domingo, 24 de novembro de 2019

Leitura: Nocturno de Chile - Roberto Bolaño


Roberto Bolaño. Foto divulgação.

Refeição Cultural

Neste semestre, tive o prazer do contato com a literatura e a poética do escritor chileno Roberto Bolaño, que faleceu muito jovem aos 50 anos de idade, quando suas obras já se destacavam na literatura de língua espanhola e também já eram traduzidas para diversos países.

Para o trabalho de conclusão da disciplina, a professora Laura Hosiasson nos pediu para pensarmos em algo que nos tenha chamado a atenção nas leituras que fizemos do autor. Eu gostei bastante da poética de Bolaño, sobretudo gostei do livro Nocturno de Chile (2000). 

Esta postagem sobre a leitura da obra foi base para minhas reflexões no trabalho da disciplina que fiz. Foi um período bastante atribulado para mim. Eu gostaria de ter podido ler mais textos críticos a respeito do livro e incluir algumas questões apontadas pelos autores, mas isso não foi possível dentro do prazo que tinha; as leituras ainda serão feitas por mim.

Gostei muito dos contos que lemos também de alguns de seus livros. Um dos textos que mais me marcaram foi o relato "Literatura + enfermedad = enfermedad", do livro El gaucho insufrible (2003). Fiquei muito pensativo após a leitura do texto, muito.

O texto abaixo sobre o romance de Bolaño, contém citações e análises de suas partes - spoiler - de forma que o ideal seria que eventual interessado em ler este livro visse as reflexões contidas aqui depois da leitura.

NOCTURNO DE CHILE – AINDA A TORMENTA

O romance é um convite à reflexão por diversos motivos, a começar por sua estrutura pouco tradicional em relação a romances: a narrativa se dá em apenas dois parágrafos, sendo o primeiro com mais de uma centena de páginas e o segundo e último parágrafo com uma linha de extensão.

A narrativa também é inovadora porque poucas obras ousaram tanto no uso da técnica do fluxo de consciência, em que o narrador em primeira pessoa passa a descrever os acontecimentos, pensamentos ou sentimentos de formas variadas e normalmente ininterruptas.

No século passado, o mundo havia se surpreendido com o lançamento de Ulisses (1922), do escritor irlandês James Joyce, que experimentou várias técnicas narrativas em um romance que marcaria a história da literatura mundial.

No último capítulo de Ulisses, a personagem Molly Bloom inicia um fluxo de pensamento que se estenderá por dezenas de páginas do livro, praticamente sem pontuações e mesclando os assuntos mais variados possíveis.

A técnica narrativa coloca o leitor em contato com uma ideia bastante sugestiva de como funcionam os nossos pensamentos, que alternam diversas coisas ao mesmo tempo: memórias, reflexões, desejos, avaliações, sentimentos, projeções de futuro, criatividade etc.

O romance de Bolaño nos motiva muito a leitura porque além de ser uma obra bem feita nos planos estético, semântico e material, como se observa em bons livros de poesia e literatura, também abre possibilidades de leituras no plano dos sentidos - no caso, leitura política -, pois a interpretação e vinculação com a realidade de eventos ocorridos no Chile durante a ditadura de Pinochet são claras, ampliando assim os sentidos da obra. Da leitura política, podemos dizer o seguinte: Noturno do Chile – ainda a tormenta.

Para citar mais uma motivação sobre os encantos do romance Nocturno de Chile, chama atenção o uso de ferramentas e técnicas utilizadas na linguagem poética; o romance tem passagens belíssimas com uso de anáforas, metáforas, metonímias e outras figuras utilizadas nas estruturas do gênero lírico.


O CONTRATO ENTRE O LEITOR E O NARRADOR

O romance começa estabelecendo os parâmetros da narrativa que irá se desenvolver a partir de ali: quem está falando, sobre o que irá falar, como e por que vai narrar a história.

"Ahora me muero, pero tengo muchas cosas que decir todavía. Estaba en paz conmigo mismo. Mudo y en paz. Pero de improviso surgieron las cosas. Ese joven envejecido es el culpable. Yo estaba en paz. Ahora no estoy en paz. Hay que aclarar algunos puntos. Así que me apoyaré en un codo y levantaré la cabeza, mi noble cabeza temblorosa, y rebuscaré en el rincón de los recuerdos aquellos actos que me justifican y que por lo tanto desdicen las infamias que el joven envejecido ha esparcido en mi descrédito en una sola noche relampagueante..."

