Introdução
Lendo “Angústia” de Graciliano Ramos (1936)...
Estou no capítulo 33 (ou fragmento, pois a numeração é minha). O personagem, Luís da Silva, está em transe refletindo sobre o passado. De suas reflexões, tiro algumas frases acerca de Julião Tavares -personagem safado que lhe tira a noiva, a vida etc.
“...costume que os cangaceiros têm de marcar os inimigos com ferro quente”.
Pensando em matar Julião: “que é que me podia acontecer? Ir para a cadeia, ser processado e condenado, perder o emprego, cumprir sentença. A vida na prisão não seria pior que a que eu tinha”.
Mais à frente: “lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia... preciso muita água e muito sabão. Viver por detrás daquelas grades, pisar no chão úmido, coberto de escarros, sangue, pus e lama, é terrível. Mas a vida que levo talvez seja pior”.
“um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos”.
TÃO EMBOTADOS VIVEMOS
“Tão embotados vivemos” é uma boa frase. Foi escrita por Graciliano Ramos há quase setenta anos. E acho que já vivíamos embotados há muito tempo. Pegávamos homens negros quinhentos anos atrás e tínhamos a eles como animais, macacos. Mas... lendo livros duros, secos, como esses de Graciliano, pego-me lembrando instantes, tempos remotos de minha vida.
Primeiro dia como ajudante de encanador
Naquele dia em que estava quebrando aquele esgoto, com ponteiro, talhadeira e marreta, sentia um milhão de sentimentos. Sentimentos duros, secos. Um dos mais fáceis de definir era o de ódio, raiva. Raiva de tudo, da vida. Era ajudante do seu Joaquim, encanador. Ele até que era um velho simpático, teve paciência comigo. Aquele moleque de uns quinze anos, de mãozinha fina, não tinha cara de quem aguentava cortar concreto. Me lembro do primeiro dia...
Levantei-me cedo, peguei a bicicleta e fui para o trabalho. Era uma casa em construção. Era muito grande. Chegando lá, fiz de conta que era durão. Seu Joaquim me deu as ferramentas e entramos na obra. A peãozada me olhava com olhos que me intimidavam. Acho que viam e achavam que eu não tinha jeito pra aquilo. Seu Joaquim me mostrou o banheiro e me disse que deveria quebrar ali do canto, onde ficaria o vaso, até o outro lado. Dava mais ou menos um metro e meio de corte no concreto. Me olhou meio duvidoso e disse que precisava sair para ir em outra obra. Lá estava eu, só, naquele banheiro em construção, com talhadeira, ponteiro e marreta para trabalhar. Nunca pensei (pensaria) que quebrar concreto fosse tão difícil. O concreto era muito forte, pois era o segundo piso e este tinha que ser reforçado.
Nas primeiras marretadas que dei, tudo que saía do chão era faísca. Após alguns minutos, comecei a sentir um calor percorrer meu corpo. Era o calor da vergonha, da humilhação. Se alguém entrasse e visse aquele chão intacto e aquele pivete suando, eu não teria onde enfiar a cabeça. Comecei a bater com força, com sede de orgulho. Não queria e não podia desistir. Comecei a errar o ponteiro e a marretar minha mão, meus dedos. Aquilo doía pra burro. Comecei a tirar algumas lascas do chão. Até me animei. -Ah! Mas esse nosso corpo adaptado à vida cotidiana! Essas mãos de pele fina que não conhecem o peso de movimento repetitivo! Estavam já a bulir comigo.
Uma hora depois, já havia conseguido fazer um pequeno buraco no concreto. Faltava agora só alargá-lo (para caber um cano de esgoto) e levá-lo um metro e meio adiante. Minha mão esquerda estava muito doída, pois já havia levado muita porrada. Mas a direita... a direita é que era o problema. Eu tinha bolhas grandes. Grandes e cheias de líquido. Era uma na parte interna do dedão; duas no indicador – uma em cada dobra; duas na palma da mão – no início do indicador e do maior de todos. Estava doendo muito pra segurar a marreta. Juro que não me lembro se chorei ali. Até porque algum peão-de-obra poderia me ver ou o velho poderia retornar. Chorar não dava. Só por dentro. Já vinha sendo assim desde que cheguei em Minas Gerais – menino branquelo, raquítico e que era mal-acostumado a só brincar e ir para a escola.
Nós mudamos nossa vida e nos mudamos ao toque daquilo que temos que enfrentar. Nunca deixei de ser aquele garoto, aquele adolescente que viveu momentos de ânsia de força para não dar o braço a torcer. E que cada vez que superava a dor e o choro, voltava diferente para casa, para o mundo, para a vida.
