sábado, 17 de março de 2012

Odorico Mendes: O patriarca da transcriação in "Odisseia", de Homero


Por: Haroldo de Campos

(Como havia prometido, segue o belo e esclarecedor texto do intelectual Haroldo de Campos abrindo a Odisseia de Homero, na edição do professor Antonio Medina Rodrigues)

(para facilitar a leitura, criei parágrafos para o "respiro" do leitor, pois o original tem apenas um parágrafo. Peço licença ao mestre Haroldo de Campos)

Odorico Mendes - Wikipedia

Odorico Mendes (1799-1864) é o patriarca da tradução criativa - da "transcriação" - no Brasil. Pertence nominalmente ao pré-romantismo neoclássico. Sousândrade, também helenista e fileleno, seu discípulo, ainda mais radical nas inovações lexicais e sintáticas da língua, chamava-o "pai rococó" (e na medida em que o período Rococó seja, "em muito, uma derivação e uma particularização do Barroco", na expressão de Emilio Carilla, essa caracterização poética poderá mesmo assumir valor estilístico-epocal). 

O pioneirismo odoriciano no enfoque dos problemas da tradução (tanto na prática desta, como nas notas teóricas que deixou a respeito) só poderá ser devidamente avaliado se pusermos em relevo, como traço marcante de todo seu trabalho no campo, a concepção de um sistema coerente de procedimentos que lhe permitisse helenizar ou latinizar o português, em lugar de neutralizar a diferença dessas línguas originais, rasurando-lhe as arestas sintáticas e lexicais em nossa língua. 

Em "Da Tradução como Criação e como Crítica" (ensaio de 1962, hoje em Metalinguagem & Outras Metas, São Paulo, Perspectiva, 1992), tive a ocasião, há exatamente 30 anos, de rebater a crítica preconceituosa de Sílvio Romero, que considerava as traduções de Odorico "monstruosidades" escritas em "português macarrônico". Esse juízo depreciativo, não obstante o ponto de vista em contrário de filólogos, maiores ou menores, como João Ribeiro, Silveira Bueno e Martins de Aguiar (o primeiro dos quais, este, um espírito de muito bom quilate, soube apreciar também o bizarro Sousândrade e o desabusado Oswald), acabou por prevalecer e dar o tom. 

Pouco pesou o elogio tributado por José Veríssimo a Odorico, chamando-o "insigne tradutor", já que este apelativo foi de imediato neutralizado com um juízo desqualificador do trabalho da tradução como um todo, reputado por Veríssimo tarefa para "homens de pouco engenho" (o autor da História e dos Estudos de literatura brasileira, aliás, não era amigo de "extravagâncias"; no mesmo texto em que malcompreendeu o nosso Simbolismo, desconsiderou Sousândrade, o discípulo maior de Odorico, indigitando-o como culpável mestre dos "nefelibatas" patrícios, cultores, segundo o crítico, de uma "forma estéril e manca de esnobismo").

Importa, sim, destacar, neste contexto, que a sentença condenatória de Sílvio Romero recebeu contemporaneamente o endosso de Antonio Candido. O autor da Formação da Literatura Brasileira (1959) carrega ainda mais na tinta, usando expressões como "bestialógico", "preciosismo do pior gosto", "pedantismo arqueológico" e "ápice de tolice", para se referir ao legado tradutório do maranhense (caracterizações depreciativas essas que mais relevam, se tivermos em mente a recepção benévola que o conceituado crítico reserva para outro tradutor de período pouco anterior, o Pe. Sousa Caldas, 1762-1814, autor, pelo flanco da Vulgata latina, de versões indiretas dos Salmos bíblicos, dessoradas por um tardo-classicismo de pendor árcade e por uma equivocada concepção quanto à natureza da poesia hebraica).

A propósito  do conceito "macarrônico", usado pejorativamente por Sílvio Romero, lembrei que "o preconceito contra o maneirismo não pode ter mais vez para a sensibilidade moderna, configurada por escritores como o Joyce das palavras-montagem e o nosso Guimarães Rosa, das inesgotáveis invenções vocabulares" (algumas delas, aliás, ainda hoje indigitadas por um crítico conservador, Wilson Martins, como sendo - precisamente - "monstruosidades"...).

