Frei Gilvander está ao centro, entre companheiras e companheiros em Havana, Cuba. |
Apresentação do blog:
Conheci Frei Gilvander Moreira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em uma viagem que fizemos a Cuba no início deste ano. Uma figura extraordinária, um ser humano que ilumina os ambientes por onde passa e nos inspira com seu jeito descontraído e engajado nas causas populares.
Este artigo sobre analfabetismo religioso me deixou bastante reflexivo e por isso pedi a ele que me permitisse compartilhar com as leitoras e leitores do blog as suas reflexões.
Eu fui muito religioso até perto dos trinta anos de idade. Sei por conhecimento de vida a importância e o poder das religiosidades e da fé das pessoas no cotidiano de vida e nas decisões que as pessoas tomam. Não tenho mais visão religiosa da existência, mas sei o poder da fé, e tenho respeito pela religiosidade das pessoas.
Eu avalio que dificilmente alguém consiga imaginar o poder da fé se nunca tiver tido concepção religiosa da vida. E por isso a gente precisa sempre fazer aquele exercício de se colocar na condição da outra pessoa, se não para concordar com ela, ao menos para tentar entender por que as pessoas agem como agem.
Leiam o artigo didático do Frei Gilvander e reflitam.
William Mendes
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Analfabetismo religioso empurra o povo para a extrema
direita
Por frei Gilvander Moreira¹
Em Contagem, MG, de 2 a 4 de agosto de 2024, aconteceu o VII
Encontro Mineiro de Fé e Política, melhor dizendo, de Fé Política, com
participação de lideranças religiosas e populares de muitos municípios do
estado de Minas Gerais. Foi muito bom. Eis uma questão central discutida no
Encontro: a questão religiosa no Brasil, especificamente, e de forma geral em
todo mundo, se tornou uma brutal questão política que não pode mais ser
ignorada, sob o risco de a extrema direita retomar em breve o controle do Poder
Executivo federal, nos municípios e nos estados, e abocanhar também o Poder
Legislativo nos municípios, nos estados e ampliar ainda mais sua presença
hegemônica na Câmara Federal e no Senado.
Se a parte das Igrejas que buscam ser libertadoras, os
Movimentos Sociais Populares, os Partidos Políticos de Esquerda e as pessoas
cidadãs, enfim, a militância que luta pela superação da barbárie cada vez mais
brutal nos dias de hoje perpetrada pelos capitalistas, não levar a sério os
desafios que a Questão Religiosa está nos impondo, estaremos acelerando as
mudanças climáticas com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais, a
“queda do céu” na linguagem do xamã ianomâmi Davi Kopenawa, o Apocalipse final
da humanidade será adiantado com muita velocidade, pois o negacionismo e o
egocentrismo da extrema direita darão as últimas punhaladas no planeta Terra,
que já está quase todo despelado e na UTI por estar sendo sacrificado no altar
do mercado idolatrado, puxado pelo ogronegócio que mata indiscriminadamente de
muitas formas.
Atualmente a maioria hegemônica dos mais de 26 mil padres e
milhares de pastores (neo)pentecostais existentes no Brasil seguem o paradigma
religioso fundamentalista, espiritualizante e moralista, o que na prática nega
a encarnação de Deus na história, ignora a dimensão social do Evangelho do
mestre Galileu e vira as costas para o ensinamento revolucionário e o
compromisso de Jesus Cristo com as pessoas violentadas pelo sistema escravocrata
do império romano, pelos saduceus (os ricos piedosos da época) e exploradas
pelo legalismo do sinédrio dominado pelos saduceus.
Eis uma pergunta crucial: Por que e como se construiu este
contexto religioso fundamentalista, espiritualista e moralista, que na prática
nega os avanços promovidos pelo Concílio Vaticano II, de 1962 a 1965, sob a
liderança dos papas João XXIII e Paulo VI, e ridiculariza a Opção pelos Pobres
batizada pelos bispos latino-americanos em Medelín, na Colômbia, em 1968, confirmada
em Puebla, no México, em 1979, consagrada em Santo Domingos, em 1992, e
referendada em Aparecida, em 2007?