Temos um narrador em primeira pessoa, que vai falar sobre sua vida, está acamado e diz estar morrendo, mas vai se apoiar no cotovelo e de cabeça erguida irá buscar recordações que o justifiquem. Afirma também que fará isso por ter sofrido infâmias espalhadas contra ele por um tal jovem envelhecido.

Bom começo. A partir daí, o leitor vai acompanhar a narrativa em fluxo de consciência do personagem central, que se identifica logo em seguida como Sebastián Urrutia Lacroix, um cidadão chileno.

CHAVES PARA DESVENDAR A PERSONALIDADE DO NARRADOR

Com uma leitura atenta, é possível captar algumas características importantes do narrador e que serão de grande auxílio para compreender e interpretar os sentidos da narrativa que ele fará para nós, os leitores.

Ele afirma ser uma pessoa que não busca a confrontação, não quer saber de se envolver em conflitos e diz ser uma pessoa razoável.

"Yo no busco la confrontación, nunca la he buscado, yo busco la paz, la responsabilidad de los actos y de las palabras y de los silencios. Soy un hombre razonable. Siempre he sido un hombre razonable."

Aliás, sobre "os silêncios", ele nos revela que tem uma preocupação ou talvez atenção especial em relação ao silêncio, aos pensamentos e atos não falados (não revelados), e que só a Deus se prestaria contas definitivas sobre certas coisas não ditas, sobre certas cumplicidades na vida nunca ditas a ninguém.

"Uno tiene la obligación moral de ser responsable de sus actos y también de sus palabras e incluso de sus silencios, sí, de sus silencios, porque también los silencios ascienden al cielo y los oye Dios y sólo Dios los comprende y los juzga, así que mucho cuidado con los silencios. Yo soy responsable de todo."

O narrador em primeira pessoa estabelece com o leitor um contrato bastante claro a respeito da narrativa que irá contar. Ele vai buscar nos rincões da memória, atos que o justifiquem e vai escolher quais são eles e a forma como quer que saibamos deles, é a sua versão dos fatos.

E os objetivos são claros, nada que deponha contra ele, e sim que justifique uma vida correta, responsável e "imaculada" como ele diz de si mesmo: "Mis silencios son inmaculados".

LITERATURA E ALTA SOCIEDADE

Podemos dividir o longo fluxo de pensamento do narrador, senhor Urrutia - padre da Opus Dei, poeta fracassado e crítico literário - em alguns episódios e momentos de sua vida.

Na primeira parte das recordações do narrador, ele nos conta sobre sua formação religiosa e a forma como teve acesso aos espaços da alta sociedade, ao conhecer o crítico literário mais famoso do país, o personagem Farewell.

"Y poco antes o poco después, es decir días antes de ser ordenado sacerdote o días después de tomar los santos votos, conocí a Farewell, al famoso Farewell, no recuerdo con exactitud dónde, probablemente en su casa..."

Nestas recordações, ele nos conta da visita a propriedade de Farewell, do assédio sexual que sofreu (e tolerou), do contato com Pablo Neruda e outras personalidades da cultura em um sarau.

A técnica narrativa de Bolaño é excelente. Há passagens que nos lembram clássicos da literatura mundial.

A chegada de Urrutia à vila de Querquén "vacía de todo atisbo de personas" nos lembra tanto a chegada de Juan Preciado a Comala em Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, como o comportamento dos pássaros gorjeando sons que "parecían decir quién, quién, quién" em meio à solidão da praça principal, descrição que nos lembra O corvo (1845), poema de Edgar Allan Poe, famoso pelo grasnar "nevermore".

Ainda nesta primeira recordação, o narrador nos conta de forma poética e metafórica a imagem que teve da casa de Farewell, uma espécie de porto seguro da literatura nacional.

"Me dije a mí mismo que mi anfitrión era sin duda el estuario en donde se refugiaban, por períodos cortos o largos, todas las embarcaciones literarias de la patria, desde los frágiles yates hasta los grandes cargueros, desde los odoríficos barcos de pesca hasta los extravagantes acorazados. ¡No por casualidad, un rato antes, su casa me había parecido un transatlántico! En realidad, me dije a mí mismo, la casa de Farewell era un puerto."


