quinta-feira, 28 de março de 2024

Diário e reflexões



Refeição Cultural

Osasco, 28 de março de 2024. Quinta-feira.


A ÉTICA E A LUTA POR DIREITOS UNIVERSAIS

"Os direitos não são dados da natureza, e sim uma criação humana. Para existirem, devem ser defendidos de ataques." (Pedro Serrano, em CartaCapital, nº 1303)


Direitos não são coisas do mundo natural. São criações do animal humano. A gente não para pra pensar numa coisa até que alguém nos faça pensar a respeito dela.

A frase do advogado e professor de Direito Constitucional Pedro Serrano, que abre esta reflexão, é essencial para alguém que se pensa de esquerda e humanista! É um alerta para que as pessoas entendam que um direito só existe por ter sido criado antes e só existirá se for defendido pelas gerações seguintes, pois a realidade material e histórica é feita a cada dia, a cada dia.

No mundo animal não existe o direito "gazélico" à vida em relação aos predadores da espécie. Não existe o direito "pombiano" à vida em relação aos gaviões e carcarás. O direito humano à vida é uma criação da espécie humana após milênios de constituição e organização social. E nenhum direito é direito adquirido em certo sentido, porque se não houver luta para a manutenção do direito, vêm novos "predadores" da própria espécie humana e nhac! (nos devoram)

E eu acrescento uma ideia que tenho clareza a cada dia que vivo: a única certeza que temos é que tudo muda o tempo todo, a mudança pode até não ser percebida por causa da temporalidade de algumas mudanças, mas tudo muda... Lembram do ensinamento quando estudantes? Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma (Lavoisier)... pois é! É bem isso!

Pensando no conceito do direito a partir da explicação de Pedro Serrano, me lembrei também da palestra de Frei Betto, em Havana, semanas atrás, quando ele explicava conceitos a respeito de moral e ética, e em certo momento ele citou um conceito chamado de "ignorância invencível". 

De forma simples, o que entendi foi que a moral traz questões de cultura e por isso pode variar de acordo com épocas e locais. A ética é um esforço para se universalizar direitos humanos básicos. E a ignorância invencível tem alguma relação com a dificuldade de se alterar uma questão moral que talvez se oponha a questões de ética ou direitos universais que se constroem ao longo do tempo por ser a moral mais prevalente na cultura local.

Enfim, essas reflexões sobre questões morais e éticas, e sobre direitos, se não sensibilizarem as leitoras e leitores do blog, pelo menos já serviram para tocarem a mim mesmo, enquanto pensei sobre elas. 

Como um ser político politizado no movimento sindical, pois fui político que se politizou na prática cotidiana ao longo de uma vida na categoria bancária, ainda hoje sofro as agonias das decisões pessoais sobre o que fazer a cada dia que acordo, mesmo não pertencendo mais aos quadros do movimento ao qual militei.

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A QUESTÃO DO PERTENCIMENTO ÀS DIVERSAS COMUNIDADES IMAGINADAS PELOS SERES HUMANOS

Ouvi a entrevista de Roberto Requião ao Blog do Esmael falando sobre sua saída do Partido dos Trabalhadores, as razões e os porquês. O político paranaense nunca foi um militante histórico do PT, é claro, mas sempre foi um político elogiável, de uma vida pública exemplar, assim como o nosso companheiro Lula, esse sim figura histórica do PT. As críticas que Requião faz ao partido são críticas que muitos de nós, militantes e filiados, fazemos nos debates internos do dia a dia.

Eu vivencio um conflito pessoal já faz algum tempo sobre a questão do pertencimento ou não a determinadas comunidades humanas que de uma forma ou outra me vinculei ao longo de minha existência. A denominação "Comunidades Imaginadas" estou emprestando de Benedict Anderson, que tem um livro com esse nome e com um conteúdo impactante. Avalio que o conceito de Anderson mais as explicações do neurocientista Miguel Nicolelis sobre o cérebro humano preenchem meu entendimento sobre o que nós somos. Tenho isso muito mais claro hoje.