Também no seio das Igrejas evangélicas, mesmo as históricas,
o Conselho Mundial de Igrejas, com sua orientação aberta e na direção da Paz,
Justiça e cuidado com a criação, tem sido ignorado e combatido pelos setores
mais espiritualistas das Igrejas.
Estamos vivendo atualmente no Brasil, na América
afrolatíndia, na África e no mundo capitalista ocidental as consequências
brutais de dois projetos político-religiosos muito bem arquitetados. Um que
está muito bem descrito no livro Os Demônios descem do Norte, de Délcio
Monteiro de Lima, 1ª edição de 1987. Quando a Teologia da Libertação, as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais Sociais estavam de fato
sendo sementeiras de Movimentos Sociais Populares e contribuindo decisivamente
na construção do Partido dos Trabalhadores (PT, fundado em 10/02/1980), da
Central Única dos Trabalhadores (CUT, fundada em 28/08/1983), do sindicalismo
combativo no meio do campesinato e nas fábricas nas grandes cidades,
contribuindo na criação do Movimento dos Trabalhados Rurais Sem Terra (MST,
criado em janeiro de 1984), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI, criado em
1971), fortalecendo a luta por direitos dos Povos Originários (Povos
Indígenas), a Comissão Pastoral da Terra (CPT, criada em junho de 1975),
animando e assessorando a criação de Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs)
combativos e oposição sindical aguerrida na luta pela terra e Reforma Agrária,
em contexto de efervescência de milhares de Movimentos Sociais Populares
lutando por direitos dos povos nas periferias das cidades e no campo
brasileiro, os ideólogos do imperialismo dos Estados Unidos fizeram análise da
conjuntura internacional e alertaram o Governo dos EUA e a elite do capitalismo
mundial que se a Teologia da Libertação com a prática das dinâmicas CEBs, em
perspectiva libertadora, continuasse se desenvolvendo no Brasil e na América
Latina, os povos colonizados da América Afrolatíndia estariam gestando sua
emancipação e deixariam de ser colônias, iriam parar de pagar dívida externa e
iriam frear a truculência das empresas transnacionais que sufocavam as empresas
nacionais.
Os ideólogos recomendaram aos chefes do imperialismo
estadunidense a exportação da Renovação Carismática para o Brasil e América
Afrolatíndia. Nos Estados Unidos, assim como na Europa, os movimentos de
orientação pentecostal ou carismática faziam uma leitura espiritualista da fé
pouco ligada à vida cotidiana e aos desafios sociais e políticos, mas não eram
em si parte de uma espécie de Cruzada de direita católica ou protestante. Ao
ser exportado para o Brasil com apoio de muitos enriquecidos da elite econômica
brasileira, se instalaram na igreja católica e nas igrejas evangélicas, quando
as chamadas igrejas eletrônicas já ensaiavam o projeto “pequenas igrejas,
grandes negócios”, com Davi Miranda, na Igreja Deus é Amor, Edir Macedo, na
Igreja Universal do Reino de Deus, e uma espiral de igrejas pentecostais ou
neopentecostais.
Este modelo fundamentalista, espiritualista e moralista de
igreja está funcionando há mais de 40 anos a todo vapor e estilhaçando os
esforços de lutas coletivas por direitos no Brasil e na América Afrolatíndia.
Há teses de doutorado que demonstram o estrago que estas igrejas
(neo)pentecostais têm feito no meio dos Povos Indígenas, Quilombolas e em
Assentamentos de reforma agrária, por exemplo. Ao primar pela relação eu-deus,
“cada um por si”, individualização da bênção de Deus, o espírito e a mística
que anima lutar em conjunto são desvalorizados. Assim, fazem o jogo que
interessa aos capitalistas, pois quanto mais individualizadas e isoladas as
pessoas, mais os capitalistas exploram a todos/as. Atrair o povo para o interno
das igrejas e propor cultos várias vezes por semana é uma forma de impedir a
participação do povo sofrido nas lutas coletivas por direitos. Muitos alegam “não
posso ir participar de uma reunião, de uma assembleia ou de uma luta concreta
por direitos, porque tenho que ir para o culto na minha igreja.”
