Este blog é para reflexões literárias, filosóficas e do mundo do saber. É também para postar minhas aulas da USP. Quero partilhar tudo que aprendi com os mestres de meu curso de letras.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019
Leitura: Um artista da fome, seguido de Na colônia penal (1924) - Franz Kafka
Refeição Cultural - Mundo kafkiano
"Esta é a situação. O capitão me procurou há menos de uma hora, tomei o depoimento dele e no instante seguinte lavrei a sentença. Tudo foi muito simples. Se eu o tivesse chamado para um interrogatório, só haveria confusão..." (Na colônia penal, 1919)
Ao ler sobre leitores e leituras, e atos de leitores, e atos de leituras, e consequentemente, atos de escritores leitores, cheguei a este pequeno livro de Franz Kafka, dado de presente a mim por minha esposa já faz alguns anos.
Estava lendo a respeito de leitores no livro do escritor argentino Ricardo Piglia - O último leitor (2005) - livro no qual ele dedica capítulos de reflexão a escritores e livros clássicos. Um dos capítulos é sobre Kafka - "Uma narrativa sobre Kafka" - e ao ler o ensaio de Piglia aprendemos tanto sobre o escritor tcheco que o desejo é sair lendo e relendo tudo o que temos dele ou sobre ele.
Do escritor já li duas obras - "O processo" e "A metamorfose" -, esta publicada em vida e aquela após sua morte precoce por tuberculose em 1924. Fuçando em minha estante, encontrei edições de outras obras de Kafka, ainda por serem lidas: "O castelo", "América" e esta coletânea com 4 contos "Um artista da fome", junto com "Na colônia penal".
Fiz uma postagem sobre minha 3ª leitura do livro "A metamorfose", realizada em março de 2016. Aos interessados é só clicar AQUI. Sobre o livro "O processo", que peguei para reler em 2015, fiz postagens naquele ano, associadas ao que estava acontecendo no Brasil, mas não terminei a releitura ainda.
Amig@s, como é interessante ler a respeito do autor e de seu contexto para complementar a nossa leitura crítica de suas obras!
A leitura dos textos do livro "Um artista da fome, seguido de Na colônia penal & outras histórias" foi de boa compreensão porque já entrei na leitura com algum conhecimento prévio sobre eles e sobre o autor.
As estórias "Primeira dor", "Uma pequena mulher", "Um artista da fome", "Josefine, a cantora ou O povo dos ratos" e "Na colônia penal" são de leitura difícil, na minha opinião. O da ratinha cantora, por exemplo, foi um desafio, pois em determinado momento senti que não estava entendendo nada. Fiz uma pesquisa na rede mundial e encontrei um trabalho acadêmico sobre esse conto e foi muito legal a análise feita pelo autor do trabalho.
PRIMEIRA DOR
"Um trapezista - sabe-se que essa arte praticada nas alturas da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais difíceis ao alcance do homem - havia, a princípio apenas como um esforço em busca de aperfeiçoamento, mais tarde também por um costume tirânico, ordenado sua vida de modo que, enquanto trabalhasse em uma única temporada, pudesse passar dia e noite em cima do trapézio..."
A ideia de isolamento, de viver numa caverna, para poder escrever e produzir ininterruptamente, está clara neste personagem de Kafka. Sobre essa questão, foi muito interessante a leitura que já havia feito de Piglia sobre o autor tcheco.
UMA PEQUENA MULHER
"(...) Essa pequena mulher está muito insatisfeita comigo, tem sempre algo a criticar em mim, sempre uma injustiça a me imputar, irrito-a por tudo e por nada; se alguém pudesse separar a vida em suas menores partes e analisar cada uma das partezinhas isoladas, sem dúvida cada partezinha da minha vida seria motivo de irritação para ela. Muitas vezes perguntei-me por que a irrito tanto; pode ser que tudo em mim contrarie seu senso estético, seu sentimento de justiça, seus hábitos, suas tradições, suas esperanças, existem naturezas assim, contrárias, mas por que ela sofre tanto com isso? Não existe relação nenhuma entre nós que pudesse levá-la a sofrer por minha causa. Bastaria ela decidir me encarar como um estranho total, o que afinal sou, e eu sequer me oporia a essa decisão, pelo contrário, recebê-la-ia de braços abertos, bastaria ela decidir esquecer minha existência, que eu jamais impus nem seria capaz de impor a ela - e todo o sofrimento desapareceria..."
Ao ler esse excerto, já é possível avaliar como Kafka aborda temáticas de difícil manuseio como a questão da mulher. Na minha leitura de século 21, por exemplo, não gostei do termo usado por ele no conto (se a tradução estiver fiel) ao se referir à mulher como "mulherzinha". Mas literatura tem dessas coisas.