LITERATURA E VAIDADE

Nesta segunda parte das recordações, o senhor Urrutia narra o período em que passou a trabalhar na Universidade Católica do Chile, começou a publicar seus poemas e fazer críticas literárias.

Ele nos conta que ouviu uma voz interior, seu superego, e ela teve grande influência nas decisões e ações tomadas pelo narrador nesta fase. Urrutia criou um pseudônimo - H. Ibacache - para seguir criticando poetas e literatos (e elogiando a si mesmo) e planejou um futuro glorioso como poeta.

"Urrutia Lacroix planeaba una obra poética para el futuro, una obra de ambición canónica que iba a cristalizar únicamente con el paso de los años, en una métrica que ya nadie en Chile practicaba, ¡qué digo!, que nunca nadie jamás había practicado en Chile, mientras Ibacache leía y explicaba en voz alta sus lecturas tal como antes lo había hecho Farewell, en un esfuerzo dilucidador de nuestra literatura, en un esfuerzo razonable, en un esfuerzo civilizador, en un esfuerzo de tono comedido y conciliador, como un humilde faro en la costa de la muerte."

Não poderia faltar o tom poético com que Bolaño descreve o episódio narrado em fluxo de pensamento pelo poeta Urrutia, com anáforas: "en un esfuerzo", "en un esfuerzo"...

A narrativa nos apresenta histórias dentro de histórias. Falando sobre pureza poética, Urrutia nos conta um episódio na casa de um diplomata, Salvador Reyes, que por sua vez vai falar sobre pureza em outro episódio com o escritor alemão Ernst Jünger, ocorrido na Paris ocupada durante a 2ª Guerra Mundial. Dentro desta história, será narrado novo episódio com um pintor guatemalteco e seu quadro "Paisaje de Ciudad de México una hora antes del amanecer".

Ao contar essas histórias dentro de outras histórias, o personagem principal Urrutia confessa aos leitores estar com melancolia, o mal que, segundo ele, ataca pessoas pusilânimes, e com isso nos dá outra chave para compreender a personalidade e o estado mental do narrador.

"melancolía, morbus melancholicus, el mal que ataca a los pusilánimes (...) la bilis negra, esta bilis negra que hoy me corroe y me hace flojo y me pone al borde de las lágrimas al escuchar las palabras del joven envejecido"

Ainda dentro dessas lembranças da visita a casa do diplomata, Urrutia e Farewell saem para comer e nova história é contada por Farewell, a história do sapateiro súdito do imperador austro-húngaro: "la historia de la Colina de los Héroes o Heldenberg". As reflexões em questão abordam a temática da mortalidade e a fugacidade das coisas.

Antes de nos contar sobre sua colaboração com a ditadura de Pinochet, o sacerdote Urrutia narra mais um diálogo que teve com Farewell sobre a igreja e os papas, e nos revela ser da Opus Dei.

De passagem em passagem de uma história a outra, o jovem envelhecido retorna nas citações do narrador. Às vezes, as acusações e cobranças dessa voz são agressivas como neste exemplo:

"Seamos civilizados, susurro. Pero él no me oye. De vez en cuando alguna de sus palabras llega con claridad. Insultos, qué otra cosa. ¿Maricón, dice? ¿Opusdeísta, dice? ¿Opusdeísta maricón, dice?"

Nessa altura da narrativa de Urrutia, sabemos que o jovem envelhecido é a voz de sua consciência, que cobra dele as escolhas que fez, a sua pusilanimidade e os silêncios que manteve durante os piores momentos na vida de seu país. Cobra também a responsabilidade pela literatura ser o que é em seu país - pouco expressiva -, e aqui vemos a crítica de Bolaño também.


LITERATURA E PODER DO ESTADO

Entramos em outra parte da história do senhor Urrutia/Ibacache: sua relação com agentes do Estado ou próximos a setores do Estado, não fica muito claro isso, começa através do contato com dois agentes de uma empresa contratada por setores da igreja, cujos nomes são Medo e Ódio, invertidos.

