segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Depressão pela banalização do mal



"o mal é não estarmos organizados, devia haver uma organização em cada prédio, em cada rua, em cada bairro, Um governo, disse a mulher, Uma organização, o corpo também é um sistema organizado, está vivo enquanto se mantém organizado, e a morte não é mais do que o efeito de uma desorganização, E como poderá uma sociedade de cegos organizar-se para que viva, Organizando-se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos..." (SARAMAGO, 2002, p. 281)


Quando saí de casa para correr ontem, domingo, estava bem deprimido. Saí para correr a esmo. Tenho certeza que a corrida por uma hora me ajudou a melhorar um pouco, foram quase dez quilômetros correndo pra cima e pra baixo no bairro onde moro, e com a experiência que acumulei em cinco décadas de vida sei dos efeitos maléficos das diversas patologias psicológicas no corpo da gente: elas nos arrebentam por dentro. Depois de um certo tempo de trote, atividade aeróbica, seu corpo libera hormônios que te fazem bem e te aliviam o estresse psicológico e até físico. A corrida foi um respiro do bem ao corpo. Ao voltar para casa, para o mundo, a gente já volta ao contato com todo o mal que assola nossa vida e seguimos adoecendo por dentro.

Ao olhar para trás, vejo a minha busca por décadas, meus escritos mais pessoais, e percebo em minhas memórias o que queria e o que me fez ser o que sou, e sempre aparece a palavra ou alguma coisa que represente o sentimento de "paz". Acho que procurei a vida inteira por um pouco de paz. Talvez porque sempre tenha sentido muita raiva, muita dor, muita tristeza, muita falta das coisas, não só materiais, coisas da cultura. Senti muito ódio na vida. E quando a gente finge ser durão porque precisa, como fizeram Diadorim e Riobaldo Tatarana, tendo que viver naquele Grande Sertão: veredas, mundo de jagunços, coronéis e polícias, todos maus, a gente uma hora cansa, esgota. 

Esgotei de ver o mal e os maus vencendo de uma forma tão total quanto agora depois do golpe de Estado no Brasil, consequência de um processo maior e global de avanço da direita dona do capital mundial.

Depois de décadas lidando relativamente bem com algum tipo de depressão (sobrevivi e produzi coisas úteis), ou tendo algum tipo de problema psicológico, porque nunca fui atrás para saber qual o tipo de diagnóstico formal se encaixaria em meu caso, percebo agora aos cinquenta anos que as derrotas coletivas que a classe trabalhadora vem sofrendo cotidianamente me quebraram, me pegaram. 

E acredito que toda essa avalanche de destruição de nosso mundo, toda essa maldade gratuita, todo o sucesso do mal, tudo isso junto e ao mesmo tempo, deve estar afetando muitos de nós que dedicamos a vida a praticar o bem comum, a lutar por um mundo melhor para se viver, um mundo mais justo, solidário e igual para todos. A vitória do mal está nos quebrando de verdade.

Quando a gente se torna uma pessoa com mais consciência política, com visão crítica do mundo e da realidade, a gente não consegue mais voltar a ser a pessoa ignorante que eventualmente tenha sido um dia. Esse é o principal efeito da educação libertadora, da leitura mais engajada e de boa literatura, da formação política de classe, do desenvolvimento de um espírito crítico e humanista nas pessoas, espírito mais centrado na empatia e no desejo de conquistas coletivas e não só pessoais; enfim, o efeito do acesso a essa cultura que citei é nos fazer menos egoístas, menos individualistas e mais colaborativos e cooperativos para se viver em sociedade. 

Destruição das coisas. Da história que fizemos, do ser humano que somos, dos espaços coletivos que criamos, dos laços que fizemos com membros da família, com amigos e conhecidos que chegaram e partiram através das convivências escolares, do trabalho, dos locais onde moramos, da militância que a vida se tornou, enfim, destruição dos espaços coletivos que nos fizeram ser o que somos. Nós somos o acúmulo das diversas vivências que tivemos até hoje. Vivência coletiva, em sociedade. Agora estamos sós, mesmo quando estamos entre pessoas e grupos, estamos sós.

E tudo mudou muito rapidamente para todos nós com o uso de ferramentas de alteração do comportamento humano, ferramentas manipuladas através de redes sociais por pessoas e grupos oportunistas e com poder econômico. Tudo foi muito rápido para os padrões humanos. Pouco mais de uma década de ferramentas que permitem poucos manipularem milhões de pessoas (algoritmos, por exemplo). A pauta do ódio, do medo e da ignorância foi planejada e o efeito disso tem sido devastador para os seres humanos. Fim da democracia. Fim do amor, da amizade e das relações sociais. Fim da reflexão e da paciência. Estamos sofrendo com isso e a vida está perdendo o sentido.

"Happiness only real when shared(A felicidade só é completa/verdadeira quando compartilhada)

Essa frase foi encontrada junto aos restos mortais do jovem norte-americano Alex Supertramp, pseudônimo criado por Christopher McCandless, encontrado em setembro de 1992 em um velho ônibus abandonado no meio do Alasca; ele estava sozinho quando faleceu, após uma longa jornada em busca de algo que ele procurava, talvez um sentido, talvez a felicidade. 

Tenho que pensar em mim para estar aqui. Mas temos que pensar nos outros, para ter algum sentido estarmos aqui. O que estamos vivendo com esta distopia bolsonarista é algo novo e desesperador. Estar aqui é estar para si e para os outros. Quando os outros apoiam o mal, não se indignam com os absurdos contrários aos conceitos básicos de humanidade, quando os outros reproduzem as aberrações inumanas, as coisas perdem o sentido, ficamos sem chão, adoecemos. É isso que estamos vivendo. 

Qual o sentido de tudo quando as pessoas de seu convívio foram capturadas pela lábia, pela retórica, pela manipulação dos homens do mal que estão destruindo todas as possibilidade de um mundo melhor? Hitler e Goebbels fizeram manipulação de massas e o nazismo prosperou na sociedade mais culta e desenvolvida do início do século XX. Hoje, pessoas ao nosso redor fazem vista grossa para o envolvimento do regime com a milícia e bandidos, com o autoritarismo, com a pregação de matar adversários políticos e pobres, com a defesa da violência armada, com as centenas de mentiras descabidas... nossos familiares, colegas, artistas e famosos estão apoiando isso ou se calando...

Difícil dizer algo, difícil, tudo o que a gente acumulou na experiência coletiva parece até que não valeu nada, nada, nada. Como conquistas de décadas são destruídas em meses e parte considerável das vítimas ainda apoia isso? É muito distópico! Não estamos sabendo lidar com isso nem reagir a isso.

William

Post Scriptum: 

Após meses encantado com as aulas que tive de literaturas, não consegui sequer ter cabeça para sentar e fazer os trabalhos de conclusão de disciplina para esta semana. Fico entre triste e envergonhado porque as professoras são muito boas e as aulas delas são muito legais. Mas ver o mal em alta, com apoio das pessoas comuns ao meu redor e a divisão total na minha classe social, faz tudo perder o sentido. Tudo sem sentido. Não sobra paz em mim para algo tão belo quanto a produção de cultura.


Bibliografia:

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das Letras, São Paulo, 2002.

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