quinta-feira, 28 de abril de 2022

Me senti meio Montag



Refeição Cultural

Ontem, enquanto rasgava papéis para jogar fora, me senti um pouco como o Montag, personagem do clássico romance distópico de Ray Bradbury, Fahrenheit 451. Eu não estava queimando papéis e livros, mas é quase como se estivesse. 

Estava me desfazendo de volumes e mais volumes de papéis e revistas e apostilas e encadernações de encontros, congressos, cursos de formação, anotações sobre organização dos trabalhadores etc. Rasgando história... Mesmo não queimando os papéis à temperatura de 451 graus fahrenheit, estava apagando a história.

A questão de picotar um pouco os papéis antes de jogar fora é um hábito ou cuidado que acabei adquirindo por causa da história das lutas de classes. Quando cheguei ao movimento sindical no início dos anos dois mil, passei a aprender sobre a nossa história. E nossa história de lutas contra os donos do poder não é moleza não, ela é feita de sangue, suor e lágrimas. Não há bondade nem solidariedade por parte de capitalistas e da casa-grande brasileira e o aparato estatal de forças repressivas contra o povo.

Nossos inimigos, os donos do poder, sempre tiveram todos os meios e com isso também têm as forças de repressão contra a organização dos trabalhadores. Aprendi que os dirigentes sindicais eram monitorados pelos agentes da ditadura instalada nos anos sessenta. Também são monitorados sempre pela burguesia, ontem, hoje e sempre. Na ditadura, tinha até infiltrado em reuniões com poucas pessoas dentro do sindicato. Não se podia deixar um papel ou anotação em cima de uma mesa.

Assim aprendi quando convivi com os militantes mais velhos. Isso não é paranoia ou teoria da conspiração. Os agentes e sistemas dos donos do capital usam dessas coisas para controlar e eliminar seus inimigos, nós que nos opomos ao capitalismo e aos desgraçados do 1%.

Enfim, hoje nada disso tem mais a relevância que tinha antes. Por que nossos inimigos teriam interesse em papéis velhos do movimento de luta dos trabalhadores se eles têm todas as nossas informações dadas por nós ou roubadas por hackers? Sem contar que não se precisa de documento algum que possa expor as estratégias e táticas do nosso lado da classe porque o mundo é o da pós-verdade, o das mentiras (fake news) que se impõem por aqueles que detêm as melhores ferramentas de divulgação e por quem tem recursos para tal (os donos do poder, porque eles têm os recursos financeiros).

Por fim, acabei revendo ontem à noite o filme de François Truffaut, de 1966, baseado na obra de Ray Bradbury. Aliás, vi o filme porque outra pilha gigante que tenho é de filmes e documentários antigos, em DVD, VHS etc. Todas essas mídias são daquelas que tenho que ver o que fazer com tudo isso porque não tem sentido guardar zilhões de mídias assim. Esse filme eu não jogaria fora porque é algo que evidentemente se pode procurar pra ver a qualquer momento. Eu já pago duas empresas de streaming e nunca se tem o que se procura nelas. O livro de Bradbury li em 2011, depois dos 40 anos de idade.

Ah, William, por que você não doa suas pilhas de papéis, revistas, apostilas, cadernos, etc, etc? Porque algumas pessoas que consultei têm a opinião que hoje não se tem mais interesse por materiais físicos. Alguns dizem que tem tudo na internet, outros dizem pra digitalizar e assim fui ouvindo algumas pessoas e decidi que antes que eu morra e alguém tenha que jogar tudo fora pra desocupar espaço, eu mesmo que mexa nessa tralha toda e separe alguma coisa pra guardar pra jogarem fora depois e jogo fora a maior parte eu mesmo.

William


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