"Fue por aquellos días cuando conocí al señor Odeim y más tarde al señor Oido."

Ao que parece, a estratégia que os setores mais conservadores do Estado e/ou da igreja desenvolveu para se aproximar do padre Urrutia foi propor a ele um trabalho bem interessante, feito à medida para ele, viajando pelo continente europeu, estudando as técnicas de conservação das igrejas seculares de lá. Ele aceitou.

"La Casa de Estudios del Arzobispado quería que alguien preparara un trabajo sobre conservación de iglesias. En Chile, como no podía ser menos, nadie sabía nada acerca de este tema. En Europa, por el contrario, las investigaciones iban muy avanzadas y en algunos casos se hablaba ya de soluciones definitivas para frenar el deterioro de las casas de Dios. Mi trabajo consistiría en ir, visitar las iglesias punteras en soluciones antidesgaste, cotejar los distintos sistemas, escribir un informe y volver."

Depois da realização do estudo feito pelo padre Urrutia, ele vai voltar ao Chile, encontrando um país em ebulição; período de eleições gerais; Allende chega ao poder; golpe de Estado e início da ditadura de Pinochet. Essa parte nos é narrada após a sua estadia na Europa, que vemos a seguir.

A TÉCNICA DE CONSERVAÇÃO DAS IGREJAS NA EUROPA

Esta parte da obra é uma das mais interessantes em relação à técnica narrativa, com uso de imagens poéticas. A descrição da passagem do padre Urrutia por diversos países conhecendo as igrejas.

Em diversas igrejas, são utilizados falcões para caçar e afastar pombas dos monumentos porque as fezes delas são ameaças à conservação das construções pelo poder corrosivo que têm.

O leitor consegue facilmente perceber a simbologia em relação ao uso de aves predadoras e aves caçadas, entre falcões e pombas/estorninhos como algo relativo a regimes autoritários e democracia, entre o status quo e as camadas menos favorecidas e populares.

SÍNTESE DA PASSAGEM DE URRUTIA PELA EUROPA

- Pistóia, ITA, Igreja Santa Maria da Dor Perpétua, padre Pietro, falcão Turco;

- Turim, ITA, Igreja São Paulo do Socorro, padre Angelo, falcão Otelo;

- Estrasburgo, FRA, não falou nome da igreja, padre Joseph, falcão Xenofonte;

- Avignon, FRA, Igreja Nossa Senhora do Meio-Dia, padre Fabrice, falcão Ta Gueule (o mais sanguinário dos falcões); a descrição das cenas de caças de estorninhos em meio a um céu vermelho é impressionante, de arrepiar;

- Pamplona, ESP. Não utilizam a técnica dos falcões na conservação de igrejas. Urrutia tratou de questões particulares e da igreja, inclusive assinou contrato de publicação de suas obras;

- Burgos, ESP, padre Antonio (um velhinho), falcão Rodrigo (que não caçava pombas, o padre era contra caçar aquelas criaturas de Deus), ambos estavam decrépitos; a história narrada é de arrepiar. O falcão estava em condições precárias, num canto, preso, amuado. Com o estado febril do padre, Urrutia soltou o falcão, que reencontrou seus instintos, matou diversas pombas e desapareceu para sempre nos céus de Burgos. O padre Antonio se libertou também e faleceu naquela noite;

- Madri, ESP, Urrutia tratou de outros temas por lá, porque em Madri eles não ligam para essa questão de conservação de igrejas;

- Namur, BEL, Igreja Nossa Senhora dos Bosques, padre Charles, falcão Ronnie;

- Saint-Quentin, FRA, Igreja de São Pedro e São Paulo, padre Paul, falcão Febre; uma cena chocante aconteceu na cidade. O falcão do padre Paul estraçalhou uma pomba branca que deu início a jogos na cidade;

- O padre Urrutia foi para Paris e depois passou um tempo visitando países europeus até que retornou a América.