Aquela manhã de meu primeiro dia de ajudante de encanador me ajudou a ser o que sou. É assim nas passagens da vida de todos. Depois daquela experiência, tive tantas outras...
A superação da dor, me parece que ocorre por dois motivos: por amor ou por ódio. Quanto mais doía, mais fui pegando a marreta e mais fui endurecendo. Força e dor. Vergonha e dor. Quase gritava. Consegui bater com muita força e comecei a furar, vencer aquele concreto. Não deixei de acertar a mão esquerda de quando em quando. É que, às vezes, vacilava. Voltava a ser aquele que entrou às oito da manhã para trabalhar.
Hora do almoço. Hora do rango, do bagerê.
Quando cheguei a minha casa, minha mãe (mãe é mãe) começou a chorar. Desabei – chorei também. Acho que doía olhar para minhas mãos. E pareciam enormes. Estavam inchadas. Choramos. Dores. Dor de mãe. Dor de filho... Meu pai chorou. Se sentiu um fracassado. Não era isso que ele queria dar aos filhos. Dores...
Almoçamos.
Minha mãe pediu para que eu não voltasse. Choramos.
Eu tinha uma decisão a tomar. Orgulho. Dor. Precisão. O cara que saiu não era o cara que voltou. Para que teria valido tudo o que já tinha feito se não voltasse? (ora, trabalhei meio período!). Nossa situação estava feia. Precisávamos de dinheiro. Adolescente não consegue emprego fácil. Interior... pior.
Choramos.
Voltei do almoço.
Foi um dos dias mais... doloridos de minha vida.
Voltei no dia seguinte.
Trabalhei a semana toda. Recebi um vale.
Trabalhei muitos meses com seu Joaquim. Às vezes, tinha moleza. Era o dia em que ele me pedia para lavar o seu carro, um corcel.
O esgoto que comecei quebrando neste texto, não foi o da construção. Foi um esgoto com muitos anos de uso. Foram meses de trabalho duro. Muito fedor. Muito. Não posso dizer que estive na merda. Eu mexia, às vezes, com ela. Mas era o meu trabalho.
Trabalhei.
Endureci.
Interessante que hoje, tantos trabalhos desse depois, parece que estou amolecendo. Deve ser a experiência do tempo. É uma sensação tão estranha! Mas a maneira como vejo a vida, a morte, a miséria, é muito particular.
Houve tempos em que me perguntava, assim como Luís da Silva, “que é que me podia acontecer?”
Maneiras de viver.
Maneiras de ver o mundo.
Modos de crescer, de sobreviver.
É isso.
Wmofox, 20.11.2002
Post Scriptum:
Interessante o que diz o crítico espanhol José Bergamin em sua teoria do romance: “o leitor perde-se no romance para esquecer o seu mundo, mas reencontra-se lá, reconhecendo que o seu próprio mundo está chamado a desaparecer: perder-se para encontrar-se, para perder-se”.
Ser canalizaor (encanador em português do Brasil) é uma profissão muito nobre. Sou canalizor há mais de 20 anos e pretendo ser até ao final dos meus dias!
ResponderExcluirParabéns pelo post, muito bem escrito!
Abraço!
Olá amigo, como vai?
ResponderExcluirAo ver seu comentário para liberar, reli o texto. Emoção!
Hoje, sou uma pessoa de 47 anos, bancário por profissão, que atua na área da saúde neste momento, como eleito pelos colegas de trabalho na entidade de saúde dos funcionários do Banco do Brasil.
Nosso país, Brasil, passou por mudanças importantes entre os anos 2003 e 2014, com governos democrático-populares do Partido dos Trabalhadores PT), e nesse período de governos petistas foram realizadas mudanças importantes na distribuição de renda e muitos jovens como esse do texto puderam ter perspectivas de vida diferente, por exemplo, só estudar ao invés de ter que consumir suas energias no trabalho pesado tão cedo na vida.
Os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do PT tiraram da linha da miséria e da pobreza extrema, dezenas de milhões de famílias, através de programas sociais, políticas afirmativas de cotas e aumento do salário mínimo brasileiro.
As coisas mudaram depois da reeleição de Dilma em 2014 e um grupo de empresários dos meios de comunicação cartelizados e segmentos de direita, com suspeitas de apoio internacional, derrubaram o governo com um golpe parlamentar e o que já fizeram de retrocessos nos direitos da cidadania em pouco mais de um mês traz perspectivas de nosso país voltar àqueles anos que o texto nos mostra (anos 80), com jovens de dez anos ou mais tendo que trabalhar em profissões de adultos para ajudarem no sustento da casa.
Amigo, um grande abraço a você e ao povo português.
William