Em "A Palavra Vermelha de Hoelderlin", estudo de 1967 (A Arte no Horizonte do Provável, São Paulo, Perspectiva, 1969; várias reedições), aproximei o caso das traduções greco-latinas de Odorico ao das transposições sofoclianas de Hoelderlin (tratadas, à época de seu aparecimento, como "um dos mais burlescos produtos do pedantismo"). Lembrei o represtígio desse ousado labor tradutório hoelderliniano junto ao círculo de Stefan George e na ensaística de Walter Benjamin. Insisti então na necessidade de se reconsiderar o legado odoriciano, inspirado por preceitos não diversos, em essência, daqueles sustentados por Rudolf Pannwitz e endossados por W. Benjamin, no sentido de que o tradutor, ao invés de "fixar-se no estágio em que, por acaso, se encontra sua língua", deve tomar rumo oposto e mais árduo, ou seja, "submetê-la ao impulso violento que vem da língua estrangeira".

Uma noção que Odorico terá haurido, a seu modo, em fonte vernácula, na Carta em Defesa da Língua (1790) de seu mestre Filinto Elísio: "O modo de aperfeiçoar a língua materna é enxertando nela o precioso das outras. Temos o exemplo antigo da língua romana, que se fez abastada com as riquezas que tirou da grega".

Recentemente ("Para Transcriar a ilíada", Revista USP, nº 12, dez./jan./fev. 1991-92), procurei mostrar que o veredicto com o qual Sílvio Romero interditara o acesso das traduções odoricianas ao decorum das letras pátrias poderia ser posto facilmente ao revés, desde que o lêssemos a contrapelo, através do crivo filosófico da "desconstrucionista" Gramatologia (1967) de J. Derrida, para quem: "O futuro só se pode antecipar na forma do perigo absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade constituída e por isso somente se pode anunciar, apresentar-se, sob a espécie da monstruosidade". A empresa odoriciana, de fato, pode-se dizer, projetou-se no futuro. Basta referir que, na França contemporânea, um dos feitos mais notáveis em matéria de tradução criativa é, justamente, uma subversiva Eneida recriada por Pierre klossowski (Gallimard, 1964), que se rebela contra as convenções gramaticais rígidas do país de Malherbe, no empenho de reconfigurar o "aspecto deslocado" da sintaxe latina, num gesto antinormativo que o teórico da tradução Antoine Berman (L'Épreuve de l'Etranger, Gallimard, 1984), examinando o caso de klossowski ao lado do de Hoelderlin, faz corresponder a uma crise do "etnocentrismo" em cultura.

Das mais oportunas, portanto, a iniciativa da Edusp de apresentar ao público esta admirável Odisseia brasileira de Odorico Mendes, reintroduzindo uma obra fundamental, há muito esgotada, no fluxo sanguíneo de nossa literatura, e fazendo-o numa cuidadosa reedição, a cargo de Antônio Medina Rodrigues, professor de grego e estudioso do notável humanista maranhense. 

Medina, autor de duas dissertações universitárias sobre as traduções odoricianas (uma, de mestrado, sobre a Eneida Brasileira; outra, doutoral, sobre o contributo homérico do grande maranhense), levou a efeito um meticuloso trabalho de apuração e comentário do texto desta Odisseia em vernáculo, cuja primeira publicação só ocorreu anos após a morte de seu recriador brasileiro. 

Deu-nos, assim, com o estudo introdutório que também elaborou para este volume, um paradigma de como tratar criteriosamente, no nível editorial, o texto complexamente belo desta rapsódia helênica, onde raia, revisualizada e ressonorizada em nossa língua, a "dedirrósea Aurora" de Odorico, - que fora rhododáctylos Éos em Homero e haveria de ser "a homérea rododáctila Aurora" em Sousândrade - elos, todos eles, entreunidos, de uma só música.

...................................HAROLDO DE CAMPOS, 1992


Bibliografia:

HOMERO. Odisseia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Edição de Antonio Medina Rodrigues. Edusp. 




COMENTÁRIO DO BLOG:

O texto de Haroldo de Campos é sobretudo uma aula de crítica literária e de filologia. Espero que os alunos de letras que aqui chegarem, apreciem o teor da defesa de Campos no que diz respeito à criatividade necessária para se enfrentar o desafio da tradução.

Eu li o Ulisses de James Joyce, na tradução de nosso filólogo Antônio Houaiss. Uma tradução brasileira feita em 1966. Agora tem uma nova tradução de Bernardina da Silva Pinheiro de 2005, a qual é especializada em tradução de literatura. O texto e os desafios enfrentados por ela devem ter sido muito interessantes e gostaria de ler a nova tradução da obra de Joyce.

Traduzir é ter criatividade para buscar repercutir em outra língua a intenção do autor original.

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