quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Ulysses - Penélope (A Cama)



Refeição Cultural

"(...) aí ele não ia acreditar no outro dia que a gente não fez alguma coisa marido tudo bem mas amante não dá pra enganar depois de eu dizer pra ele que a gente não faz mais nada claro que ele não acreditou..." (p. 1052)


Quinta-feira, 30 de setembro. Segundo ano da pandemia mundial de Covid. 

Terminei a releitura de Ulysses (1922), do escritor irlandês James Joyce. Essa experiência foi feita numa edição publicada em 2012, traduzida por Caetano W. Galindo. Foi presente do amigo Sérgio Gouveia.

A primeira vez que li este clássico da literatura mundial foi em 2001. Desta vez, a leitura foi bem melhor, aproveitei mais cada capítulo do livro. Mas foi cansativo, confesso. Foram 5 meses! Comecei a ler a obra dia 1º de maio, dia dos obreiros (rsrs). Não terminei a leitura pedindo mais. Terminei com um sentimento de missão cumprida.

PENÉLOPE (A CAMA) - CAPÍTULO 18

O último capítulo é demais, é um feito na história da literatura de todos os tempos. Setenta páginas em fluxo de pensamento, sem pontuação, a transcrição de uma pessoa pensando livremente madrugada afora, Marion Bloom, Molly. 

Por ser um monólogo interior, não tem censuras. E então lemos as coisas mais surpreendentes, escandalosas, livres que poderíamos imaginar em páginas de um livro de literatura.

Ler hoje é surpreendente, então imagino ler os pensamentos de Molly em 1922. Não à toa, há registros da época de queima de volumes do livro em alguns lugares do mundo.

"(...) ia ser muito melhor pro mundo ser governado pelas mulheres do mundo você não ia ver as mulheres saírem se matando e chacinando quando é que a gente vê uma mulher rolando por aí de bêbada que nem eles fazem ou jogando a última moedinha que têm e perdendo nos cavalos sim porque uma mulher não importa o que ela faça ela sabe quando parar claro que eles nem iam estar no mundo se não fosse a gente eles não sabem o que é ser mulher e ser mãe e como é que eles iam saber onde é que eles iam estar todos se não tivessem todos eles uma mãe pra cuidar deles..." (p. 1099)

Além de ser uma personagem livre em todos os seus atos e pensamentos, Molly pensa nas grandes questões de gênero que já se discutiam e que seriam bandeiras importantes nas lutas das causas das mulheres e dos movimentos libertários e progressistas.

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COMENTÁRIO FINAL

Essa releitura foi muito interessante. Por mais que tenhamos alguma lembrança de uma leitura feita duas décadas antes, a leitura de Ulysses foi praticamente uma leitura nova. O leitor de 52 anos é absolutamente outro leitor que aquele de 32 anos.

A tradução de Caetano W. Galindo também é muito diferente da tradução do Antônio Houaiss, edição que li na primeira vez. São diferentes, não me cabe dizer que uma é melhor que a outra.

Outro salto de qualidade nesta leitura foi aproveitar a oportunidade para ler em versos a obra referência do Ulysses de Joyce, a Odisseia de Homero. Li a tradução ("transcriação" segundo Campos) do maranhense Manuel Odorico Mendes, numa edição especial do professor Antonio Medina.

Também reli contos de Dublinenses (1914) e finalmente li Retrato do artista quando jovem (1916), a obra que introduz o personagem Stephen Dedalus, ainda jovem. Muitos críticos consideram tanto Dedalus quanto Bloom alter egos de Joyce.

SEGUIMOS LENDO OS CLÁSSICOS

Enfim, mais um clássico lido durante esta pandemia mundial de Covid. Li alguns clássicos exigentes neste ano e meio: ao Ulysses, de Joyce, somam-se: Decamerão (1353), de Boccaccio; Moby Dick (1851), de Herman Melville; O processo (1925), de Franz Kafka; e Madame Bovary (1856), de Gustave Flaubert.

Com o mundo como está, afirmo e reafirmo com muita convicção o pensamento de Italo Calvino: é melhor ler do que não ler os clássicos.

William

Um leitor


Bibliografia:

JOYCE, James. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.


quarta-feira, 29 de setembro de 2021

290921 - Diário e reflexões



Refeição Cultural

Quarta-feira, 29 de setembro.


"Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica-os, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro. Enquanto esta ideia me trabalhava no famoso trapézio, lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha perder-se no horizonte do pretérito, e sentia que o meu coração não tardaria também a descalçar as suas botas. E descalçou-as o lascivo." (ASSIS. 2018, p. 114)


Acordei cedo. Li algumas memórias (postagens) em um de meus cadernos do blog Refeitório Cultural, o do ano de 2014. É uma vida registrada ali. E o cenário de fundo é o Brasil, aquele Brasil, não o de hoje.

Fui pegar o Memórias póstumas de Brás Cubas para ler alguns capítulos e não consegui. O capítulo XXXVI - "A propósito de botas" foi o suficiente para ler e parar. Fiquei chocado com a atualidade da coisa!

O livro e o personagem Cubas são as mais perfeitas metáforas do Brasil bolsonarista. É demais! No capítulo, Brás Cubas fala a respeito da jovem Eugênia, impossível de se namorar e casar-se porque apesar de ser bonita é "coxa" como ele a chama. É nojento demais, é degradante, é atual demais!