Outro projeto político-religioso, do qual estamos sofrendo
as consequências dramáticas aconteceu nos 34 anos de pontificados de João Paulo
II e Bento XVI, de 16/10/1978 a 28/02/2013, que foram dois papas que incensaram
e fomentaram aos quatro ventos os movimentos religiosos espiritualistas,
moralistas, fundamentalistas, tais como Legionários de Cristo, Comunhão e
Libertação, Renovação Carismática, que desaguaram na aparição de um grande
número de “Novas Comunidades” com estilo medieval e Institutos bancados
economicamente por empresários e que se dedicam a fazer apenas caridade aos
empobrecidos. Criaram as chamadas “TVs católicas”, como a TV Rede Vida e a TV
Canção Nova, que tiveram apoio econômico do banqueiro José Eduardo Andrade Viera,
dono do Banco Bamerindus, que chegou a ter mil agências no Brasil.
Papas conservadores nomeavam padres conservadores para serem
bispos, que escolhiam padres conservadores para serem reitores de seminários,
que acolhem jovens vocacionados que vêm de famílias integrantes de movimentos
espiritualistas e fundamentalistas. Assim, em efeito dominó se disseminou o
paradigma religioso fundamentalista, espiritualista e moralista na igreja
católica e de modo parecido nas igrejas (neo)pentecostais.
Nesta aliança não confessada entre o imperialismo dos EUA,
os papas João Paulo II e Bento XVI e os grandes bispos das igrejas
(neo)pentecostais, o povo chicoteado diariamente pela horripilante injustiça
socioeconômica foi empurrado para os braços da extrema direita política, os
fascistas. Isto pavimentou o caminho para a eleição de um presidente que “só
sabia matar”, não tinha empatia pelo povo que sobrevivia asfixiado pelo
capitalismo e pela pandemia da Covid-19.
Os espertalhões da política profissional asquerosa sabem que
a história demonstra que o fenômeno religioso existe e não pode ser ignorado, é
ambíguo e “feliz” quem se apropria dele e o canaliza para realizar seus
interesses. Como Mussolini e Hitler, que se diziam religiosos e apregoavam “Deus
acima de tudo…”, os fascistas no Brasil abocanharam a dimensão religiosa
das pessoas e coloram na esquerda a pecha de ser “comunista” e “ateia”. Lutar
por direitos e pelo bem comum deixou de ser visto como algo ensinado por Jesus
Cristo e que se encontra no coração de todas as grandes tradições espirituais
da humanidade: a compaixão no Budismo, a misericórdia no Islamismo e o senso de
justiça na espiritualidade afrodescendente, hoje, tão frequentemente vítima de
discriminações e violências do racismo religioso.
A esquerda tradicional ou clássica deixou de ser a
referência primordial para o povo empobrecido, porque via de regra ignora a
dimensão religiosa das pessoas, considerando “religião como ópio do povo” e
justifica a luta por direitos apenas com argumentos filosóficos e sociológicos
das ciências humanas, mas o povo simples se rege pelas pré-compreensões
religiosas que definem grande parte das suas opções na vida.
Eis dois exemplos concretos: Nas cinco Marchas que fizemos
da Ocupação Dandara, na região norte de Belo Horizonte, 28 km a pé até o centro
da capital mineira, observei um fato interessante ao animar a Marcha, ao lado
do carro do som no microfone; enquanto o povo marchava, mais de 1000 pessoas,
eu ia chamando as lideranças das Brigadas Populares, advogados populares,
militantes da Rede de Apoio, para se revezar no microfone e animar a caminhada.
