Refeição Cultural
Brás Cubas e Leopold Bloom
Machado de Assis e James Joyce são dois importantes escritores da literatura mundial. Machado, um brasileiro que nunca saiu do Rio de Janeiro; Joyce, um irlandês que viveu a maior parte de sua vida fora de sua terra natal.
Joyce nasceu em 1882, pouco tempo depois do lançamento machadiano de Memórias póstumas de Brás Cubas. Machado faleceu em 1908, quando Joyce já estava burilando seus textos, publicando Dublinenses em 1914, Retrato do artista quando jovem em 1916 e Ulysses em 1922.
Brás Cubas e Leopold Bloom são dois personagens que marcaram as carreiras de seus criadores e marcaram, sobretudo, a literatura mundial pelo vanguardismo de suas criações. Ambos são personagens complicados, fora do padrão usual em suas épocas, em seus mundos, em seus contextos. Isso é muito interessante!
Brás Cubas é um "defunto autor", um típico representante da casa-grande brasileira. Um branco de posses, canalha, vil, que vive da riqueza que não é produzida por ele e sim fruto da exploração do Brasil e dos brasileiros. O personagem poderia ser qualquer um dos caras brancos da elite golpista de hoje.
Leopold Bloom é um típico cidadão irlandês, publicitário, casado com uma artista, frequenta os espaços que os amigos e conhecidos frequentam, as tavernas e prostíbulos. Ele é judeu e corno. Todos os conhecidos falam mal dele pelas costas. A sociedade em que ele vive é a pura hipocrisia e contradição. Qual a diferença de 1904 (ou 1922) e hoje?
Os personagens são caracteres de seus tempos e isso é notável porque seus criadores não escondem nada do público leitor. Eles são nojentos, politicamente incorretos. São asquerosos, machistas, racistas, misóginos e imorais. Um nos diz em suas Memórias todas as merdas que fez na vida, o outro nos mostra em ações e pensamentos as merdas que os homens de seu tempo fazem e pensam.
Estou relendo os dois clássicos universais. Memórias já li algumas vezes; Ulysses, li duas décadas atrás.
A leitura desses livros hoje, agosto de 2021, me faz pensar muitas coisas, muitas! Me faz pensar na importância da literatura, das artes, da cultura, mais que nunca! Me faz lembrar que vivemos um período de fim de mundo (do ponto de vista da destruição da vida pelo capitalismo) e de tempos de domínio das extremas-direitas como o bolsonarismo no Brasil. Tempos de negacionismo. Tempos de queimar e censurar o diferente, a alteridade.
Ontem, 30 de agosto, li 120 páginas do Ulysses, justamente o capítulo que se passa no prostíbulo - "Circe" (O Bordel). Queria terminar o capítulo, mas após horas de leitura, vi que não acabaria porque são 200 páginas. Texto complexo, doido demais! Pra vocês terem uma ideia, Joyce diz que a técnica desenvolvida no capítulo é a "Alucinação". Entendem?
Para descansar do dia passado na "zona" ficcional joyceana (rsrs), peguei o Memórias... pra que (rsrs)! Coincidiu de ler justamente as Memórias do defunto autor com a espanhola Marcela.
"... Marcela amou-me durante 15 meses e 11 contos de réis; nada menos."
Descansei da "alucinação" das mais de cem páginas no prostíbulo na Dublin de 16 de junho de 1904 lendo as Memórias de Brás Cubas com seu primeiro amor, seu primeiro beijo, sua primeira relação amorosa com uma moça "amiga de dinheiro e de rapazes" (rsrs).
Por fim, acho importante lembrar que textos de literatura são textos de ficção e existem diversas discussões sobre autores e personagens, se eles pensam a mesma coisa ou não, se o personagem é alter ego do autor ou não etc. Mas um livro de ficção é uma obra em si mesma.
A canalhice de Cubas e de Bloom é a canalhice de Cubas e de Bloom, independente do que pensam seus criadores, que podem pensar como os personagens ou o oposto. Enfim, essa é uma discussão antiga e ela segue valendo.
É isso.
William
Nenhum comentário:
Postar um comentário