Voltando ao blog, ontem estava trabalhando no sumário do ano de 2008, estou finalizando a revisão e encadernação das 216 postagens daquele ano de registros no Refeitório Cultural. De novo, vejo que ali está registrado também o Brasil daquele período, não só a biografia do blogueiro sindicalista e estudante de Letras.

Interessante a coincidência. A postagem que abre o ano do Refeitório Cultural em 2008 é uma postagem sobre Memórias póstumas de Brás Cubas. Conhecer nossos grandes clássicos é preciso.

No fundo, a vida é isso: é uma representação que mistura tudo. Somos na vida real nossos grandes personagens da literatura brasileira, somos cubas, somos macunaímas, tataranas, somos milhões de macabéas e fabianos. 

O povo brasileiro que não pertence à casa-grande não passa de um amontoado de Cândido Neves e de Arminda (do conto "Pai contra mãe"), numa guerra fratricida por sobrevivência nessa terra iníqua.

O conto citado acima pode ser lido clicando aqui.

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É isso!

Eu ando tão enojado de tudo, sem saco para a espécie humana que... deixa pra lá!

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. - São Paulo: Panda Books, 2018.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Diários com Machado de Assis (IX)



Refeição Cultural

Segunda-feira, 27 de setembro.


Li dois contos de Machado de Assis publicados em 1884. São contos da fase mais madura do escritor. 

O conto "Evolução" é muito irônico, crítico, e diria hermético. Fico imaginando como teria sido a recepção da narrativa na "Gazeta de Notícias" na corte do Rio de Janeiro.

"Chamo-me Inácio; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito. Não é muito, mas é alguma coisa, e está com a filosofia de Julieta: 'Que valem nomes? Perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, tem sempre o mesmo cheiro'. Vamos ao cheiro do Benedito." (p. 311)

Ao final da estória, descobrimos que o "cheiro" de Benedito é um fedor só, não à toa Machado mudou "perfume" da rosa para "cheiro", porque o sujeito é um chupim, um parasita que viveu às custas de se apropriar das ideias dos outros. 

A "evolução" é uma ideia pessimista do ser humano, pois a evolução da espécie homo sapiens seria através de tipos como Benedito, coisa da pior espécie, uma fraude, um espertalhão. 

Machado era contemporâneo de Charles Darwin e a Teoria da Evolução das Espécies era um acontecimento naquelas décadas do século XIX. O escritor já havia apresentado seu personagem Quincas Borba e a teoria do "Humanitismo" no Memórias póstumas de Brás Cubas (1880). Quincas ficaria famoso pela frase célebre: Ao vencedor as batatas!

O pior é que a sociedade humana em meu mundo do século XXI, o século de trumps e bolsonaros, está bem próxima disso mesmo...

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O outro conto que li é "O enfermeiro".

"Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado." (p. 318)

Nesta narrativa vamos ver a estória de Procópio José Gomes Valongo, narrador em primeira pessoa, que conta como foi que acabou sendo o enfermeiro do coronel Felisberto, no interior do Estado.

Em certo momento, a narrativa vira uma estória meio macabra e, no fim, retoma a toada do início.

De novo, fiquei pensando na leitura do conto pelos leitores contemporâneos de Machado em 1884. O escritor é bastante hermético em seus textos. A estória se desenvolve bem, envolve a gente. No final, eu fiquei sem entender o que ele quis dizer com a paráfrase da sentença de Mateus, uma passagem da Bíblia.

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O livro de Hélio de Seixas - Os leitores de Machado de Assis - é muito instigante, mas será de leitura bem lenta. Vamos considerar que será um livro de provocação para minhas leituras e releituras de Machado no próximo período. Sem pressa com ele!

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.


segunda-feira, 27 de setembro de 2021

270921 - Diário e reflexões (Carta Capital)



Refeição Cultural - Carta Capital 1173


TRAMOIA NA PF

Tem sido difícil ler a edição impressa da revista Carta Capital. Só agora terminei a revista do início do mês, aquela que antecedeu todas as ameaças do golpe em 7 de setembro. Mas digo que vale a pena a leitura, mesmo com semanas de diferença porque os artigos e as reportagens são registros e impressões que extrapolam a semana de acontecimentos. 

A matéria de capa, "Tramoia na PF" nos lembra que o fato é só o começo do que vem por aí nessa terra dominada pelos desgraçados da casa-grande, que odeiam o país e o povo brasileiro. Na minha avaliação, teremos diversas operações lavajatistas até as prováveis eleições de 2022 para atacar Lula e o Partido dos Trabalhadores. 

Os artigos na edição foram muito bons. O de Guilherme Boulos "Feijão e fuzil" nos lembra que o miliciano no poder está preparando uma aventura armada no país com seu exército de milicianos; "Náusea", o artigo de Esther Solano, fala por muitos de nós. Excelente o artigo de Vilma Reis - "Os novos bandeirantes" -, falando sobre essa gente da casa-grande, bolsonarista e de direita, que se locupleta com a pilhagem do país do pós-golpe de Temer e Bolsonaro (p. 59).

Gostei do artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo - "Lula e a regulação da mídia". Belluzzo vai lá na fonte onde os desgraçados da casa-grande bebem, nos Estados Unidos, para nos informar das bases da "liberdade de imprensa" de lá, cuja base era o inverso do que prega a imprensa empresarial daqui. Era conter o risco de monopólio da impressão e opinião deles, o 1%.

