terça-feira, 27 de outubro de 2020

Tempo (VI)



Refeição Cultural

Estudos de textos teóricos sobre o tempo

Sigo com a leitura do texto de Benedito Nunes, O tempo na narrativa. Estou no capítulo 5 - "A desenvoltura temporal do romance".

O autor vai abordar uma questão que para a maior parte dos leitores é de difícil distinção: qual a diferença entre romance, novela e conto. Também vai falar da questão da "ilusão de simultaneidade" nos romances, e volta à questão da duração dos tempos, tempo cronológico, tempo psicológico etc. 

"Costuma-se dizer que o conto, instantâneo de uma situação, é refratário às anacronias de alcance extensivo e de considerável amplitude; a novela abrange situações diversas, encadeadas cronologicamente ou por uma casualidade que pode ser rigorosa. Dado o tronco comum da tradição oral de que essas formas procedem, é legítimo afirmar que a novela é uma composição maior do que o conto. Mas já seria falsear o romance considerá-lo apenas como sendo mais extenso do que a novela. Essas duas espécies de ficção, conforme mostrou o formalista russo B. Eikhenbaum, são heterogêneas." (NUNES, 1995, p. 49)

Nunes nos mostra que o romance foi se consolidar com a ascensão da burguesia, algo bem recente se considerarmos textos e gêneros discursivos em narrativas e dramas desde a Antiguidade.

"Ao contrário da novela, que teve como matriz a anedota, o romance, de existência embrionária desde a Antiguidade, mas cujo desenvolvimento teria de esperar pela fase de ascensão da burguesia, absorveu as expressões da cultura livresca - narrativas epistolares, relatos de viagens, crônicas históricas, estudos de costumes e investigações psicológicas das paixões e do caráter." (p. 49)

O professor Nunes nos explica algumas características do romance.

"A extensão da obra romanesca casa-se com o sincretismo ou o hibridismo de sua forma, que combina elementos díspares - digressões, comentário, expressão lírica e apresentação dramática - como diferentes 'centros de interesses', podendo narrar uma ou mais de uma história num discurso de andamento variável, que tende a continuar, ao contrário da novela, para além do ponto culminante da ação principal." (p. 49)

Nunes cita Lukács para afirmar que "o tempo se encontra ligado à forma". (p. 50).

O texto fala novamente da ascensão da burguesia ao fazer referência ao tempo cronometrado nas novas formas de trabalho do século XIX.

"A época do romance é a época do surgimento da História moderna e, não por acaso, também aquela em que está começando a cronometria do trabalho e da produção, que levou o controle dos relógios mecânicos, depois que se tornaram mais precisos, a estender-se sobre toda a vida social." (p. 50)

Cita o tempo dos personagens de Balzac: "No romance do século XIX, predominaria a temporalidade cronológica, que os textos de Balzac ilustram. O tempo dos personagens balzaquianos é sempre, com todos os seus recuos, o tempo dos relógios." (p. 50)

SIMULTANEIDADE - Uma questão a ser resolvida pelo romance é a questão da simultaneidade porque no texto existe a linearidade do signo linguístico, assim como o caráter consecutivo da linguagem verbal, nos explica Nunes. Os textos terão que criar uma "ilusão de simultaneidade".

Uma das estratégias criadas é o uso de advérbios para ligar capítulos ou fragmentos das ações contadas e interrompidas pelo narrador - enquanto isso, no mesmo momento, naquele dia.

Nunes cita vários exemplos de autores que trabalham com formas muito inteligentes de simultaneidade em seus romances, cita John dos Passos (Paralelo 42, de 1930), cita Flaubert com Madame Bovary, ainda no século XIX, dentre outros que trabalham com montagem de diálogos para sincronizar discursos e tempos.

FINTAS DE STERNE - Nunes nos dá o exemplo de um romance revolucionário em relação às técnicas narrativas para lidar com os tempos diversos: A vida e opiniões de Tristam Shandy, de Sterne.

"O tempo do ato de escrever é tão fugidio como o tempo cronológico, que se desloca de um ponto a outro - nisso consistindo a técnica do salto temporal (time-shift), gerador de anacronias, sem preenchimento dos períodos vazios (...) As anacronias em série de Vida e opiniões de Tristam Shandy complicam-se, ainda, em decorrência do recorte do tempo cronológico pelo tempo vivido, que contrasta, por sua vez, com o tempo do ato de escrita, que contrasta com o presente da narração, que contrasta com a temporalidade do leitor... A essa zombaria do tempo, o narrador opõe as fintas do discurso, legitimando o seu relato pelo efeito humorístico da trama temporal de uma narrativa episódica 'digressiva e progressiva' que, sem ter propriamente um enredo, enreda, conjuntamente, narrador e leitor." (p. 55)

Louco isso, heim!? Agora, após muitos anos de leitura de Machado de Assis, pelo menos uns 25 anos lendo o mestre do Cosme Velho, começo a entender por que ele cita Sterne em relação às técnicas de algumas de suas obras. Machado faz muito isso em seus contos e romances.

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"MACHADO DRIBLA - Como Sterne, Machado de Assis ousa fintar a fugacidade do tempo, com a diferença de que o dribla em lances mais extensivos, como em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), contando uma história a partir do fim, da morte do narrador para trás. Para trás caminha o Bentinho de Dom Casmurro (1899), num movimento de vaivém." (p. 55)

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No século XX, veremos novas mudanças nas formas de narrar dos romances. Nunes resume bem isso num parágrafo onde mostra a diferença de autores do XVIII e XIX para o XX:

"É claro que, tendo o privilégio de empregar os verbos relativos a processos internos, a narrativa ficcional nunca descurou da subjetividade, a que se inclina, por vocação, o romance. Enquanto, porém, os grandes ficcionistas dos séculos XVIII e XIX, como um Goethe, um Dickens, um Balzac, um Zola, 'interpretavam com segurança objetiva as ações, estados e caracteres de seus personagens', um Proust, descendo através da memória ao passado do narrador, ou uma Virgínia Woolf, adentrando-se na intimidade dos personagens - dos quais narra as mínimas alterações de pensamento -, interpretam ações, caracteres e estados pelo ângulo oscilante e incerto da experiência interna, a partir do qual as situações externas e objetivas se ordenam. O fluxo de consciência - the stream of consciousness, expressão de William James - será, na criação romanesca, o eixo principal da transformação do enredo." (p. 57)

O capítulo vai finalizando e o professor Benedito Nunes fala sobre a "duração interior" na questão do tempo no romance.

"A contrastação da duração interior com a impessoalidade e a objetividade do tempo cronológico é um dos principais condutos da tematização do tempo no romance." (p. 57)

Bergson vai dizer que a "duração interior" (durée) é o tempo verdadeiro. Achei isso muito interessante! E atual.

É isso, tive bons ensinamentos neste capítulo do livro O tempo na narrativa.

William



Bibliografia:

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Série Fundamentos. Editora Ática, São Paulo, 1995.

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