UM ARTISTA DA FOME
"Nas últimas décadas o interesse pelos artistas da fome diminuiu bastante. Enquanto antes era um bom negócio organizar grandes apresentações do tipo por conta própria, hoje em dia é totalmente impossível. Os tempos eram outros. Naquela época a cidade inteira se ocupava com o artista da fome; a cada dia de jejum o público aumentava; todos queriam ver o artista da fome pelo menos uma vez por dia; nos últimos dias havia quem passasse o dia inteiro sentado diante da pequena jaula; à noite também havia visitação, à luz de tochas, para aumentar o efeito; nos dias bonitos a jaula era transportada ao ar livre, e então eram principalmente às crianças que exibiam o artista da fome; enquanto para os adultos ele não era mais do que um passatempo, com o qual se entretinham porque era moda, as crianças olhavam-no impressionadas, de boca aberta, com as mãos dadas para vencer o temor, enquanto o homem, pálido, vestindo um abrigo escuro, com costelas muito protuberantes, desprezando até mesmo uma cadeira, ficava sentado na palha, com um aceno polido de cabeça, respondia perguntas com um sorriso forçado e estendia o braço por entre as barras, para que pudessem sentir com as mãos sua magreza, quando então ele se recolhia uma vez mais em si mesmo, não se preocupava com mais ninguém, nem mesmo com as graves badaladas do relógio, que era o único móvel no interior da jaula, mas apenas olhava para o vazio com os olhos semicerrados e de vez em quando bebericava um gole d'água para umedecer os lábios."
Esse é o longo primeiro parágrafo do conto. A cena é bem forte. Chamativa.
"O artista poderia jejuar tão bem quanto quisesse, e era o que fazia, mas nada mais poderia salvá-lo; passavam por ele sem ao menos notá-lo. Tente explicar a alguém a arte da fome! Não há como torná-la compreensível a alguém que não a sente..."
Sentiram a pegada do conto? Muitos críticos apontam esse conto como um dos contos mais autobiográficos de Kafka.
Além disso, é um conto bastante metafórico.
JOSEFINE, A CANTORA OU O POVO DOS RATOS
"Nossa cantora chama-se Josefine. Quem nunca a ouviu não conhece a força do canto. Não existe quem não fique deslumbrado com o canto dela, um fato ainda mais admirável porque, em geral, nossa espécie não aprecia a música. A música que mais apreciamos é a paz silenciosa; nossa vida é dura, por mais que tentemos deixar de lado as preocupações do dia a dia, não conseguimos elevar-nos a coisas tão afastadas do nosso cotidiano como a música..."
Esse é outro conto bastante metafórico e hermético, na minha opinião. Após a leitura, fiquei com dúvidas de entendimento. Ao ler um trabalho de interpretação sobre o conto, fiquei com uma compreensão melhor. Terei que reler o conto mais vezes.
NA COLÔNIA PENAL
"O explorador queria fazer várias perguntas, mas ao ver o homem perguntou apenas: 'Ele conhece a sentença?' 'Não', disse o oficial e tentou dar prosseguimento à explicação, mas o explorador interrompeu-o: 'Ele não conhece a própria sentença?' 'Não', disse mais uma vez o oficial, deteve-se por um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais precisa para a pergunta, e então disse: 'Seria inútil comunicá-la. A sentença é aplicada ao corpo' (...) 'Mas ele sabe ao menos que foi condenado?' 'Também não', disse o oficial e abriu um sorriso ao explorador, como se esperasse dele mais alguns questionamentos estranhos. 'Ora', disse o explorador e passou a mão pela testa, 'então este homem também não sabe como sua defesa foi recebida?' 'Ele não teve nenhuma oportunidade de apresentar uma defesa', disse o oficial e desviou o olhar, como se falasse consigo próprio e não quisesse constranger o explorador com explicações sobre coisas tão evidentes. 'Mas ele precisa de oportunidade para apresentar uma defesa', disse o explorador e levantou-se da cadeira..."
Essa é a condição dos condenados na novela de Kafka. Os condenados não sabem que estão condenados, não sabem a sentença e não têm a menor chance sequer de se defenderem. Já viram algo parecido no mundo real? Algum processo entre o Estado e o cidadão, onde o cidadão não tem a menor chance de se defender do sistema?
O melhor vem agora, o juiz e sua postura e seu poder ilimitado, parecendo um caso recente na república bananeira em que vivemos.
"A coisa funciona do seguinte modo. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha pouca idade. Porque estive ao lado do antigo comandante em todas as ocorrências criminais e sou quem melhor conhece o aparelho. O princípio que guia as minhas decisões é: a culpa é sempre indubitável. Outras cortes podem não se pautar por esse princípio, porque são compostas por muitos membros e também porque têm cortes mais altas acima de si. Não é o que acontece aqui, ou ao menos não era o que acontecia com o antigo comandante..."
Amig@s leitores, apesar da semelhança com fatos reais, isso não é uma descrição do dia a dia do Brasil com seu novo regime de lawfare, é um texto ficcional publicado em 1919 por Kafka.
A novela é chocante, é o cenário típico e constante nos textos de Franz Kafka. Um mundo angustiante, um mundo distópico, com processos absurdos e totalitários contra os frágeis humanos frente a sistemas opressores e aniquiladores.
Enfim, leitura feita e cinco novas estórias de Kafka na bagagem. Recomendo o livro aos leitores e leitoras.
William
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