"Há tempos, nas páginas de nossa brava e sobrevivente CartaCapital, recuperei as ideias centrais do relatório final da Comissão sobre a Liberdade de Imprensa nomeada pelo Congresso dos Estados Unidos no imediato pós-Guerra. Concluído em 1947, o relatório advertia: existe uma razão inversamente proporcional entre a vasta influência da imprensa na atualidade e o tamanho do grupo que pode utilizá-la para expressar suas opiniões. Enquanto a importância da imprensa para o povo aumentou enormemente com seu desenvolvimento como meio de comunicação de massa, 'diminuiu em grande escala a proporção de pessoas que podem expressar suas opiniões e ideias através da imprensa'." (p. 39)

PETROBRAS PRIVATIZADA... (o povo se f...)

Na seção "Capital S/A" vimos no que deu os tucanos-bolsonaristas se desfazerem da BR Distribuidora. Um cara agora, uma merda de ente privado vai dominar a distribuição de etanol no Brasil continental. Que beleza, heim! 

"COPERSUCAR - Fusão no etanol

A Vibra Energia, ex-BR Distribuidora, anunciou acordo com a Copersucar para formar uma joint venture comercializadora de etanol, a ECE. A Vibra ficará com 49,99% do capital social, por 4,99 milhões de reais, e a Copersucar, com 50,01%. As acionistas vão aportar 440 milhões de reais para iniciar a operação da ECE, que será 'a maior comercializadora de etanol do Brasil e uma das maiores do mundo'. Atualmente, a Vibra movimenta entre 6 bilhões e 6,5 bilhões de litros de etanol e a Copersuçar comercializa entre 4,5 bilhões e 5 bilhões de litros do biocombustível." (p. 45)

SAÚDE

Duas matérias tratam de questões relativas à "indústria" da saúde no capitalismo. 

A reportagem na seção "Nosso Mundo" traz o caso da "executiva" bilionária do Vale do Silício, Elizabeth Holmes, que aplicou golpe em zilhões de pessoas com uma ferramenta miraculosa que descobria tudo quanto é doença no sangue com uma simples gota colocada em uma maquininha: "A Theranos prometia revolucionar os exames clínicos, mas produziu uma gigantesca fraude" (p. 51)

A outra é o artigo de Riad Younes "Terapia pioneira na retina". O destaque da matéria diz "Procedimento feito no Brasil permitiu que uma paciente percebesse, pela primeira vez, que era possível enxergar no escuro". Lá no finalzinho é que a gente vai saber que "A paciente teve acesso à medicação graças a um processo contra o governo."

TRADUÇÃO: o procedimento de 1,8 milhão de real por olho foi pago por um processo judicial contra o SUS. Óbvio, né! O capitalista que criou o remédio não abre mão de seu lucro nesta indústria.

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Fecho meus comentários e registros. Como disse no início, vale a pena a leitura porque ela ultrapassa questões momentâneas, semanais.

Ahh, só mais uma coisa: a matéria sobre o lixo do Facebook e seu dono e o desejo de dominar o mundo está muito interessante. A matéria apresenta o livro Uma verdade incômoda, que fala a respeito, na página 60. 

William


sábado, 25 de setembro de 2021

250921 - Diário e reflexões


Vivi muitas histórias aqui na Letras-FFLCH.


Refeição Cultural

Sábado, 25 de setembro.

Que tenho a registrar nesta página de blog?

LITERATURA

Estou terminando a releitura do clássico Ulysses (1922), de James Joyce. Li a obra pela primeira vez duas décadas atrás, na tradução de Antônio Houaiss. A leitura foi difícil. Comecei diversas vezes e recomecei a leitura por não entender nada. Desta vez, estou relendo uma edição traduzida por Caetano W. Galindo, presente do amigo Sérgio Gouveia. Cheguei ao último capítulo, o monólogo interior de Molly Bloom. Agora meu entendimento da obra foi bem melhor. 

De novidade, li também o livro sobre o personagem Stephen Dedalus, Retrato do artista quando jovem (1916), publicado antes de Ulysses. Quando terminar a leitura, vou ver os dois filmes que tenho em casa e considero que minha missão com James Joyce estará concluída. Não pretendo ler Finnegans Wake (1939). O livro de contos de estreia do autor irlandês - Dublinenses (1914) -, já li várias vezes alguns dos contos.

Vi hoje uma entrevista muito esclarecedora com o professor Caetano Galindo, tradutor da edição que estou lendo. Ele fala sobre Joyce e Shakespeare. Muito interessante!

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LETRAS NA FFLCH-USP

Após vinte anos, vai chegando ao fim a minha relação formal com a Universidade de São Paulo. Entrei na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas no vestibular de 2000 e comecei o curso de bacharel em Português e Espanhol em 2001. Quando entrei minha vida era uma, meu projeto era ser professor, mas "no meio do caminho tinha uma pedra..." e de repente as veredas do grande sertão vida me levaram para outros destinos. Virei dirigente sindical no ano seguinte e a prioridade em minha agenda passou a ser as lutas dos trabalhadores. 

Após uma década tentando fazer as matérias obrigatórias, achei que havia concluído os créditos necessários ao bacharelado nas duas disciplinas. Fui trabalhar em Brasília. Voltei para São Paulo em 2018 e fui pedir minha colação de grau e meu diploma. Descobri que faltava fazer uma matéria obrigatória na grade curricular de minha época e precisei retornar ao curso e fazer mais dois anos de matérias pela grade atual e, quase quarenta créditos depois, concluí o percurso e me parece que agora chegou a hora de colar grau e pegar o diploma de bacharel para guardar em casa.