Ao olhar para trás, faço uma leitura simples de minha vida pregressa. Poderia dizer que a minha conduta moral fui adquirindo na infância e adolescência a partir da família e das comunidades onde me criei. Para o bem e para o mal. A moral dos ambientes onde me aculturei prevaleceu até bem depois dos trinta anos de idade. Foi dessa fase da vida que adquiri valores que tinha à época como intolerâncias e preconceitos. Até pena de morte eu defendia... o poder da cultura e da moral dos ambientes onde me aculturei eram grandes: ideologias.

Dos trinta anos adiante, poderia dizer que tive acesso a uma cultura da ética, foi o período no qual virei dirigente eleito pelos colegas bancários para representá-los numa grande organização social, uma comunidade imaginada pela classe trabalhadora: um sindicato. Foram anos aprendendo política para que a ética prevalecesse sobre valores morais que eu trazia comigo: questões de gênero que eu desconhecia, do direito à vida, respeitar as visões de mundo dos outros, questões de políticas afirmativas etc. 

Seria uma negação falsa tanto do Sindicato e suas diretorias quanto minha se tentássemos esconder que eu sou fruto da formação política do nosso sindicato de bancários, bem como negar que eu tenha deixado minhas contribuições desde 1988 às lutas e conquistas empreendidas por nossa entidade de classe. Sou capaz de lembrar de diversos momentos decisivos em décadas de lutas da categoria, principalmente na corporação dos funcionários do Banco do Brasil, nos quais tive um papel que contribuiu para a reflexão coletiva e o resultado do processo de luta.

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A CASSI, A LUTA POR DIREITOS E A ÉTICA

Quando cheguei eleito pelos trabalhadores da ativa e pelos aposentad@s à diretoria de saúde da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil levei algumas semanas para compreender qual seria o meu papel por 4 anos à frente daquela autogestão em saúde. O planejamento estratégico da diretoria, que fizemos em agosto de 2014, foi o meu suporte para enfrentar os desafios que teria pelo caminho.

Eu ocupava uma posição de liderança na comunidade BB em nível nacional. Saí da coordenação da comissão sindical que negociava com o banco, governo e sindicatos para ser gestor da área de saúde de nossa operadora Cassi. De sindicalista generalista em direitos da comunidade BB e do mundo do trabalho, precisei estudar ininterruptamente as questões técnicas do mundo da gestão em saúde. E fiz isso por 4 anos, com jornadas de trabalho duplas e triplas em relação à da categoria bancária. Quase não dormi durante o mandato (*vagabundo?).

Eu tinha objetivos políticos a cumprir definidos pelos sindicatos que me apoiavam e tinha objetivos técnicos e políticos a cumprir pelo planejamento estratégico de nossa diretoria de saúde. 

Pelo lado dos trabalhadores defender a manutenção dos direitos em saúde, não permitindo a quebra da solidariedade no custeio do plano - o que significava evitar o desejo do patrão de impor tabelas de mensalidades maiores por idade e cobrar por dependentes -; não permitir a redução da participação dos associados na gestão da operadora e lutar para que o patrocinador assumisse a sua parte na responsabilidade de injetar novos recursos para reequilibrar as contas da operadora de saúde, que por décadas enfrenta déficits recorrentes a cada período de tempo.

Pelo lado da gestão da diretoria de saúde, eu tinha uma missão desafiadora: apresentar a Cassi e seu modelo de saúde aos atores envolvidos (stakeholders), pois a autogestão era uma desconhecida de seus participantes em nível nacional: assistidos e suas representações, o banco e seus gestores no país, e até os funcionários da Cassi teriam que atuar numa sintonia melhor para proteger e fortalecer a Caixa de Assistência na sua dura missão de usar os recursos para comprar no mercado privado soluções em saúde, sendo o mercado o consumidor de todo o recurso dos associados da operadora. Interesses antagônicos entre Cassi e rede privada de saúde. A Cassi focada em saúde e a rede privada focada em doenças e o lucro que elas geram aos capitalistas. E ainda tinha a judicialização crescente, por incompreensão e por estímulo externo à Cassi.

