terça-feira, 24 de novembro de 2020

Tempo (XV)



Refeição Cultural

"um jazzman, caçador do indizível..." (Davi Arrigucci Jr.)


Retomo a temática do tempo, das diversas formas de configuração do tempo nas narrativas, lendo um texto do professor Davi Arrigucci Jr. sobre o conto "O perseguidor" de Julio Cortázar. As reflexões do intelectual estão no livro O escorpião encalacrado, no capítulo "A destruição anunciada". O conto de Cortázar está no livro Las armas secretas (1959). Este livro eu tenho, ele foi adquirido numa viagem que fiz a Buenos Aires.

Arrigucci Jr. inicia o ensaio elogiando o conto de Cortázar, joia rara em meio a uma produção literária que já é excepcional em seu conjunto. A narrativa vai tratar da complexa questão do debate entre criação e crítica. 

"É desses instantes de alumbramento em que problemas fundamentais que preocupam o autor, constituindo, para ele, tema significativo, conseguem, graças a uma técnica extremamente eficaz, expressão num todo orgânico, capaz de envolver o leitor no dramático debate que nele se trava entre criação e crítica, nos próprios meandros da consciência criadora, dilacerada no mundo contemporâneo." (ARRIGUCCI JR.)

Cortázar vai refletir sobre a linguagem e a poética através da história do jazzman Charlie Parker (1920-55), o Bird, um fenômeno incompreendido em seu tempo, que buscou (ou perseguiu) quase o impossível através de suas improvisações musicais. A estória do personagem Johnny Carter traz muitos traços biográficos do músico na vida real.

No texto de Arrigucci Jr. temos acesso a várias informações muito interessantes. Enquanto leio, ouço uma interpretação da música "Out Of Nowhere" pelo mestre do Bebop, Charlie Parker. (depois fiquei ouvindo diversas músicas de Parker)

"Quando, então, se cotejam os fatos principais da vida de Johnny com os dados biográficos de Parker, salta aos olhos a fidelidade do retrato literário, como um signo icônico da realidade. Traços gerais e alguns muito peculiares coincidem totalmente: a miséria; a toxicomania; a vida atormentada e solitária; a falta, muitas vezes, do instrumento para tocar; o estranho hábito das longas viagens noturnas, sem destino, no metrô; o domínio perfeito de uma técnica musical incomum, nunca utilizada gratuitamente; a fidelidade à busca do alvo esquivo, com riscos de 'imperfeição' formal, de destruição da linguagem (como Parker teria dito certa vez: 'eu já não aguentava as harmonias estereotipadas que qualquer um tocava então. Não parava de pensar que devia haver algo diferente. Às vezes, eu podia ouvi-lo, mas não o podia tocar...'), etc" (idem) 

O sublinhado acima é meu, porque Arrigucci jr. comentou antes no texto essa busca, o que faria de Johnny/Charlie um "perseguidor" do algo novo, inédito, inalcançável.

Ao mesmo tempo em que há certa fidelidade biográfica entre personagem e músico (Johnny/Charlie), vemos também a liberdade poética de Cortázar ao inserir no enredo outras referências do mundo da arte, como o poeta Dylan Thomas (1914-53), mesmo sabendo que o preferido de Parker era Omar Kayyam.

"Mas a mudança para Thomas, poeta contemporâneo de Parker (ele nasceu em 1914 e morreu em 1953), representa uma intuição profunda de Cortázar, um achado notável do ponto de vista da coerência literária, uma vez que capta, por debaixo das diferenças, uma analogia fundamental entre essas duas breves existências, autodestruidoras e lendárias, da arte contemporânea." (idem)

Arrigucci Jr. se pergunta ao final da primeira parte do capítulo: "Como pôde o aparente perseguido deixar à mostra, no texto literário, toda a sua grandeza humana de um autêntico perseguidor do impossível?". E ele mesmo já antecipa o que vai avaliar a seguir, as técnicas narrativas: "A passagem da biografia à narrativa literária, à forma artística, à estrutura de signos, ambígua e polissêmica, capaz de se desprender das circunstâncias genéticas imediatas e ganhar a autonomia estética e o raio de ação dos símbolos, mantendo, ao mesmo tempo, vinculações com a realidade, coloca-se aqui como um problema fundamental." (idem)

Paro por aqui a postagem de leitura.

William


Bibliografia:

ARRIGUCCI JR., Davi. O escorpião encalacrado (A poética da destruição em Julio Cortázar). Editora Perspectiva. (não tenho a edição, é um pequeno trecho do livro fotocopiado para estudo universitário)


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