domingo, 22 de agosto de 2021

Ulysses - Nausícaa (As Pedras)



Refeição Cultural

No sábado à noite, retomei a leitura de Ulysses. Meu hábito é ler pela manhã, mas como não foi possível, mudei a rotina de leitura. Li até umas duas horas da manhã, mas o sono me pegou no final e ficaram faltando umas dez páginas para terminar o capítulo, que deixei para o dia seguinte. 

Posso dizer que o capítulo foi um dos mais "extravagantes" até agora. Eu imagino a recepção dos leitores e da crítica daquela época em relação aos usos e costumes vigentes nos anos vinte do século XX, num mundo conservador e orientado por crenças religiosas.

O capítulo 13 traz como referência ao clássico Odisseia a personagem Nausícaa, a filha de Alcínoo e Arete, reis dos Feácios. Na odisseia homérica, a jovem princesa está com suas criadas na praia quando é surpreendida por Ulisses, que havia naufragado ali, vindo de sua longa permanência na ilha de Calipso. Nausícaa ajuda o herói, levando-o até seus pais no palácio real.

Na leitura do capítulo, vamos entender por que Joyce fez referência a Nausícaa e Ulisses (Odisseu), o nosso Leopolp Bloom irlandês.

Atenção: informo que o comentário abaixo terá spoiler do capítulo.

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JOYCE ME SURPREENDEU

O capítulo começa com moças e crianças brincando na praia ao anoitecer.

"Gerty MacDowell, que estava sentada junto de suas companheiras, absorta em seus pensamentos, olhar perdido longe na distância, era com toda a justiça o mais belo espécime da cativante feminilidade irlandesa que se pode desejar. Era declarada linda por todos que a conheciam muito embora..." (p. 553)

Joyce mescla no capítulo muita alternância de narrador. Ora é o narrador onisciente que descreve personagens e seus sentimentos, ora é o fluxo de consciência dos personagens que nos deixam ver o que eles pensam.

A jovem Gerty pensa na vida, no rapaz com quem flerta e gostaria de namorar, pensa nas decepções, sonha com amores e com o futuro na companhia de um grande amor, talvez alguém mais maduro e viril que um jovem na idade dela.

"Seu ideal de admirador não era algum príncipe encantado que depusesse um raro e fantástico amor a seus pés mas sim um homem viril com um rosto forte e tranquilo que não houvesse encontrado o seu ideal, talvez com os cabelos levemente marcados por fios grisalhos, e que a compreenderia, tomá-la-ia em seus braços protetores, a apertaria contra si com toda a força de sua profunda natureza passional para consolá-la com um beijo bem comprido. Seria o paraíso. Por alguém assim ela suspira neste ameno crepúsculo de verão." (p. 558)

Nas lembranças da jovem Gerty, o autor nos fala de novo sobre a "praga da Irlanda", a bebida alcoólica, e a jovem se lamenta pelo fato do pai não ter conseguido superar o vício do álcool. Ela se lembra inclusive das violências domésticas que sua mãe sofria. (p. 562)

Na cena da praia há um homem sentado adiante. Durante todo o tempo em que as moças e as crianças estão lá, ele também está. Com o passar do tempo, vemos que a jovem está flertando ou se mostrando para o homem, que é bem mais velho que ela. A jovem Gerty sonha longe, imagina o cara sendo o herói viril que a salvaria de seu mundo.

A cena retrata a referência à personagem Nausícaa e o herói Ulisses. Só que Joyce faz de seu personagem o oposto do de Homero, seu herói é um anti-herói, cheio de vícios humanos e sem nobreza alguma.