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FALCÃO SANGUINÁRIO, UMA METÁFORA DO QUE VIRIA NA HISTÓRIA

Avignon - A descrição que o narrador faz dos céus vermelhos em consequência da ferocidade do falcão Ta Gueule é impressionante:

"y fui a Avignon, a la iglesia de Nuestra Madre del Mediodía, en donde era párroco el padre Fabrice, cuyo halcón se llamaba Ta gueule y era conocido en los alrededores por su voracidad y ferocidad, y con el padre Fabrice tuvimos tardes inolvidables, mientras Ta gueule volaba y  deshacía ya no sólo bandadas de palomas sino de estorninos que por aquellos días lejanos y felices abundaban en las tierras provenzales, las tierras que recorrió Sordel, Sordello, ¿qué Sordello?, y Ta gueule echaba a volar y se perdía entre las nubes bajas, las nubes que bajaban de las mancilladas y al tiempo puras colinas de Avignon, y mientras el padre Fabrice y yo hablábamos, de pronto Ta gueule volvía a aparecer como un rayo o como la abstracción mental de un rayo para caer sobre las enormes bandadas de estorninos que aparecían por el oeste como enjambres de moscas, ennegreciendo el cielo con su revolotear errático, y al cabo de pocos minutos el revolotear de los estorninos se ensangrentaba, se fragmentaba y se ensangrentaba, y entonces el atardecer de las afueras de Avignon se teñía de rojo intenso, como el rojo de los crepúsculos que uno ve desde las ventanillas de un avión, o el rojo de los amaneceres, cuando uno despierta suavemente con el ruido de los motores silbando en los oídos y corre la cortinilla del avión y en el horizonte distingue una línea roja como una vena, la femoral del planeta, la aorta del planeta que poco a poco se va hinchando, esa vena de sangre fue la que vi en los cielos de Avignon, el vuelo ensangrentado de los estorninos, los movimientos como de paleta de pintor expresionista abstracto de Ta gueule, ah, la paz, la armonía de la naturaleza que en ningún lugar es tan evidente ni tan explícita como en Avignon, y luego el padre Fabrice silbaba y esperábamos un tiempo indefinible, mensurado únicamente por los latidos de nuestros corazones, hasta que nuestro tembloroso halcón se posaba en su brazo. Y luego tomé el tren y me marché de Avignon con gran tristeza"


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UM SONHO SIMBÓLICO DE URRUTIA, ANTES DE VOLTAR AO CHILE

Em Roma, antes de voltar para o Chile, o padre Urrutia teve sonhos estranhos durante sua estadia em Roma. Sonhou com falcões que atravessavam o oceano Atlântico rumo a América.

"Fui a Roma. Me arrodillé ante el Santo Padre. Lloré. Tuve sueños inquietantes. Veía mujeres que se rasgaban las vestiduras. Veía al padre Antonio, el cura de Burgos, que antes de morir abría un ojo y me decía: esto está muy malo, amiguito. Veía una bandada de halcones, miles de halcones que volaban a gran altura por encima del océano Atlántico, en dirección a América. A veces el sol se ennegrecía en mis sueños."

Tanto na história dentro do romance veríamos golpe de Estado e a instituição da barbárie contra o povo, como na vida real ocorreria nas Américas, naqueles anos de regimes autoritários, uma certa operação batizada de "Operação Condor", cujos predadores sanguinários aniquilaram milhares de presas, presos políticos.

LITERATURA E PODER DO ESTADO, 2ª PARTE

Urrutia/Ibacache volta ao Chile após sua passagem pela Europa. Seu fluxo de pensamento faz um panorama rápido do processo de eleição de Allende, crise política e golpe de Estado.

Bolaño descreve o narrador repassando toda a literatura clássica da humanidade - a grega, principalmente - durante o período em que o padre se internou em seus aposentos. Enquanto isso, a direita chilena derrubava o governo de Allende. Findo o processo do golpe, Urrutia pensa o seguinte após o bombardeio do palácio La Moneda, morte de Allende e o início da ditadura:

"qué paz. Me levanté y me asomé a la ventana: qué silencio. El cielo estaba azul, un azul profundo y limpio, jalonado aquí y allá por algunas nubes."

A paz do poeta e crítico Urrutia/Ibacache não foi tão completa ao que parece, porque o narrador nos conta que depois do golpe tentou escrever poesia e a coisa saiu meio demoníaca:

"Los días que siguieron fueron bastante plácidos y yo estaba cansado de leer a tantos griegos. Así que volví a frecuentar la literatura chilena. Intenté escribir algún poema. Al principio sólo me salían yambos. Después no sé lo que me pasó. De angélica mi poesía se tornó demoníaca."