Confesso que ao perceber nesta semana o fim de meu cadastro nos sistemas da USP fiquei meio deprimido, senti um vazio dentro de mim, algo estranho. Acho que sempre senti um amor profundo pela Universidade, queria ser professor lá. A vida caminhou diferente. É isso. Vou sentir falta de ser "da USP".

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TODO CAMBIA (TUDO MUDA)

Andei refletindo a respeito de mudanças. Como nos lembra Mercedes Sosa: "Todo cambia". As veredas de minha vida me exigiram muitas mudanças e isso deve ter influenciado quem sou e o que sou porque somos hoje o resultado de todo o percurso que já fizemos.

Mudei de São Paulo aos 10 anos. Depois mudei de Minas Gerais aos 17 anos. Até os 30 anos de idade, precisei mudar do local onde vivia quase todo ano (contei na memória 10 mudanças!). Isso me fez sofrer muito. Morei em cada lugar... 

Ter que sair de um lugar logo que se adapta a ele é foda! E alguns lugares eram terríveis, tanto que tenho uma relação ruim com baratas por isso. Dia desses, ouvi a excelente entrevista do Mano Brown com Lula. Mano Brown, eu sei o que é morar num quintal com um monte de casas e um banheirinho em comum... é foda!

A mudança para Brasília por 4 anos foi uma situação difícil para minha família. As pessoas acabam tendo que viver a vida dos outros e as consequências vêm. A volta para São Paulo foi difícil também por causa do contexto no qual as coisas se deram. Três anos depois, ainda não consegui me ver livre dessa mudança inacabada. Juntou um monte de coisas. Para dar algum conforto aos que sofreram por minha causa, acabei deixando coisas inacabadas. 

Para tornar as coisas mais difíceis, vieram as mudanças radicais no nosso mundo, o golpe de Estado, a ascensão do Mal, a destruição de tudo.

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Fim das reflexões. Preciso providenciar a papelada pedida pela USP para concluir essa relação de amor que tive com a nossa querida FFLCH. Saio da Universidade aos 52 anos de idade, mas acho que a Universidade nunca vai sair de mim. Tenho muito amor pela USP, pela FFLCH, pelas Letras e pela educação.

William


Ulysses - Ítaca (A Casa), parte II



Refeição Cultural

"O que continha a primeira gaveta destrancada?

(...) dois preservativos de borracha parcialmente desenrolados com espaço para emissão, adquiridos pelo correio na Caixa 32, C.P., Charing Cross, London, W.C. (...) 2 cartões fotográficos eróticos que mostravam: a) coito bucal entre señorita nua (vista de costas, posição superior) e torero nu (visto de frente, posição inferior): b) violação anal por figura religiosa do sexo masculino (integralmente vestido, olhar abjetado) de figura religiosa do sexo feminino (parcialmente vestida, olhos diretos), adquiridos por correio na Caixa 32, C.P., Charing Cross, Londres, W.C." (p. 1016)


Vencidas as cem páginas do capítulo 17 de Ulysses, de James Joyce. Agora faltam os fluxos de consciência de Molly Bloom, naquela madrugada de 17 de junho de 1904.

Imaginem como foi para os leitores e comunidades a recepção de Ulysses na Irlanda, na Inglaterra e nas demais partes do mundo no ano de 1922 ao lermos acima essa pequena amostra do conteúdo da obra. Interessante, não é?

Após o fim da leitura do capítulo "Ítaca" nesta manhã de sábado, vi na internet uma entrevista muito esclarecedora do professor Caetano W. Galindo, tradutor desta versão que estou lendo. Ele fala sobre James Joyce e William Shakespeare e as explicações de Galindo são imperdíveis para os amantes de literatura e dos dois autores comentados.

Apesar do cansaço que me deu neste momento de proximidade do fim da leitura, uma obra como essa vale a pena ler, vale sim. Também acho interessante e válido buscar informações a respeito da repercussão da obra ao longo do tempo. As grandes obras literárias se incorporam às culturas das sociedades humanas.

Ulysses tem uma história de leitura com a comunidade internacional após 1922 assim como O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha a tem após 1605. Idem para Moby Dick após 1851, assim como Decameron após 1353. Para mim, leitor, é um privilégio ter tido a oportunidade na vida de ler tais clássicos.

Joyce concentrou em Ulysses muitas informações do mundo, da Irlanda, da literatura de Shakespeare e da literatura clássica; e mais: religião, política, imperialismo, capitalismo, linguagem, psicologia e comportamento humano, sociedade.

UM DIA NA VIDA DE UM TRABALHADOR


A contabilidade de Bloom nos mostra um pouco a respeito do personagem e do próprio cotidiano dos cidadãos dublinenses. O que comem, como se comportam, como funciona a sociedade em que vivem.

O dia do publicitário Bloom teve contato com a morte no enterro do Dignam, e teve contato com a vida, quando passou pela maternidade do hospital; conhecemos as preferências alimentares dele; vimos que ele se banha em locais públicos; e percebe-se que o dinheiro que tem é contado, os trabalhadores vivem no limite do ter e não ter dinheiro. Vimos isso no começo da obra, quando Stephen Dedalus e amigos contaram as moedas no bolso para saber como passariam o dia.

Outro momento interessante do capítulo foi quando vimos a descrição dos livros constantes na estante de Bloom, entre eles livros de Shakespeare, Spinosa e A. Conan Doyle (p. 998). Bloom poderia ser considerado um "homem cultivado" como diz Eliade, pois tem livros de Astronomia, Geometria, Geografia, História, Psicologia, Filosofia etc.

