quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Diários com Machado de Assis (VI)



Refeição Cultural

Genoveva, uma mulher livre

No diário anterior (ler aqui), falei de meu contato com a personagem Marcela, a espanhola amante de Brás Cubas - a dos "15 meses e onze contos de réis" -, seu primeiro amor de rapaz de 17 anos. A personagem é muito interessante, é uma mulher que enfrentou do seu jeito as dificuldades de seu gênero naquela sociedade de sua época - patriarcal, patrimonialista, do poder branco, sob os dogmas católicos, misógina e conservadora -, o Brasil de milhares de Brás Cubas em cada casa-grande da ex-colônia portuguesa.

Hoje pela manhã, queria ler algo novo do Bruxo do Cosme Velho, algum texto que eu não conheço ainda. Peguei o livro 50 contos de Machado de Assis, organizado por John Gledson. Li o conto "Noite de almirante", publicado originalmente na Gazeta de Notícias, em 10 de fevereiro de 1884, e depois no livro Histórias sem data.

O conto narra a estória de amor de Deolindo Venta-Grande e Genoveva. Se considerarmos a maneira como se tratam as mulheres no Brasil de 1884 e o Brasil de 2021, podemos dizer que o desenvolvimento da ficção e o final nos surpreende, tanto para a época como para o presente.

Deolindo é marinheiro. Volta do mar depois de dez meses de viagens. Está ansioso para encontrar a moça por quem jurou amores e fidelidade antes de zarpar.

"- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva..." (p. 289)

Ela, a personagem, uma moça que se enamorou do rapaz, queria fugir com ele para o interior, mas teve que aceitar ele zarpar e retornar um dia para ficarem juntos. Jurou amores e fidelidade também.

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Uma observação: é difícil fazer um comentário sobre um romance ou narrativa sem dar algum tipo de spoiler. O ideal era o leitor(a) já conhecer o conto. Então, faço o seguinte, vou demarcar abaixo a partir de onde tem spoiler e assim a pessoa para de ler, se quiser.

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Genoveva: "caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido" (p. 289)

OS OLHOS - Interessante o quanto Machado caracteriza seus personagens pelos olhos. Em tempos de pandemia de vírus com uso de máscaras que tampam boca e nariz e de burcas pelo mundo afora, é uma caracterização ideal essa de descrever atributos dos olhos das pessoas.

Enfim, nessa estória de amor, vai aparecer uma terceira pessoa, o mascate José Diogo, e veremos então como termina o triângulo amoroso.

COMENTÁRIO (com spoiler)

Antes de mais nada, acho bem legal a forma como se apresentam os narradores de Machado de Assis. Eles fazem diálogos francos com os leitores, fazem ironias, prestam contas de suas ações etc. É legal demais!

O narrador defende Genoveva ao relatar o que ela disse a Deolindo ao se explicar por estar com outro, ao dizer que se apaixonou pelo mascate pela insistência dele e que isso não é culpa de ninguém, é a natureza.

Genoveva:

"- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isso, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo." (p. 292)

E o narrador a defende (sublinhado meu pela ironia dele):

"Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; falava-lhe o padrão moral das ações." 

E o narrador explica o que ela disse da forma mais natural possível. Os sentimentos mudam nas pessoas, oras bolas.

"O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo." 

Deolindo, quis matá-la com as próprias mãos, depois quis matar o mascate, e a moça continuou firme e seguiu explicando a ele que as coisas são assim. Ela chegou a diminuir o ímpeto de Deolindo só com os olhos:

"Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos." 

A jovem Genoveva cita acontecimentos na natureza para explicar a Deolindo que as coisas são assim e que não vale a pena matar por coisas tão normais e naturais.

"Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras." (p. 293)

Enfim, a estória se resolve e não tivemos um feminicídio. Gostei muito da postura de Genoveva e de Deolindo.

Na vida real, fora da ficção, o país que vivemos após o golpe de 2016 e a ascensão do mal é um país de retrocessos de séculos. Mata-se por qualquer coisa, até por uma simples ação da natureza humana, uma mudança de sentimentos, uma ira momentânea.

Essa foi minha reflexão após alguns momentos com Machado de Assis.

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.

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