terça-feira, 21 de abril de 2020

No Decamerão, vemos o cenário da Peste atual



Refeição Cultural

Hoje é 21 de abril de 2020 (d.C.)*. Terça-feira.

O mundo enfrenta uma pandemia que parou a vida cotidiana. O novo coronavírus (Covid-19) chegou chegando, como dizem por aí. Do início do ano até agora, temos mais de 2,5 milhões de infectados pela doença, em praticamente todos os países do mundo, e os mortos já passam de 174 mil. Como não há vacina nem remédio, a orientação é quarentena e isolamento social para frear a rapidez da contaminação e o colapso dos sistemas de saúde. Em 13 dias, os infectados passaram de um milhão para dois milhões de pessoas.

Comecei a ler o clássico Decamerão, de Giovanni Boccaccio, há 20 dias. Inventei uma estratégia de leitura da obra para me obrigar a alguma coisa durante a quarentena: ler uma estória por dia. A obra tem um enredo convidativo em tempos de pandemia e quarentena porque ela se passa no cenário da Peste que devastou a Europa no século XIV (por volta de 1350), causando uma mortandade absurda e alterando drasticamente o cotidiano das pessoas.

Na história do Decamerão, dez jovens decidem se afastar de Florença durante a Peste, pois a morte é certa ali em meio a mortos em casa e nas calçadas, e buscam no isolamento social o conforto e o deleite de contar e ouvir estórias e novelas, sendo que cada dia (jornada) serão dez narrativas, somando ao final das jornadas cem novelas narradas. Completei a leitura de duas jornadas, ou vinte narrativas.

Por que afirmei que no cenário da Peste do Decamerão vemos o cenário da "Peste" atual? Porque as semelhanças em relação a várias questões sociais são impressionantes. 

As mulheres naquela época eram tratadas como uma coisa para escambo, uma subespécie humana, uma posse. Nesta 2ª jornada, que acabei de ler, é nojento o modo como algumas das estórias tratam as mulheres. Com o nosso olhar progressista e igualitário de hoje, dá ânsia de vômito a forma como o cotidiano das novelas tratam as mulheres. A 7ª e a 9ª narrativa são machistas e sexistas ao extremo!

Pois é! Passados quase sete séculos, chegamos a um amontoado de terra continental que usam chamar de Brasil onde o presidente eleito (por fraudes) é o representante máximo do machismo e sexismo em "solo pátrio" (força de expressão, aqui não é pátria de ninguém), um misógino inveterado, com falas públicas que depreciam as mulheres ao extremo. 

No entanto, o misógino político só foi eleito porque milhões de mulheres votaram nele, brancas, pardas, pretas, amarelas. Que fazer? Não posso desistir de viver por causa disso...

No Decamerão, na Idade Média, naquele mundo sem ciência (as ciências engatinhavam), a religião, as crenças, os donos do poder, reis e seus ideólogos, mancomunados com a igreja, dominavam pelo medo, pela manipulação, pela força dos estados violentos. A Peste era castigo de Deus, a salvação se houvesse era através de Deus e das rezas e da fé.

Quase sete séculos depois, após o advento da ciência, do conhecimento testado e incorporado ao cotidiano da vida no planeta, do avanço ao macro e ao micro, da ida ao espaço e do estudo dos átomos e das células, do olhar aos seres microscópicos como os vírus, uma nova seita mundial invadiu países, governos, cérebros dos seres humanos, gerando uma pandemia para além da do vírus, a pandemia da ignorância, do terraplanismo, do mundo sem vacinas. Nesta terra, ela é identificada com a palavra "bolsonarismo".

Entendem como ler Decamerão é mais atual que ver as notícias dos jornalões? Do que ouvir um demente na cadeira da presidência duma terra qualquer dizendo que brasileiro não pega vírus não pega nada porque até mergulha em esgoto? A autoridade fala isso, limpa a remela do nariz na mão e cumprimenta mais um na multidão... 

Gente, é isso! Já sobrevivi até aqui. Estou me cuidando e seguindo as recomendações das autoridades de saúde. Vamos ver se sobrevivo mais 80 dias para ler as outras 80 narrativas do clássico. 

Em tese, não sou um dos 2,5 milhões de infectados no mundo (esse número é formal, de pessoas testadas). Tá certo que a estratégia do país jabuticaba é jamais revelar o número de infectados e mortos pela "gripezinha" que tá rolando pelo mundo. Aqui não haverá testes até porque a pandemia é invenção de comunista pra atacar o mito.

William
Um leitor


Post Scriptum:

*(d.C): depois do Covid-19

Para ler as outras duas postagens sobre a leitura do Decamerão, clique aqui (1ª postagem) e aqui (2ª postagem)

3 comentários:

  1. Interessante como as PESTES foram mudando os projetos urbanos e as cidades foram ficando mais arejadas e mais limpas, com ruas mais amplas e espaço definido para acumular o Lixo. Pena que apesar de todas Epidemias e Pandemias até hoje a humanidade não se preocupa com os pobres, apenas u afasta do centros urbanos. Foi assim que terminaram os CORTIÇOS no centro do Rio de Janeiro e viraram favelas penduradas nos morros. Em quatro séculos ganhamos apenas ruas e avenidas mais largas, calçadas para pedestres e recolhimento diário do Lixo. A "higienização" com pobres continua ingual, agora pendurados no Morro. Abraços . Mário Rossini- Porto Alegre-Rs.

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  2. Interessante como as PESTES foram mudando os projetos urbanos e as cidades foram ficando mais arejadas e mais limpas, com ruas mais amplas e espaço definido para acumular o Lixo. Pena que apesar de todas Epidemias e Pandemias até hoje a humanidade não se preocupa com os pobres, apenas u afasta do centros urbanos. Foi assim que terminaram os CORTIÇOS no centro do Rio de Janeiro e viraram favelas penduradas nos morros. Em quatro séculos ganhamos apenas ruas e avenidas mais largas, calçadas para pedestres e recolhimento diário do Lixo. A "higienização" com pobres continua ingual, agora pendurados no Morro. Abraços . Mário Rossini- Porto Alegre-Rs.

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  3. Perfeito o comentário, prezado amigo Mário Rossini! Aliás, seus comentários e textos são sempre ensinamentos para nós.

    As cidades são organismos vivos e precisam ser pensadas a partir de conceitos modernos de urbanização e convivência humana.

    Pandemias como essa atual poderiam servir para criar oportunidades de reflexões e mudanças nesse sentido de inclusão humana na vida moderna, que é urbana.

    Abração! William

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