domingo, 12 de junho de 2016

Leitura: Um velho que lia romances de amor (1989) - Luis Sepúlveda



História apaixonante...

Refeição Cultural

"A vida na selva temperou cada detalhe de seu corpo. Adquiriu músculos felinos, que com o passar dos anos se tornaram rijos. Sabia tanto da selva quanto um shuar. Era tão bom rastreador quanto um shuar. Nadava tão bem quanto um shuar. Definitivamente, era como um deles, mas não era um deles."


Um início

A vida é interessante. Ela é toda feita de ligas a partir de instantes, liames de coisas em tese desconexas.

Dias desses, estava eu nos raros momentos de descanso em casa, zapeando canais na TV, quando parei num documentário que falava da vida e obra de um cidadão chileno de nome Luis Sepúlveda. Parei para ver o que era.

Fiquei encantado com a história da vida do cara. Ele foi militante de esquerda no Chile de Salvador Allende, fez parte da Guarda Nacional e estava no La Moneda no dia trágico do Golpe em 11 de setembro de 1973.

Depois virou um exilado e auto-exilado pelo mundo, passando por alguns países na América do Sul, depois Europa. Conviveu com os índios shuares, na Selva Amazônica, conheceu Chico Mendes, ao qual dedica o livro que acabei de ler.

No dia do documentário, minha esposa viu que fiquei vidrado na história de Sepúlveda e nas perspectivas que se abriam com sua obra literária.

Dias depois, ela me daria de presente o livro "Um velho que lia romances de amor", lançado em 1989, por Luis Sepúlveda. Foi meu presente de dia dos namorados, dado a mim faz dias porque neste 12 de junho estamos cada um num lugar deste país, eu em Brasília, ela em São Paulo.

Neste sábado, acordei e abri o livro para ler. Acabei agora há pouco. Estou emocionado, arrepiado, com lágrimas nos olhos. É aquele turbilhão que a catarse nos dá.

Durante a leitura, me vi nos anos oitenta. Alternei minha lembrança de mundo infantil e adolescente de quem andou em mato - é lógico que não se compara ao cenário da Amazônia, mas andei em mato onde cresci -, fiquei revoltado com os homens que tudo destroem, com a frieza do "progresso" capitalista. Emocionei com a história da personagem principal, Antonio José Bolivar Próaño, que descobriu nos romances de amor, uma válvula de escape para esse mundo duro, desgraçado e impiedoso dos humanos.


Estou envelhecendo e espero poder ler muitos
romances, inclusive os de amor.

Noni, obrigado pelo presente do dia dos namorados. Adorei! Como sempre, eu sou o presenteado em datas comemorativas e poucas vezes retribuo com presentes. Sinta minha gratidão pela leitura que acabei de fazer e feliz dia dos namorados. Aprendemos a superar as merdas da vida e hoje temos a parceria e o companheirismo de uma relação a dois. Com o avançar da idade, essa cumplicidade é a liga mais importante nas relações humanas.

Um beijo a você e recomendo aos amig@s e amantes da leitura que conheçam essa figura, Luis Sepúlveda, que também tem uma história de amor em sua vida pessoal toda feita dos acasos, encontros e desencontros da vida.

William
Um amante da leitura


Um velho que lia romances de amor

É difícil não lembrar de outra obra que sou apaixonado desde muito tempo ao ler esta história de Antonio José Bolivar Próaño, passada na Selva Amazônica. Nosso velho aqui é nosso Santiago da clássica obra de Hemingway, O velho e o mar, que já li cinco vezes. 

Desta vez, o homem se depara com o mato e com uma onça vítima da crueza humana, que lhe matou as crias e feriu o macho. Antonio José Bolivar aprendeu a viver e conhecer o mato como poucos brancos, porque conviveu com os índios shuares. Uma frase dita durante toda a narrativa do livro me marcou bastante:

"Ele não era um deles, mas era como um deles"


Pensei tanta coisa com essa descrição. Ela serve para cada um de nós, talvez, por algum momento que já lidamos em nossas vidas.