Ao longo da narrativa em fluxo de pensamento, o narrador nos deu várias pistas a respeito de sua personalidade. Além de não querer confrontação, de se dizer razoável, e de afirmar no presente da enunciação que está melancólico, nos revela agora também questões bem íntimas sobre si mesmo: os desejos sexuais. Lidar com isso o deixa furioso:

"Escribía sobre mujeres a las que zahería sin piedad, escribía sobre invertidos, sobre niños perdidos en estaciones de trenes abandonadas. Mi poesía siempre había sido, para decirlo en una palabra, apolínea, y lo que ahora me salía más bien era, por llamarlo tentativamente de algún modo, dionisíaco. Pero en realidad no era poesía dionisíaca. Tampoco demoníaca. Era rabiosa. ¿Qué me habían hecho esas pobres mujeres que aparecían en mis versos? ¿Acaso alguna me había engañado? ¿Qué me habían hecho esos pobres invertidos? Nada. Nada. Ni las mujeres ni los maricas. Y mucho menos, por Dios, los niños. ¿Por qué, entonces, aparecían esos desventurados niños enmarcados en esos paisajes corruptos? ¿Acaso alguno de esos niños era yo mismo?"

AULAS DE MARXISMO A PINOCHET

Através dos senhores Odeim e Oido, Urrutia/Ibacache é contratado para dar aulas de marxismo à junta militar que tomou o poder no Chile. Essa parte das memórias é impressionante. O programa das dez aulas sobre marxismo poderia ser seguido à risca por qualquer um de nós para se conhecer um panorama geral sobre Marx e seus ensinamentos.

Ao final do curso, o senhor Urrutia volta a seus aposentos e não consegue dormir. Seus pensamentos são intensos. Chora.

"Me puse a dar vueltas por el cuarto mientras una marea creciente de imágenes y de voces se agolpaban en mi cerebro. Diez clases, me decía a mí mismo. En realidad, sólo nueve. Nueve clases. Nueve lecciones. Poca bibliografía. ¿Lo he hecho bien? ¿Aprendieron algo? ¿Enseñé algo? ¿Hice lo que tenía que hacer? ¿Hice lo que debía hacer? ¿Es el marxismo un humanismo? ¿Es una teoría demoníaca? ¿Si les contara a mis amigos escritores lo que había hecho obtendría su aprobación? ¿Algunos manifestarían un rechazo absoluto por lo que había hecho? ¿Algunos comprenderían y perdonarían? ¿Sabe un hombre, siempre, lo que está bien y lo que está mal? En un momento de mis cavilaciones me eché a llorar desconsoladamente, estirado en la cama, echándoles la culpa de mis desgracias (intelectuales) a los señores Odeim y Oido, que fueron los que me introdujeron en esta empresa. Después, sin darme cuenta, me quedé dormido."

Temos aqui uma reflexão possível por parte do narrador: O medo e o ódio foram responsáveis por suas desgraças intelectuais... talvez por sua pusilanimidade.

Vieram tempos tristes, sem graça, chatos. Por causa do toque de recolher, não podia haver saraus, encontros dos intelectuais e artistas. Essas são as lembranças que Urrutia narra nesse momento de sua história.

LITERATURA E BARBÁRIE

E então, aparece María Canales e, com ela, a oportunidade dos encontros e saraus em sua mansão: artistas e intelectuais voltam a se reunir de duas a três vezes por semana para beber, cantar, declamar poesias e passar as noites reproduzindo a cultura do país.

Falando a si mesmo e ao jovem envelhecido, sua voz da consciência, o narrador nos confessa: "Pero la historia, la verdadera historia, sólo yo la conozco. Y es simple y cruel y verdadera y nos debería hacer reír, nos debería matar de la risa. Pero nosotros sólo sabemos llorar, lo único que hacemos con convicción es llorar."

O final da história é um final duro, a descoberta do porão de tortura, da relação do casal com a CIA e com a ditadura, a convivência da cultura com a barbárie naquele espaço, tudo isso nos coloca a pensar sobre muitas questões, sobre o papel dos artistas, dos intelectuais, da produção artística e cultural em um país, sobre literatura e sociedade.