"Ele olhava com tamanha intensidade, tão imóvel e ele a viu chutar a bola e talvez pudesse ver as brilhantes fivelas de aço de seus sapatos se ela os balançasse assim pensativa com os dedos apontando pra baixo (...) Ele era o que importava e havia alegria em seu rosto porque o desejava por ter instintivamente sentido que ele era diferente de todos. O coração da meninamoça corria todo para ele, seu marido ideal, porque ela soube de pronto que era ele..." (p. 567)

E ao final de toda a cena entre a "meninamoça" e o homem "viril" na praia, a surpresa para o leitor:

"(...) Ah! Ela lançou-lhe um olhar no que se dobrou rápida para a frente, um patético olharzinho de protesto pio, de tímida censura sob o qual ele corou como uma moça. Ele estava recostado à rocha atrás de si. Leopold Bloom (pois é ele) está calado, de cabeça baixa, diante desses jovens olhos cândidos. Mas que monstro havia sido! De novo com isso! Uma alma pura imaculada o havia invocado e, desgraçado que era, como respondera? Um completo canalha! Logo ele! Mas havia um infinito sortimento de misericórdia naqueles olhos, também para ele uma palavra de perdão mesmo tendo ele errado, pecado e se extraviado. As mocinhas têm de contar? Não, mil vezes não. Era o segredinho deles, só deles, sós no crepúsculo ocultante e não havia quem soubesse ou contasse senão pelo pequeno morcego que voava tão delicado pelo entardecer para lá e para cá e morceguinho não fala." (p. 579)

A SURPRESA MAIOR DO CAPÍTULO

Instantes depois da cena obscena anterior, do "viril" adulto Leopold Bloom se satisfazendo atrás da rocha ao flertar com a "meninamoça" Gerty, vem a surpresa maior: Joyce nos conta que a jovem na praia é "coxa" e o pior é o comportamento de Bloom ao perceber isso: 

"(...) Ela caminhava com certa dignidade tranquila característica sua mas com cuidado e muito lentamente porque Gerty MacDowell era...

Bota apertada? Não. Ela é coxa! Oh!

O Senhor Bloom ficou olhando enquanto ela saía coxeando. Coitadinha! Por isso que ela ficou largada e as outras saíram correndo. Achei que tinha alguma coisa errada pelo jeito dela. A bela desprezada. Um defeito é dez vezes pior em uma mulher. Mas ficam educadas. Que bom que eu não sabia quando ela estava se exibindo. Diabinha assanhada mesmo assim. Não ia me importar. Curiosidade como uma freira ou uma negra ou uma moça de óculos. Aquela de olhinho apertado é delicada. Perto das regras, imagino, ficam todas sensíveis." (p. 580)

O BLOOM É O NOSSO BRÁS CUBAS

Cara, Machado nos apresentou um personagem o mais canalha possível, típico representante das elites coloniais do século XIX, meio século antes de Joyce nos apresentar o Bloom, que veremos ainda no mesmo capítulo ser um canalha de marca maior, que tem fetiches por meninas e jovenzinhas (p. 593). O personagem de Joyce é o Humbert Humbert, de Vladimir Nabokov (Lolita, de 1955).

A Eugênia de Brás Cubas

"O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma." (ASSIS, 2018, p. 109)

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COMENTÁRIO FINAL

É isso! Mais um capítulo do clássico de Joyce. Minha releitura está sendo infinitamente melhor que a primeira leitura, feita duas décadas atrás.

Amig@s leitores, imaginem o quanto o nosso Machado de Assis foi inovador, revolucionário com sua obra literária. Nosso Bruxo do Cosme Velho é um dos maiores escritores da literatura mundial. Seu alcance nunca foi maior por ser ele um autor de língua portuguesa, de um país colonial.

Confesso a vocês que esta postagem deu trabalho! Gastei um bom tempo para produzir o texto como queria.

No entanto, estive pensando a respeito das mais de duas mil postagens que tenho neste blog: elas têm que ser bem-feitas! Caso contrário, não teriam sentido. 

Diariamente, algumas dezenas de pessoas chegam aos meus textos procurando alguma informação ou conhecimento. Fazer textos bem-feitos e compartilhar conhecimento ou opiniões é uma questão de respeito com os leitores e com a verdade.

Abraços,

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. São Paulo: Panda Books, 2018.

JOYCE, James. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.


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