Além dessa missão de aproximar stakeholders e colocá-los nos mesmos objetivos da Caixa de Assistência, como diretor do modelo assistencial de Estratégia de Saúde da Família (ESF), forma de Atenção Primária (APS) definida como a ideal na autogestão desde 2001, através de uma estrutura própria de atendimento primário - CliniCassi - e dali para um uso mais adequado da rede credenciada, como diretor responsável eu teria que desenvolver estudos que de alguma forma comprovassem a eficiência do modelo para a direção do banco e do movimento de representação dos associados. Por mais que tenha sido difícil por dificuldades técnicas, nós cumprimos essa missão, com o apoio do corpo funcional da Cassi, e comprovamos a eficiência do modelo.

OBJETIVOS DO PLANEJAMENTO FORAM ALCANÇADOS - Enquanto fui gestor eleito (2014-2018) a solidariedade foi preservada no custeio estatutário, nenhum direito foi retirado dos associados; a Cassi teve uma gestão participativa com 54 conferências de saúde presenciais (estive em 53 delas); estive em dezenas de participações da direção em fóruns democráticos de saúde; a partir de minha busca ao movimento sindical em dezembro de 2014, construímos uma mesa nacional permanente de negociações com o patrocinador para buscar soluções sobre o custeio da Cassi; desenvolvemos estudos técnicos que comprovaram a eficiência da ESF em participantes vinculados ao modelo (cerca de 50 mil assistidos, a maioria com mais comorbidades e que, mesmo assim, usavam melhor a rede credenciada e os recursos da operadora); criamos formas de comunicação importantes como um boletim mensal e mais de 600 matérias em blog que aproximaram stakeholders da direção da Cassi.

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E A ÉTICA? NA POLÍTICA, VALE TUDO?

*Vagabundo? Essa parte das reflexões resume um pouco do subtítulo que trata dos temas Cassi, da luta por direitos e da questão da ética. Mesmo sem discorrer a respeito, é possível que as leitoras e leitores imaginem os percalços que precisei superar para realizar esses objetivos do mandato na autogestão dos trabalhadores do BB.

A cada mês de trabalho, tivemos que superar dúvidas e desconfianças normais do mundo da gestão em saúde e da política, questionamentos por parte dos stakeholders, e também acusações levianas, mentirosas (fake news) que foram usadas como estratégia para impedir o nosso trabalho na defesa daqueles objetivos que enumerei acima.

Poucos meses depois de iniciado o nosso trabalho, duas ex-diretoras da Cassi, de um grupo político à direita no movimento da comunidade BB, publicaram a 1ª agressão a mim insinuando que eu não trabalhava... 

Enquanto eu estudava centenas de textos mensais sobre a Cassi que deliberávamos semanalmente, enquanto eu fazia a gestão das unidades Cassi de minha responsabilidade nos Estados, enquanto eu visitava a direção do banco para construir uma agenda de saúde para os funcionários e enquanto eu diminuía as tensões entre usuários e suas representações e a Cassi, por esta ter dificuldades de rede credenciada e outras realidades de operadoras de saúde - inclusive palestrando em conferências de saúde -, aquelas senhoras de um importante grupo político de direita faziam campanhas nas redes sociais da comunidade dizendo que eu não trabalhava... E minha agenda foi pública do 1º ao último dia de gestão na diretoria de saúde.

Depois, ao final do mandato, inventaram um processo administrativo contra mim baseado em "carta anônima" sem pé nem cabeça, me acusando das mesmas fake news que circulavam nas redes daquele segmento à direita, de que eu não trabalhava blá blá blá. Foram meses de assédio e humilhações em silêncio (dezembro de 2017 a maio de 2018). Nossa defesa desconstruiu todas aquelas mentiras. O processo de lawfare foi usado contra nós nas eleições daquele momento. Os objetivos dos adversários foram alcançados em parte. O efeito político deu certo. O efeito jurídico e civil não deu, pois o processo foi arquivado por não ter prova alguma daquelas mentiras.  

Pois é, uma daquelas senhoras que inventou mentiras a meu respeito acaba de ser eleita gestora da Cassi de novo, com o apoio do meu sindicato de base. A política tem dessas coisas. O meu sindicato nunca mais me chamou para conversar sobre a Caixa de Assistência, autogestão que conheço um pouco mais que a média das pessoas. Não fui chamado sequer como um associado do Sindicato, em tempos nos quais a sindicalização está cada dia menor no mundo sindical. Sobre a Cassi eu não poderia desejar algo diferente que sucesso na gestão porque isso é bom para todos nós da comunidade Banco do Brasil.