O capítulo tem de tudo. Do nobre e sagrado ao profano e tosco. Por exemplo: Enquanto mijam na grama, Bloom e Dedalus observam uma estrela cadente (p. 992).

Enfim, agora vamos para o fechamento com Molly Bloom.

William


Post Scriptum: a postagem anterior pode ser vista aqui.


Bibliografia:

JOYCE, James. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Animal racional e imbecil



Refeição Cultural

Sexta-feira, 24 de setembro do 2º ano da desgraça da pandemia.


TCHAU ÁGUA (II)

"É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade" (Saramago)

Segundo o neurocientista Miguel Nicolelis o ser humano possui cerca de 86 bilhões de neurônios. Isso inclui o Bolsonaro e os bolsonaristas porque estamos falando da espécie humana (é sério!). Por termos esse cérebro portentoso somos chamados de animais racionais, porque temos capacidade de raciocínio.

Os dicionários que consultei na internet dizem que imbecil é a pessoa que tem pouca inteligência, pouco juízo, pessoa tola, idiota. Ou seja, tem seres humanos imbecis, mesmo com 86 bilhões de neurônios. Agora faz sentido o Bolsonaro e o bolsonarismo. Gente imbecil, idiota. Acrescento outros qualitativos a essa gente: gente má, mau-caráter, gente ruim e, sobretudo, hipócrita.

O animal humano é o bicho mais contraditório do reino animal. Nós somos racionais, dotados da capacidade de raciocínio, inteligência, e somos imbecis, capazes das coisas mais tolas, idiotas, burras do reino animal.

Por que parei minha leitura matutina para registrar isso? Por causa do barulho infernal do Vap do prédio vizinho. Estamos vivendo na região Sudeste a maior crise hídrica das últimas décadas, os reservatórios de água estão quase no zero, a previsão é catastrófica para os próximos meses e o Vap do vizinho não para de funcionar. Dias atrás era a lavagem da quadra (ler aqui). Hoje é o telhado da guarita, tudo está um brilho agora. Viva!

Incomodados (minha esposa tentou denunciar para algum lugar), falamos com nosso síndico que contatou o síndico vizinho. A resposta cordial foi a explicação de que eles pagam um valor x de uso de água ao fornecedor (quota mínima), e como eles não chegam a utilizar a quantidade de água que pagam, eles estão tranquilos porque podem gastar mais, até chegar na quota mínima paga pelo condomínio. Também explicou que o condomínio tem sistema de reuso de água para mesclar com a água potável pública de todos nós.

Esses somos nós, animais racionais e imbecis humanos (me lembrei de Saramago falando sobre nós humanos no Ensaio sobre a cegueira - ler aqui). Imaginem quantos condomínios existem na grande São Paulo. Suponhamos que uns 1000 condomínios pensem como pensa o condomínio vizinho. "Tô pagando uma água que não tô usando, então posso gastar mais até ela acabar. Tô pagando!".

De novo repito o que disse na postagem anterior: sei que não vai faltar água para a soja, o milho, pro gado, pro agro-pop (quer dizer, vai, mas lá na frente, no deserto). No momento, não vai faltar água pra cerveja nem pro refrigerante. Sei que quando o que era o Brasil virar um deserto os donos do dinheiro do agro e das bebidas vão pra outro país, aliás já moram em outros lugares esses desgraçados (Miami que o diga!).

É isso! Eu estou tão de saco cheio do ser humano, que não estou conseguindo sequer sentar-me com a cabeça boa para escrever a minha parte sobre encontros de saúde que faremos com uma militância sindical que ainda se esforça diariamente para mudar essa merda toda que tá aí. Estou num azedume infernal.

Tchau água! Tchau! Aqui é Bolsonaro!

William


quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Preguiça



Refeição Cultural

Quinta-feira, 23 de setembro, dias de Primavera do 2º ano da pandemia.


Dizem que a Preguiça é um dos sete pecados capitais. Sei lá se essa merda é pecado, sei lá. Antigamente eu me vangloriava em dizer que esse era um dos pecados capitais que menos me afetava. Vai saber se era verdade! Tudo na vida humana são construções de narrativas. A vida é um palco e as pessoas são personas.

É provável que a Preguiça seja hoje uma das principais aliadas da Ira. Essas duas pragas foram muito bem usadas pelo capitalismo e pelos donos do capital e de todos os meios de produção nas sociedades modernas para manipular as massas humanas. Ira e Preguiça. Só de pensar a respeito dá uma preguiça desgraçada. A vontade é de deixar quieto e partir para alguma coisa mais fácil do que pensar.

A Preguiça é grande responsável pela pós-verdade, pelo mundo hoje ser um faz de conta onde a mentira, a fake news, se tornou a verdade do mundo paralelo. Se as pessoas não fossem preguiçosas, as de boa-fé, elas não seriam manipuladas e feitas de idiotas, zumbis ambulantes, semoventes dos donos dos pastos humanos.

É fácil inventar mentiras porque os inventores e manipuladores sabem que as pessoas não vão averiguar nada, só vão receber a mentira e gostar do que a mentira afirma, e assim vão comprar a ideia e repassar a fake news adiante. O animal humano, a espécie homo sapiens, faz isso desde que é gente. O que mudou com o passar do tempo humano na terra foi a tecnologia que aumentou a capacidade de ampliar o alcance da mentira. 

E assim chegamos aonde chegamos. 

Já deu preguiça de continuar desenvolvendo em texto tudo o que eu gostaria.