Enquanto falavam os militantes dos Movimentos Sociais Populares, a argumentação
para animar a Marcha de luta por terra e moradia adequada era exclusivamente
sociológica, filosófica e jurídica. Diziam “nós estamos na luta por moradia,
porque está escrito na Constituição de 1988 que a propriedade tem que cumprir a
função social, que temos direito à terra, à moradia e a muitos outros
direitos.” Após todas as lideranças falarem no microfone, eu disse: “Povo
de luta, irmãos e irmãos, quem quiser usar a palavra aqui no microfone, venha
pra cá, por favor.” As pessoas da Ocupação Dandara começaram a falar e o que
mais foi ecoado foram hinos religiosos, orações pedindo para Deus impedir o
despejo, desabafo tipo “Deus, não aguento mais a cruz do aluguel, tenho quatro
filhos para criar e meu companheiro está preso. Deus, socorre-nos! Senhor Deus,
toca no coração do juiz para não autorizar o despejo. Senhor, abranda o coração
do prefeito”.
Em uma Assembleia com o Povo na Ocupação Rosa Leão, na
Izidora, uma pastora pegou o microfone e começou a cantar: “Quando nós
aqui ocupamos, o Senhor já estava na ocupação. Quando nós aqui chegamos, o
Senhor já estava passeando na Ocupação… ”Enfim, com profunda fé, o povo animava
a luta por terra e moradia. Aprendemos a gritar juntos: “Com luta e com fé
as casas ficam em pé!”
Todas as ciências humanas são imprescindíveis, inclusive a
teologia. Em uma sociedade religiosa não dá para ser analfabeto religioso. A
Teologia da Libertação já demonstrou que quanto mais a pessoa está sufocada,
desempregada, superexplorada, adoecida, quanto mais crucificada, humilhada,
mais ela sente a necessidade de recorrer à dimensão espiritual. Os povos
indígenas são doutores nesse assunto porque nas lutas eles cantam o tempo todo,
invocam seus ancestrais. O cacique Arapowanã do Povo Xukuri-Kariri gosta de
dizer: “Lutemos 30%, pois o Grande Espírito lutará os outros 70% por nós”. A
mística e espiritualidade das Religiões de matriz africana – Candomblé, Umbanda
etc. – reconhecem e celebram a sacralidade da natureza. Mística e
espiritualidade animam as lutas dos povos Originários e Tradicionais.
Ao observar os sinais dos tempos e dos lugares, vejo que
este megaprojeto de dominação está todo podre e começando a se desintegrar,
porque suas contradições estão vindo à tona. Apenas no primeiro semestre de
2024, mais de 80 pastores foram presos porque tinham cometido crimes:
corrupção, pedofilia, feminicídio etc.
Enfim, é hora de superarmos o analfabetismo religioso, o que
passa para quem é pessoa cristã por não abrir mão da ética e de nenhum
princípio originário libertador ensinado e testemunho por Jesus Cristo, que
combateu o bom combate, foi bom samaritano, mas também enfrentou os opressores
e os exploradores dos poderes político, econômico e religioso. É assustador e
muito preocupante o que está acontecendo por influência das práticas religiosas
fundamentalistas, a serviço da extrema direita. Suas lideranças estão ocupando
espaços públicos significativos. De fato, não se sustentam. Entretanto, é fato
também que a religião é identidade mobilizadora do nosso povo e isso deve ser,
de alguma forma, considerado na construção de narrativas, mobilizações no campo
popular, a serviço de melhor compreensão do mundo, da história, como
alfabetização política mesmo.
13/8/2024
1) Frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese e Hermenêutica Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas.
Email: gilvanderlm@gmail.com
www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br - www.twitter.com/gilvanderluis - Facebook: Gilvander Moreira III
2) Unidade de Terapia Intensiva.
3) Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Pastoral Operária (PO), Pastoral Carcerária, entre outras.
Fonte: Jornalistas Livres. Pedi autorização de Frei Gilvander para publicar texto aqui no blog (o blog respeita a opinião do articulista, e não necessariamente concorda com todo o teor do texto)
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