terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Tempo (XX)



Refeição Cultural

(Rascunhos e ideias para o trabalho final de disciplina de literatura)


DO TEMPO REAL AO TEMPO IMAGINÁRIO

Um dos capítulos do livro O tempo na narrativa de Benedito Nunes - "Do tempo real ao tempo imaginário" - desenvolve diversos conceitos de tempo a partir da pergunta "O que é o tempo?". E Nunes afirma: "Direta ou indiretamente, a experiência individual, externa e interna, bem como a experiência social ou cultural, interferem na concepção do tempo." (NUNES, 1969, p. 17)

Nunes vai explicar os conceitos de tempo físico e psicológico, tempo cronológico e histórico, tempo linguístico e tempos verbais. Os poemas de A Rosa do Povo têm forte relação com um tempo histórico, os anos cruciais da 2ª Guerra Mundial. Essa marcação temporal, que situa a obra em um "tempo" acaba por influenciar o Eu lírico nos poemas, de maneira que podemos fazer leituras poéticas para além do plano da linguagem, percebendo sentidos mais pessoais e psicológicos nos poemas.

Muitos poemas do livro têm a temática baseada na passagem de um tempo ruim, de medo, de desânimo e desesperança para um tempo de renascimento, regeneração, purificação, de nova chance, nos permitindo com isso experimentar um pouco dos conceitos trabalhados por Eliade sobre a "regeneração do tempo". Alguns poemas evidenciam os efeitos da passagem do tempo até no título, outros não, mas o tema é o mesmo, o Eu lírico está refletindo sobre o tempo.

Cito alguns dos poemas de A Rosa do Povo, cujas temáticas incluem a passagem do tempo, tanto em seu aspecto físico quanto em seu aspecto psicológico, em relação ao Eu lírico: "Anoitecer", "Nosso Tempo", "Passagem do Ano", "Passagem da Noite", "Uma Hora e Mais Outra", "Nos Áureos Tempos", "Ontem", "Assalto", "Resíduo", "Desfile", "Retrato de Família", "Idade Madura", "Mas Viveremos" e "Últimos Dias".

"PASSAGEM DA NOITE"

Em "Passagem da Noite", temos um poema de 40 versos, divididos em duas estrofes, dois tempos distintos de 20 versos, sendo a primeira parte relativa ao tempo físico e natural da noite, a outra parte relativa ao período do dia, e vemos o Eu lírico expressar seu estado psicológico após iniciar a estrofe situando o cenário no tempo: "É noite.". Veremos uma sequência de imagens e associações entre a "noite" e o estado psicológico do Eu lírico.

Na transição da noite para o dia em primeiro plano, o plano da linguagem - "E salve, dia que surge!" -, além da clara transição do tempo de "sombra" e de "desânimo" para o tempo de "alegria", "gozo" e "gosto do dia!", é possível fazermos leituras de sentidos mais profundos, encontrar nas duas partes do poema de Drummond possíveis referências a processos cerimoniais religiosos ou mitológicos de purificação, de renascimento, de exaltação da vida e com ela a esperança no amanhã.

Certas imagens da primeira e da segunda parte do poema nos permitem até identificar certos mitos como o evento da purificação dos homens e do mundo através da longa noite do dilúvio e o renascer da humanidade, uma forte tradição bíblica. Coincidência ou não, o dilúvio durou 40 dias e 40 noites e o poema tem 40 versos.

Na primeira parte, o Eu lírico diz que:

"Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra."

A imagem nos coloca praticamente nas longas noites do dilúvio. Temos a noite nos elementos da natureza. No entanto, na segunda parte, temos o recomeço, a redenção, a regeneração.

"Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos."

O cenário agora é de recomeço, "há florestas", "a terra prossegue seu giro" e "não nos diluímos".

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A sequência de poemas de A Rosa do Povo que vai de "Anoitecer" até "Uma Hora e Mais Outra" é muito coerente e lógica, apresenta uma continuidade temática. 

"Anoitecer" nos fala de determinado momento no tempo físico, da natureza, e na vida do Eu lírico (tempo psicológico e tempo histórico). E fala do medo. O poema seguinte é "O Medo"; depois vem "Nosso Tempo" descrevendo longamente um certo tempo histórico, para em seguida falar da "Passagem do Ano" e "Passagem da Noite" e, por fim, "Uma Hora e Mais Outra", repetindo a temática de que apesar do desânimo, da tristeza e dos problemas, a esperança e o recomeço está na possibilidade de cada amanhã.

Aliás, aprendemos essa lógica de encadeamento e importância de tudo na poesia com as aulas do professor Ariovaldo em Teoria Literária II, que vi ano passado. Em poesia, nada é isolado, solto. Toda palavra no verso (ou ausência de palavra) tem seu sentido, assim como os versos na estrofe, assim com as estrofes no poema. É uma sequência de imagens com significações. O mesmo em relação ao livro que reúne os poemas. Essa lição é perfeita ao se ler A Rosa do Povo.

William


Bibliografia em estudo:

ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Trad. José Antonio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992.

MINOIS, George. História do futuro. Dos profetas à prospectiva. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Unesp, 2015.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1969.

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