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Preguiça? Razão? Talvez eu tenha tosado a cabeleira por preguiça, um sentimento inconfesso. A razão me fez achar que se gasta um tempo enorme para tratar cabelos grandes, e tem a falta de água, e os apagões que vêm por aí, e longas esperas pra dormir quando se lava o cabelo. Sei não, pode ser preguiça mesmo.

Preguiça? Cansaço? Cheguei na página 1000 do Ulysses. Mas tá foda pra acabar a leitura do livro. Estou indo de umas 20 em 20 páginas agora. Já cheguei a ler 200 páginas em dois dias. Faltam umas 30 para chegar ao final do penúltimo capítulo e entrar no capítulo final do monólogo interior de Molly Bloom. Ai... já não vejo a hora de acabar a releitura. Já tive bons e maus momentos na leitura. 

Preguiça? Desânimo? Nunca tive preguiça de fazer exercícios físicos. A vida toda corri, fiz musculação, fiz outras atividades esportivas. Agora preciso fazer de verdade. Se não correr, morro. Sangue engrossa, pressão explode, colesterol e outras merdas me matam. Mas não tem sido fácil sair para os trotes. Correr e pedalar... Comecei pedalando mais forte. Agora o eu interior deixa a marcha ficar na levinha só para curtir o vento e o sol. Musculação então... 1000 vezes penso antes de ter coragem de pegar as anilhas em casa pra uma simples rosca direta. Flexões... antes da pandemia fazia umas dezenas... agora... Seria efeito da idade? (não, faixas dos quarenta, cinquenta e sessenta são jovens na atualidade. Não é idade). Seria a situação política terminal do Brasil? (não. Isso não é desculpa. Não é).

Chega. Já despreguicei demais.

William


quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Leituras e leitores



Refeição Cultural

Quarta-feira, 22 de setembro.


Reli pela manhã o "Prólogo" de Dom Quixote de La Mancha (1605), de Miguel de Cervantes. Li pensando nas questões sobre leitores de literatura apontadas por Hélio de Seixas Guimarães no livro Os leitores de Machado de Assis (2004).

Aliás, me lembrei do "Prólogo" e na importância do leitor na obra de Cervantes ao rever parte do filme O homem de La Mancha (1972), dirigido por Arthur Hiller com Peter O"Toole, James Coco e Sophia Loren. O filme é baseado no musical de mesmo nome. O filme é uma graça! Achei em meus guardados velhos.

Fiquei pensando impressionado no quanto Miguel de Cervantes foi revolucionário em sua época. Pra começar, é difícil até imaginar como que esses caras conseguiam escrever obras literárias naquela época. Até em termos materiais - papel, tinta etc -, que dirá uma pessoa como ele, que viveu em guerras, foi preso durante anos. Absurdo esses gênios conseguirem escrever!

Miguel de Cervantes "explora" seus leitores em todas as possibilidades, assim como Machado de Assis fez uns três séculos depois. Os caras são gênios demais! No prólogo ao Quixote vemos a genialidade, tem ironia e provocação ao estilo Machado de Assis. "Desocupado leitor...". O escritor ou narrador da estória (o leitor vai descobrir depois) já avisa no prólogo que vai aprontar poucas e boas com os leitores.

Ainda sobre leituras. Estou quase terminando a leitura do livro Câncer, eu? (2020), de nosso colega da comunidade Banco do Brasil, Sergio Riede. O livro é muito bom de se ler, é leve, apesar de abordar tema tão duro. É também autobiográfico e mesmo a gente que conhece ele pela convivência nas lutas sindicais acaba descobrindo muita coisa sobre sua vida.

E estou me aproximando das mil páginas da releitura de Ulysses (1922), de James Joyce. Ontem à noite li mais um pouco. É diferente ler Joyce.

Cada escritor, cada leitura. Cervantes, Machado, Riede e Joyce escreveram em seus tempos, em seus contextos, sobre conteúdos que convieram a eles. Nesses casos todos, a leitura vale a pena.

Por fim, reli um texto meu, de 2011, que me deixou emocionado (ler aqui). O texto falava sobre o livro de George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), mas falava também sobre igualdade, desigualdade, falava sobre minha tia Alice. Foi bom reler o texto. Ele foi um momento de reflexão de uma época em que eu era dirigente sindical e meu mundo era todo de discussões ideológicas e filosóficas sobre a vida e o mundo do trabalho.

É isso. Aqui é um blog e diário é pra escrever mesmo.

William


Vergonha



Refeição Cultural (indigestão...)

O dia de ontem terminou como um dos dias mais vexaminosos na história da diplomacia do povo brasileiro. O desqualificado energúmeno que os brasileiros colocaram na presidência do país em 2018 esteve na ONU e durante vários minutos do tempo precioso da humanidade falou muita meeeerrrrda, mentiras, coisas desconexas, usou o espaço da tribuna da ONU para falar pro gado aloprado de seu chiqueirinho. Que vergonha senti como cidadão brasileiro.

Nos anos noventa, eu estudava para concursos públicos e um dos concursos para os quais eu estudava a bibliografia de referência era para o da carreira diplomática. Então, por conhecer minimamente a história da diplomacia brasileira a começar pelos Rio Branco, pai e filho, sei o quanto a diplomacia brasileira era respeitada no mundo todo há mais de 150 anos de história. Com essa quadrilha que alçaram ao poder por um conjunto de golpes e conluios da casa-grande tudo no Brasil foi destruído. Tudo! Nosso país foi destruído fisicamente, espiritualmente. E jogaram cal nesse solo-continente com a ascensão do bolsonarismo.