Como fui politizado pelo sindicato ao longo de décadas, desde 1988 como trabalhador sindicalizado do Unibanco e por quase trinta anos de trabalhador sindicalizado do Banco do Brasil, tenho a consciência tranquila do papel que desempenhei na defesa dos direitos conquistados pela nossa comunidade e por nossa categoria profissional por cerca de 1/3 da existência do sindicato, que completou cem anos recentemente. 

Como disse na reflexão de abertura, foi no movimento sindical que adquiri ensinamentos éticos mais universais que suplantaram alguns valores morais que tinha de forma equivocada como adulto até uns 30 anos de idade. Sou grato por essa oportunidade que a vida me deu.

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A QUESTÃO DO PERTENCIMENTO A ALGUMA COISA SEGUE MARTELANDO NA MINHA CABEÇA

Experimento sentimentos que não me lembrava mais, a falta de pertencimento a grupos ou comunidades criadas pelos humanos. 

Não que eu não sinta afinidades a determinados grupos ou que não esteja inclusive ligado a eles formalmente. Sou filiado ao PT, sindicalizado e associado a diversas entidades da comunidade BB. 

Voto no PT desde que tirei meu título de eleitor em 1987. Mas a filiação ao partido foi só em 2002 para fortalecer o governo Lula recém-eleito. Meu pertencimento ao movimento sempre foi sindical, bem mais que partidário. 

Com o passar dos anos de representação sindical e com os estudos fui me politizando e me entendendo como alguém de esquerda, como uma pessoa que pensa a sociedade livre do capitalismo e da exploração dos humanos por outros humanos. Essa é minha condição, sou uma pessoa de esquerda. 

Desde que meus conhecimentos praticamente adquiridos em uma vida de representação política passaram a ser desconsiderados pelo meu sindicato de base, berço de minha formação política, me peguei meio perdido e sem rumo por ter saído do movimento da forma mais triste que alguém poderia imaginar, sofrendo um processo injusto de lawfare e assédio moral, sem poder escrever e compartilhar com a base social que me conhecia o que estava acontecendo e antecipando minha saída do banco público para o qual dediquei o melhor de minha vida adulta de forma pouco festiva como costuma acontecer com alguém após uma vida dedicada à empresa.

Preciso virar essa página de minha vida para poder seguir mais um tempinho. Não consegui ainda. Percebo isso. Mas tenho que me libertar desse sentimento ruim, amargo, que me impede de respirar bem sem achar que o mundo é injusto, que o mundo é uma merda, que a política é uma merda, porque minha razão e minha formação ética me fazem crer que a política ainda é a salvação da humanidade, junto com a educação.

Normalmente faço meus textos em duas ou três horas. Esse começou na madrugada e só foi terminar no fim do dia. Não é fácil escolher as palavras para ser o mais cuidadoso possível em não ofender ninguém, mesmo citando detratores que me prejudicaram e se deram bem com isso. Política tem disso, como sabemos.

Chega por hoje. Registro feito. Fecho com as palavras que abriram o texto. Direitos não são dados da natureza. São criações humanas. E devem ser defendidos. História e educação são fundamentais para as novas gerações, inclusive de sindicalistas e militantes de esquerda.

Se fosse fácil, eu já teria me desvinculado dessas décadas de minha história de vida com o sindicato. Não é fácil. 

Tem um episódio marcante da série "Arquivo X" que nunca esqueci. O agente John Dogget foi sequestrado e apagaram a memória dele. Ao final da trama, ele vai tirar satisfação com o bruxo que fez isso. O cara disse que estava fazendo um favor a ele, pois assim ele deixava de sentir a dor que sentia pela morte violenta do filho dele. Dogget olha bem nos olhos do bruxo e diz que ele não tinha o direito de fazer isso, porque aquela lembrança era triste e o fazia sofrer, mas a lembrança era dele! Era a vida dele!

Talvez seja por isso que eu não consigo me desligar da minha vida sindical. Minha história no movimento sindical bancário brasileiro é um direito meu, é a minha vida também.

William


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