domingo, 6 de setembro de 2020

De homens e cavalos



Leão Tolstói.

Refeição Cultural

Quase nunca lembro sonhos ou pesadelos. Quase. Desta vez, tive um pesadelo e me lembro dele. Foi forte a cena, um horror! Um homem rasgava o próprio pescoço e nos olhava enquanto o sangue jorrava... despertei.

De manhã, ao acordar, me dei conta que o sonho ruim foi ainda consequência da leitura da noite anterior. Fiquei bastante impressionado com o conto de Tolstói: Kolstomer (História de um cavalo), escrito entre 1863 e 1886. Terminada a leitura da história daquele cavalo de raça malhado, fiquei com a cabeça a mil. Eu já havia lido o conto em 2008, mas não me lembrava dele.

"Sim, sou filho de Liubesni I e de Baba. Meu nome de linhagem é Mujique I. Sou Mujique I e, para os da rua, Kolstomer, assim apelidado pelo vulgo em razão de minha marcha ampla, que nunca teve igual em toda a Rússia. Não há no mundo um cavalo de sangue mais nobre que o meu..."

Em linhas gerais, o conto narra a história de um cavalo de raça, que nasce com a cor da pele diferente da de seus pares (nasceu mosqueado, malhado) e sua vida será marcada e definida por isso: a cor de sua pele. E ele terá uma vida desgraçada, mesmo sendo de linhagem nobre.

Tolstói faz várias críticas à sociedade a partir da história do cavalo Kolstomer. O escritor dá voz ao cavalo e as reflexões do animal em relação ao animal humano são profundas, duríssimas e mais atuais que nunca. O animal humano capitalista é colocado em seu devido lugar pelo animal cavalo.

Os humanos levam suas vidas baseadas na lorota, no faz de conta, na palavra e não através de fatos. É aquela lição de Cazuza "Suas ideias não correspondem aos fatos...". As principais palavras na linguagem do animal humano são os pronomes "meu", "minha", "teu", "tua". É a posse de tudo. 

"Minha casa", "minha mulher", "meu cavalo", "minha terra". Mas o sujeito nunca viveu na casa; é outro que fica com sua mulher; não é ele que alimenta e anda no cavalo; e nunca pisou na terra que diz ser sua. Todas essas verdades são apontadas pelo cavalo Kolstomer em suas observações sobre o animal humano.

E o conto é duro e violento como a vida é. A violência é como a violência que sofremos neste instante no país destruído e entregue aos fascistas, genocidas, bárbaros ignorantes, brancos da casa grande, bilionários e capatazes com os poderes nas mãos.

Enfim, o conto me deixou bolado. O final do conto é duro, é o cotidiano de todos que tiveram vidas miseráveis por preconceito, por mandonismo, por falta de oportunidades e liberdades. Dormi bastante impressionado.

Só para lembrar mais um caso de homens e cavalos, nunca me esqueço de um poema de Manuel Bandeira, que faz profunda crítica à sociedade burguesa, comparando seus membros a cavalos, enquanto observa cavalos na pista de corrida. O poema se chama "Rondó dos cavalinhos", do livro Estrela da Manhã (1936).

"Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo..."

Os versos vão se repetindo a cada estrofe, e para o leitor do poema vai ficando claro pela sonoridade das consoantes "nh... n... m... n..." (mmm) que ao olhar os graciosos cavalos correndo lá na pista, o que mais chama a atenção do eu lírico é o mastigar voraz dos animais humanos dentro do salão burguês onde se encontram num possível jóquei clube.

E, por fim mesmo, a história de Kolstomer, a brutalidade animalesca em que nos encontramos no país pós golpe de Estado e dominado pelo mal, tudo isso me fez lembrar do ambiente onde cresci, ainda no final da ditadura civil-militar dos anos 1964-1985, lá em Uberlândia. 

Eu tinha meus doze ou treze anos e via nas ruas de terra onde morava os cavalos e burros amarrados em postes sendo espancados para serem "amansados". Era muito grotesco aquilo. Às vezes, a sessão de tortura durava o dia todo. Cresci vendo aquilo. Mas a molecada também era bruta como seus familiares que espancavam cavalos...

Avançamos para um mundo um pouco mais civilizado nas décadas seguintes, com governos democrático-populares como os do Partido dos Trabalhadores no Brasil, para voltarmos à barbárie de novo agora, por golpe e entrega do poder aos semeadores do caos contra o povo. A humanidade parece não ter jeito mesmo... só acabando.

William


Bibliografia:

BANDEIRA, Manuel. Libertinagem & Estrela da Manhã. Editora Nova Fronteira. 14ª impressão. Rio de Janeiro, 2000.

TOLSTOI, Leão. Obra Completa, Volume III. Nova Aguilar, 2004.


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