Eu não tenho estômago e cérebro para ouvir aquele troglodita falar, mas ao ver os comentários e a repercussão vi que foi foda, foi de doer tudo por dentro. 

Ao ouvir Celso Amorim à noite, ele falava da tristeza profunda que estava sentindo por tudo que viu e ouviu no fatídico dia daquele bando brasileiro em Nova Iorque e na ONU. Imaginem vocês que o "embaixador" do Brasil fez gesto de arminha diante do símbolo de paz entre as nações... O "ministro" da saúde apontou o dedo do meio para pessoas que criticavam a comitiva dos bárbaros...

Bom, os especialistas em saúde e otimismo dizem que a gente não deve somatizar as coisas, que não devemos nos vitimizar etc. Então tá, ficamos assim. Sem somatizar e sem vitimização ao ver tudo o que está acontecendo desde o golpe de 2016, desde as fraudes da Lava Jato, desde a prisão de Lula e os zilhões de fake news para alçar Bolsonaro e centenas de trogloditas aos parlamentos e executivos em 2018.

Tudo bem. Eu quero sobreviver. 

William

terça-feira, 21 de setembro de 2021

210921 - Diário e reflexões



Refeição Cultural

Terça, 21 de setembro do 2º ano da pandemia, 3º ano da era bolsonariana.

    

TCHAU ÁGUA

O barulho do Vap me tortura há horas. A água potável pública está quase acabando nos reservatórios da região Sudeste e o prédio vizinho liga aquela desgraça de Vap todo santo dia, para pegar a nossa água potável e lavar a quadra e as áreas comuns do condomínio. Mas isso não é nada!

A água potável brasileira está se esvaindo em pastos de plantação de grãos para exportação. Pastos que se ampliam cortando e queimando florestas e cerrados nativos para mais pasto, mais uso de água, mais exportação para os outros países (o agro é pop - pro dono). Sem as florestas os ciclos de água se interrompem e bau bau água. E tem a privatização da água também. Vocês acham que vai faltar água pra fazer refrigerante e cerveja?

Recomenda-se que as pessoas vejam as coisas de forma otimista, que não somatizem em si a tristeza e a raiva ao observarem a realidade com mais consciência. Devemos evitar sofrer em excesso com as desgraças ao nosso redor e conosco mesmo. Tá bom. Beleza. Ficamos assim.

Hoje está um calor de 34º aqui na região onde moro no Estado tucanistão. Saí para caminhar um pouco e desopilar meu fígado tão maltratado ao longo de seus cinquenta e dois invernos.

Cabelo. Meu cabelo legado pelo meu código genético está daquele tamanho. Dá um trabalhão lavar a coisa. Se somar as perspectivas do que vem por aí mais o trabalho de higiene que exige água - água que está acabando para nós que não somos o 1% - o resultado será a maquininha de tosar. Quando começarem os apagões e a falta de água vai ser foda a vida civil dos 99%. (não, tosar minha cabeleira não é decisão para colaborar com aquelas campanhas manipuladoras de pessoas economizarem água no banho e na água de descarga do cocô. No capitalismo, essas campanhas são patifarias)

Coisas da história e da cultura. Segue minha indefinição do que fazer com quilos de papel com história registrada neles. Picotar? História pra quê? pra quem? Quem se interessa em ler alguma coisa nos tempos que correm?

William


A eleição de Bolsonaro foi o nosso 11/9



Refeição Cultural

Segunda-feira, 20 de setembro. 3º ano do impacto.


Estava terminando a leitura da noite quando vi algo na televisão que me fez pensar a respeito de meus sentimentos em relação ao Brasil e ao povo brasileiro neste momento da história. Pela manhã, já havia escrito a respeito de minha desilusão com o país e com os seres humanos.

Um entrevistado no Roda Viva lembrava que em 2018 o povo brasileiro votou em Bolsonaro por ele ser o Bolsonaro. Cara, é isso mesmo! Esse lixo humano foi eleito por ser o que é. Meu padrinho e toda a sua família votou nele. A maior parte das pessoas com quem convivi por décadas na família votou nele por ele ser o que é (deixar ele ser eleito se abstendo foi a mesma coisa naquele fatídico dia do 2º turno, a tal "escolha difícil"). Pessoas que conheço no condomínio onde vivo há duas décadas votaram nele. As pessoas não foram enganadas. Elas votaram no que Bolsonaro disse e pensa e defende, no que ele é.

No início do século 21, o mundo assistiu ao atentado às torres gêmeas do World Trade Center naquela manhã de 11/9 de 2001. Aviões comerciais com dezenas de passageiros foram sequestrados e arremessados contra as torres que simbolizavam o falo do capitalismo norte-americano, o espírito americano do homem branco macho alfa armado até os dentes, senhor de escravos e dominador dos povos do Sul e do Oriente. Aquele ataque ao império romano do século 21 deve ter sido, entre outras coisas da política, o acúmulo de muito ódio dos povos do Oriente em relação ao mundo ocidental. Aquelas cenas de fumaça sobre Nova Iorque mudaram o mundo. O mundo ficou pior com a desculpa dada aos Estados Unidos para implementar sua "Guerra ao Terror".

A eleição de Bolsonaro naquele dia 28 de outubro de 2018 foi o nosso 11/9. O Brasil nunca mais seria o mesmo. As relações sociais nunca mais seriam as mesmas. O povo brasileiro havia eleito o que Bolsonaro significava, o que havia sido a vida inteira na política, na vida pública e na vida privada. Bolsonaro nunca escondeu o que defende, o que pensa, o que propõe, o que fez em três décadas de vida pública (uma das consequências de sua vida de político foi ficar muito rico, ele e toda sua família).

