sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Alemanha de Eichmann e o Brasil pós-Golpe





"(...) uma velha lei de 1933 permitia que o governo confiscasse propriedade que tivesse sido usada para atividades 'hostis à nação e ao Estado'..." (ARENDT, 2019, p. 175)

"(...) terceiro, num decreto determinando que toda propriedade de judeus alemães que perdessem sua nacionalidade fosse confiscada pelo Reich (25 de novembro de 1941)." (ARENDT, 2019, p. 175)

"(...) 'o Ministério da Justiça só pode dar uma pequena contribuição ao extermínio [sic] desses povos'. (Essa linguagem aberta, numa carta do ministro da Justiça para Martin Bormann, chefe da Chancelaria do Partido, datada de outubro de 1942, é excepcional.)" (ARENDT, 2019, p. 175)


Refeição Cultural

Quatro horas da manhã. Não consigo dormir e me levanto. Pego o livro Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal (lançado em 1963), de Hannah Arendt. Retomo a leitura. Avancei mais dois capítulos: "Deveres de um cidadão respeitador das leis" e "Deportações do Reich - Alemanha, Áustria e o Protetorado".

Abro a janela da sacada e vejo o amanhecer. Nesses dias, o cantar de sabiás atravessa a noite e são eles que escuto ainda no escuro. Vejo os vultos que andam na penumbra lá embaixo. Mais um dia comum se inicia. Outros pássaros começam a cantar ou emitir seus chamados. A região tem joão-de-barro, bem-te-vi e outros mais.

O Estado alemão não trata de forma igual os cidadãos alemães. Segmentos inteiros da sociedade alemã são discriminados, perseguidos e sofrem todo tipo de absurdo. Após o início do governo de Adolf Hitler as coisas vão piorando cotidianamente. Judeus, comunistas, pessoas com qualquer tipo de deficiência física ou intelectual, oposições ao governo, quem pensa diferente, todos são alvo de perseguições.

Judeus não podem mais ocupar funções públicas, ser professores, servidores públicos. Depois não podem mais se casar ou se relacionar com os arianos. Depois não podem mais ter direitos básicos que os demais cidadãos têm. Tudo foi sendo normalizado. E a vida seguia normalmente para aqueles que não eram alvo das perseguições do Estado. Festas, casamentos, comemorações, diversões.

Os anos foram passando. Após 1933, veio 1934, depois 35 e 36 e o Estado nazista foi normalizando tudo. A linguagem alemã foi se adequando a toda barbárie. Matar milhares de pessoas com deficiência sob a denominação de "eutanásia". Depois matar adversários do governo com a mesma "eutanásia". Tomar as propriedades dos cidadãos que o Estado perseguia e considerava como indesejáveis. Tornar impossível a vida das pessoas... prisões, exílio, deportação...

E chegamos aos fornos e execuções em massa por fuzilamento nos diversos campos de concentração nazistas.

A banalidade do mal se dá através de um processo

No Brasil, fomos vendo acontecer absurdos atrás de absurdos após a população eleger para a presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. Aqueles que viriam a apoiar o golpe de 2016 começaram a conspirar contra o governo de Lula desde o primeiro ano de seu mandato. As fake news (nome da moda para mentiras) já eram usadas contra Lula e o Partido dos Trabalhadores desde os anos oitenta.

Os barões das mídias e seus lacaios perseguiram por décadas as lideranças populares e dos trabalhadores brasileiros. Lula e o PT eram acusados de crimes absurdos como, por exemplo, o sequestro de empresário (com foto de sequestrador com camisa do PT em horário nobre). O PT era o partido que iria colocar um sem teto ou sem terra na casa de cada pessoa que tivesse uma casa própria. Que iria confiscar a poupança das pessoas (e no fim quem confiscou foi o Collor).

O chamado quarto poder, os meios de comunicação hegemônicos, dominado por algumas famílias de bilionários poderosos, tanto a mídia nacional quanto a local, nos estados e municípios, começou uma perseguição implacável ao partido do presidente Lula, eleito em 2002.

Como militante político, representante de trabalhadores, estudante de Letras, fui vendo tudo o que aconteceu no Brasil entre 2003 e 2020. O processo de envenenamento do povo, destruição da política e da democracia nos trouxe ao momento que vivemos hoje: o bolsonarismo. Sabemos quem são os responsáveis por essa tragédia. E eles estão livres, leves e soltos. 

Transformaram parcelas do povo brasileiro em bestas feras. Colocaram nos poderes constituídos através de eleições, monstros, gente criminosa. Gente má. O mesmo se deu em funções públicas providas por concurso ou nomeação direta. Normalizaram a maldade. 

O que há de pior galgou o poder estatal como consequência do processo de envenenamento do povo brasileiro. E não sabemos o que está por vir. Não se tem como prever os males após a abertura da caixa de Pandora. Falamos isso por anos.

O que sabemos é que o Terceiro Reich e o nazifascismo só acabaram após um guerra que matou dezenas de milhões de pessoas e destruiu dezenas de países na Europa e demais continentes envolvidos no conflito mundial.

O que vimos e temos acompanhado desde que todo esse processo de destruição do país começou, por parte dos poderosos que não aceitaram a democracia na vez de governos populares, o que vimos e vemos é que o Estado brasileiro, através de suas instituições, vem fazendo o mesmo que o Estado nazista fazia com seus cidadãos: perseguia, discriminava, prendia, confiscava bens, invadia a casa de pessoas. E pessoas morriam em consequência de ações do Estado.

O que tem de mais igual na Alemanha de Eichmann e no Brasil pós-Golpe é que o Estado brasileiro tem perseguido e sido injusto com certos segmentos da sociedade; para alguns, o rigor da lei ou até punição sem lei que sustente o ato e, para outros, tudo se é permitido, inclusive o que estaria proibido por lei. E isso vem piorando após o golpe de Estado e após as eleições fraudulentas de 2018. Não sabemos como isso vai terminar.

É impossível não lembrar o que o Estado brasileiro está fazendo com o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva. Todos os dias, meses e anos dos últimos anos, tudo o que vemos é idêntico ao que o Estado alemão fez com milhões de judeus. Mas cada judeu tinha nome, tinha endereço, tinha família, tinha uma história e o Estado tratava aquele segmento da sociedade alemã como um nada (ou pior, como inimigo). E os alemães assistiram a tudo isso...

Chega por hoje... O sol saiu. Ele está encoberto pelas nuvens da manhã. Mas já são oito horas da manhã de sexta-feira.

William


Bibliografia:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal. Companhia das Letras, São Paulo, 2019.


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