O cenário - Selva Amazônica

"O céu era uma ameaçadora barriga de burro inchada, pendurada a poucos palmos das cabeças. O vento morno e pegajoso varria algumas folhas soltas e sacudia com violência as bananeiras raquíticas que enfeitavam a fachada da delegacia.

Os poucos habitantes de El Idilio e mais um bando de aventureiros vindos das redondezas se reuniam no cais, esperando a vez de se sentar na cadeira portátil do doutor Rubicundo Loachamín, o dentista, que aliviava as dores de seus pacientes mediante um curioso tipo de anestesia oral..."


Essa primeira parte com os causos do dentista me fizeram lembrar os anos setenta e oitenta, como eram tratadas as questões de dente, não-dente e dentaduras em todos nós, povão. (como evitar a referência de que estamos ficando velhos...)


E então, o velho atiça a curiosidade por livros

"O velho permaneceu no cais até que o barco desapareceu engolido por uma curva de rio. Então decidiu que nesse dia não falaria com mais ninguém, tirou a dentadura postiça, envolveu-a num lenço e, apertando os livros junto ao peito, foi para a cabana..."


Os brancos em meio às bernes e a chegada dos sábios índios shuares

"Sentiam-se perdidos, numa luta estéril contra a chuva que a cada investida ameaçava carregar a cabana, com os mosquitos que em cada pausa do aguaceiro atacavam com uma ferocidade sem igual, apossando-se de todo o corpo, picando, sugando, deixando ardentes víbices e larvas sob a pele, que em pouco tempo buscariam a luz abrindo feridas supurantes em seu caminho para a liberdade verde, com os animais famintos que rondavam pelo mato povoando-o de sons estremecedores que tiravam o sono, até que foram salvos pelo surgimento de uns homens seminus, de rostos pintados com polpa de urucum e enfeites multicoloridos nas cabeças e nos braços.

Eram os shuares que, compadecidos, tinham vindo ajudá-los..."


Em minha infância e adolescência, cansei de ver pessoas com bichos de pé, bernes, carrapatos grudados até parecer um grão de feijão... esse negócio de humano no meio do mato tem consequências reais para esses animais mamíferos que somos!


A cerimônia fúnebre dos shuares, a passagem para outras formas de vida e o amor

"Compartilhou do festim generoso oferecido pelos velhos que decidiam ter chegado sua hora de 'partir' e, quando estes adormeceram sob os efeitos da chicha e da natema, em meio a venturosas visões alucinadas que lhes abriam as portas de futuras existências já delineadas, ajudou a levá-los até uma cabana afastada e a cobrir seus corpos com o dulcíssimo mel da palmeira chonta.

No dia seguinte, entoando anents de louvor àquelas novas vidas, agora com formas de peixes, borboletas ou animais sábios, ajudou a reunir os ossos brancos, limpíssimos, os restos desnecessários dos anciãos transportados para outras vidas pelas mandíbulas implacáveis das formigas afiango.

Durante sua vida entre os shuares não precisou dos romances de amor para conhecê-lo."


Comentário final

Eu poderia citar tantas passagens emocionantes, que transmitem algo a se refletir. Mas eu prefiro sugerir que as pessoas conheçam a obra deste cidadão do mundo, Luis Sepúlveda.

Já faz um tempinho que tenho cismado sobre a passagem do tempo. Estou entrando numa fase da vida onde é necessário refletir o tempo todo sobre o que é mais importante, porque meu tempo não está mais vindo, está indo (e há tanto por se fazer...)

Termino a postagem com uma passagem da história:

"Certa manhã, Antonio José Bolivar descobriu que estava envelhecendo quando errou um tiro de zarabatana. Também chegava a sua hora de partir..."



Bibliografia

SEPÚLVEDA, Luis. Um velho que lia romances de amor. Tradução: Josely Vianna Baptista. Editora Relume Dumará, 2005.


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