sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

As intermitências da morte - Frases selecionadas



Refeição Cultural

Como era de se esperar, As intermitências da morte (2005), de José Saramago, superou minhas expectativas de leitor. Poucos escritores têm a capacidade que ele tem de nos surpreender com suas narrativas e estórias. Poucos escritores me fazem rir e chorar, poucos. Saramago é um deles.

As intermitências da morte é um livro que deve ser lido por nós, que deve ser discutido por nós, quer dizer, deveria, porque os tempos são outros, são tempos distópicos e as discussões filosóficas e os exercícios de pensamento já não encantam nem prendem a atenção de ninguém, talvez estejamos na última fase da hegemonia humana na Terra.

Agora é tempo de lacração, de cancelamento, de memes, de rapidez na mensagem com imagem, de desenhinhos que substituem qualquer pensamento e linguagem mais elaborados e complexos. Um emoji e pronto, tá dito o que o enunciador acha que disse e o recebedor que entenda o que o enunciador acha que foi dito.

Uma cena que me impactou:

A morte está à espreita, está presente no ambiente, e ela observa encantada o violoncelista executando a Suíte nº 6, opus 1012, em ré maior, de Johann Sebastian Bach...

Enfim, seguem algumas frases e momentos de reflexão n'As intermitências da morte.

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O QUE OS OLHOS NÃO VEEM...

"Deitado no chão, à espera de um sinal que não vinha, o cão olhava-o. Talvez a causa do abatimento do dono fosse a mulher que apareceu no parque, pensou, afinal não era certo aquele provérbio que dizia que o que os olhos não veem, não o sente o coração. Os provérbios estão constantemente a enganar-nos, concluiu o cão" (p. 206)

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ESPERANÇA

"E como as esperanças têm esse fado que cumprir, nascer umas das outras, por isso é que, apesar de tantas decepções, ainda não se acabaram no mundo" (p. 202)

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HIERARQUIA DAS PALAVRAS

"Acabou de comer e voltou à sala de música, ou do piano, as duas maneiras por que a temos designado até agora quando teria sido muito mais lógico chamar-lhe sala do violoncelo, uma vez que é este instrumento o ganha-pão do músico, em todo o caso há que reconhecer que não soaria bem, seria como se o lugar se degradasse, como se perdesse uma parte da sua dignidade, bastará seguir a escala descendente para compreender o nosso raciocínio, sala de música, sala do piano, sala do violoncelo, até aqui ainda seria aceitável, mas imagine-se aonde iríamos parar se começássemos a dizer sala do clarinete, sala do pífaro, sala do bombo, sala dos ferrinhos. As palavras também têm a sua hierarquia, o seu protocolo, os seus títulos de nobreza, os seus estigmas de plebeu." (p. 196)

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A MORTE CONHECE A VIZINHANÇA

"A morte desce a rua até onde os muros terminam e os primeiros prédios se levantam. A partir daí encontra-se em terreno conhecido, não há uma só casa destas e de todas quantas se estendem diante dos seus olhos até os limites da cidade e do país em que não tenha estado alguma vez, e até mesmo naquela obra em construção terá de entrar daqui a duas semanas para empurrar de um andaime um pedreiro distraído que não reparará onde vai pôr o pé." (p. 183)

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OS ENVELOPES DAS CARTAS DA MORTE NÃO LEVAM CUSPE NA COLA

"Escreveu, escreveu, passaram as horas e ela a escrever, e eram as cartas, e eram os sobrescritos, e era dobrá-las, e era fechá-los, perguntar-se-á como o conseguia se não tem língua nem de onde lhe venha a saliva, isso, meus caros senhores, foi nos felizes tempos do artesanato, quando ainda vivíamos nas cavernas de uma modernidade que mal começava a despontar, agora os sobrescritos são dos chamados autocolantes, retira-se-lhes a tirinha de papel, e já está, dos múltiplos empregos que a língua tinha, pode dizer-se que este passou à história." (p. 179)

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Amig@s leitores, seriam necessárias várias postagens para separar as frases e reflexões que me encantaram n'As intermitências da morte. Pode ser que eu registre mais algumas depois aqui no blog.

Fiz essa postagem ouvindo Bach, inclusive a Suíte nº 6, opus 1012, citada no romance de Saramago.

William


Bibliografia:

SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


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