Este blog é para reflexões literárias, filosóficas e do mundo do saber. É também para postar minhas aulas da USP. Quero partilhar tudo que aprendi com os mestres de meu curso de letras.
terça-feira, 3 de março de 2020
Cinza, o tom do momento
O cinza escuro e gelo ganhou a votação para a pintura do condomínio onde moro - cinza escuro e gelo. Era terracota e areia. O voto de casa foi em cores alegres. Perdemos de lavada. Quase a metade dos votos foram para o cinza escuro. Dizem que é moda. Os prédios novos em volta já são todos cinza. Mundo cinzento.
Cinza; chumbo; prata; algo entre o branco sujo e o preto. Chamávamos a ditadura civil militar no Brasil de anos de chumbo. Agora governos cinzentos e nebulosos apagam grafites, apagam alegrias e culturas, apagam histórias e tudo fica cinza, cinzento, monocromático.
A violência é a regra do novo regime: coisas cinzas, chumbo grosso, cinza do sangue pisado da bala de borracha. Cinza necrotério de sangue de pobre seco. Cinza da fome. Cinza do desemprego. Cinza do "empreendedor" de aplicativo que morre nas calçadas e asfaltos acinzentados e frios.
O cinza lembra os cartuchos e balas do novo momento do país. Uma nova aliança pelo Brasil. Cinza é a fumaça da queimada da mata, do mato, das terras indígenas. Cinza é o resto do garimpo que contamina, mata gente, mata rios, mata comunidades. Cinza escuro do óleo do petróleo derramado no Nordeste.
O verão deveria ser de cores, mas este verão está com semanas de chuva e frio. Tempo cinza, nublado. Enchentes e desabamentos. Muitas mortes no Brasil neste verão cinzento, céu de chumbo e frio.
São acinzentados alguns dilemas com os quais lido nesses dias nublados. Se não corro, minha pressão aumenta, meu colesterol aumenta, podendo com isso matar partes de meu corpo, fígado, néfrons, artérias, inclusive a massa cinzenta que me define. Se corro, as dores monocromáticas aparecem e incomodam o corpo e o moral. Quadris, nervo ciático, tendões e plantas dos pés.
E quando olho qualquer coisa fora de mim, o país, a política, a volta da miséria, gente que insiste em ser bolsonarista mesmo sabendo o que é isso, o amor e a amizade que não voltam, as separações sem fim, a tristeza das pessoas, a solidariedade que foi deturpada na boca das gentes, as falas de ódio e morte em nome de deuses, os humanos que estão virando zumbis. Tudo muito cinza.
Enfim, temos que sobreviver, mesmo nessas condições cinzentas. Se as cores não vêm no verão, e dificilmente virão no inverno, sempre haverá primaveras. É resistir, é esperançar e vencer esse momento cinzento de nossas vidas.
William
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