A personagem María Canales, a quem o padre Urrutia visitou muito tempo depois dos fatos e após o fim da ditadura, faz uma provocação a ele, dizendo que a literatura se faz assim, como se dava naqueles tempos. A questão fica martelando em sua consciência.

"y dijo que así se hacía la literatura en Chile. Yo incliné la cabeza y me marché. Mientras conducía, de vuelta a Santiago, pensé en sus palabras. Así se hace la literatura en Chile, pero no sólo en Chile, también en Argentina y en México, en Guatemala y en Uruguay, y en España y en Francia y en Alemania, y en la verde Inglaterra y en la alegre Italia. Así se hace la literatura. O lo que nosotros, para no caer en el vertedero, llamamos literatura."

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CONVITE A LEITURA DE NOCTURNO DE CHILE EM TEMPOS DE AUTORITARISMO NAS AMÉRICAS DO SÉCULO XXI

Uma obra de ficção literária é boa quando ela é completa em si, como neste caso do romance de Bolaño, a economia da obra dá conta da história, o leitor não precisa saber de nenhum contexto externo a ela para compreendê-la. O professor Antonio Candido nos ensina essa lição no texto “Os elementos de compreensão”. Vejamos o que diz sobre isso:

“Uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, ideias, fatos, acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador (...) o elemento decisivo é o que permite compreendê-la e apreciá-la, mesmo que não soubéssemos onde, quando, por quem foi escrita.”

A emoção estética se dá e se realiza quando lemos este romance de Bolaño. Os elementos internos nos permitem perfeitamente a compreensão do enredo, mesmo para um leitor não-chileno ou sul-americano conhecedor da história das ditaduras dos anos sessenta a oitenta.

Uma obra de ficção é melhor ainda quando ela permite ampliar a interpretação no plano dos sentidos. Neste caso, além do sentido material, presente no texto, podemos ampliar o sentido ao associarmos o texto com fatos e eventos no plano externo da obra.

O texto crítico de Grínor Rojo “2000 El ridículo espantoso (además de chileno) em Nocturno de Chile” nos abre um leque de interpretações incrível. As críticas contidas no romance em relação à política e à literatura, incluindo a relação dos escritores e demais produtores de cultura, amplia bastante os aspectos a serem considerados no plano dos sentidos.

Alguns dos aspectos elencados por Rojo citamos na leitura que fizemos como, por exemplo, a questão do jovem envelhecido como a consciência mais profunda de Urrutia ou o sonho simbólico dos falcões atravessando o Atlântico e as ditaduras que ocorreriam nas Américas naquele período.

Uma questão que fica latente nesse momento, nesse exato momento em que lemos o romance de Bolaño, seria a oportunidade que nos dá a leitura da frase final do livro, o 2º e último parágrafo, que talvez seja a própria voz do escritor e não do personagem, como diz Rojo e Moreno: “Y después se desata la tormenta de mierda.”.

Que expressão mais premonitória seria essa tormenta de merda, se pensarmos o cenário colocado em 2019 na região, Chile, Brasil, Bolívia, Uruguai, Argentina, Equador e demais países em face dos últimos acontecimentos políticos. Poderíamos tranquilamente reler esse clássico de Bolaño com a seguinte sugestão na denominação: Noturno do Chile – ainda a tormenta.

Enfim, a obra literária é muito sugestiva, tanto no plano interno do romance, quanto na ampliação da leitura no plano dos sentidos, a considerarmos neste início de século XXI a ascensão da direita nos países da América do Sul e a volta de pensamentos fascistas e antidemocráticos.

William Mendes


BIBLIOGRAFIA:

BOLAÑO, Roberto. Nocturno de Chile. Espanha: Debolsillo, 1ª edición; 2017.

BOLAÑO, Roberto. Noturno do Chile. São Paulo: Companhia da Letras; 2004. 

CANDIDO, Antonio. “Os elementos de compreensão”. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5ª ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, 1º vol., p. 34-36. 

ROJO, Grínor. “2000 El ridículo espantoso (además de chileno) en Nocturno de Chile”. Las novelas de la dictadura y la postdictadura chilena – Quince ensayos críticos. Volumen II. 1ª ed. – Santiago: LOM ediciones, 2016.

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