.

Vamos para as 10 novelas finais nos próximos 10 dias. Se a Fortuna me permitir. Para ler outras postagens sobre minha leitura de Boccaccio, em ordem cronológica inversa, clique aqui.

William
Um leitor


Bibliografia:

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Imortais da Literatura Universal, Nova Cultural, São Paulo, 1996.


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