Alguns temas inerentes à sociedade humana ao longo da história do mundo são recorrentes no entorno dessa figura, desse ser humano escolhido pelo povo brasileiro como líder de uma nação: tortura, violência, assassinato, corrupção, privilégio, ignorância, manipulação, machismo, racismo, cinismo, maldade, incompetência, estupro, ódio. 

A história não se repete. Assim como o 11/9 não foi nada parecido com eventos históricos na sociedade humana, nem sequer foi o Pearl Harbor dos norte-americanos, a eleição desse ser pelo povo brasileiro não reproduz o nazismo de Hitler, nem o fascismo de Mussolini, Franco, Salazar entre outros. A eleição de Bolsonaro muda nossa história, assim como a existência daqueles citados mudou a história dos países deles e do mundo. Mas essa aberração é só nossa, de mais ninguém (apesar das consequências globais da destruição física do Brasil).

O difícil é entender o que se passou aqui com o povo. O que ainda se passa com essa massa humana de mais de duzentos milhões de homo sapiens que já permitiram a permanência de Bolsonaro por todo esse tempo. O difícil é entender!

O Brasil nunca mais será o mesmo. A eleição de Bolsonaro foi o nosso 11/9.

William


segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Perda das ilusões com o Brasil (e com os homens)



Refeição Cultural

"Para Schwarz, em algum momento entre Iaiá Garcia (1878) e as Memórias póstumas (1880), o escritor teria chegado à conclusão de que a tônica do processo social brasileiro não estava na transformação de escravos e dependentes em cidadãos, saída de alguma forma tentada nos primeiros romances, mas na articulação de modos precários de assalariamento com as antigas relações de propriedade e mando. A partir daí, 'Machado insistiria nas virtualidades retrógradas da modernização como sendo o traço dominante e grotesco do progresso na sua configuração brasileira', criando narradores como Brás Cubas e Bento Santiago, que se ofereciam em espetáculo, trazendo à luz os procedimentos arbitrários e violentos da elite brasileira. A perda das ilusões, para Schwarz, não seria nos homens, mas no Brasil, devido à percepção, por parte do escritor, da inviabilidade de superação das iniquidades sociais mesmo depois de abolida a escravidão." (p. 35)


Ontem, por coisas do cotidiano, tive um momento de revolta e fiquei pensando um monte de merda, por horas. Ainda estou pensando em como mudar alguma coisa nessa coisa que virou a vida, o país, o mundo.

De vez em quando nos lembramos ou nos atentamos para os fatos da vida. Lendo hoje sobre Machado de Assis e sua obra no livro de Hélio de S. Guimarães, achei uma expressão que resume o que estou sentindo.

"A perda das ilusões, para Schwarz, não seria nos homens, mas no Brasil, devido à percepção, por parte do escritor, da inviabilidade de superação das iniquidades sociais mesmo depois de abolida a escravidão."

Eu perdi a ilusão em relação ao Brasil. Pior pra mim, porque perdi também a ilusão nos homens. Que vazio da porra! Que país miserável! Que terra iníqua! Que miséria!

Chegarmos ao bolsonarismo, ao poder da milícia, à máfia no poder, foi a pá de cal como se dizia antigamente. E esse desfazimento do nosso mundo veio justamente após o período de melhor perspectiva para o que poderíamos ser no futuro, já que o presente sob os governos do Partido dos Trabalhadores (os dois de Lula e o 1º de Dilma) era de oportunidades para um futuro mais justo para a quase totalidade do povo (os 99%) que é descendente de mãe índia, preta ou mestiça.

Ontem, me deu vontade de fazer algo, mudar alguma coisa. Quis encerrar minhas contas nas redes sociais. Quis jogar coisa fora, tenho tanto papel, coisa de história de nossas lutas, não servem pra mais nada. Quis passar um tempo sozinho sem ouvir ver contatar qualquer ser humano. Cara, tô de saco cheio dessa espécie animal. 

Provavelmente muita gente sentia isso na época do nazismo, dos fascismos e outros regimes nos quais o homo sapiens se comporta como os animais mais baixos na cadeia alimentar, carne tenra pra predador mesmo. Quando me lembro dos imbecis bolsonaristas, dos crentes manipuláveis por canalhas que os exploram em nome de deuses, quando vejo gente espalhando mentiras ridículas ao nosso redor, desisto do ser humano.

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O livro de Hélio Guimarães estuda os leitores empíricos - reais e possíveis - e os ficcionais de Machado de Assis no século XIX. O Brasil era uma terra de analfabetos. Nossa burguesia não era "esclarecida" como inventam ser a burguesia europeia. 

O mundo humano é uma eterna construção de narrativas - as "meritocracias" para justificar as riquezas. E sempre há corrupção por trás das fortunas, sempre! A classe trabalhadora se fodeu para que alguns fossem bilionários. É corrupção!

Aqui no Brasil, na época de Machado, era uma gente tosca igualzinho a burguesia de hoje, essa desgraça que mantém Bolsonaro e a máfia no poder. Tem dinheiro na conta porque vende o Brasil por vinténs, mas nunca leu na vida, não sabe o que é cultura. Conheço gente que cresceu comigo, que se acha alguma coisa, que nunca teve um livro na estante de casa. Se tinha, era de enfeite.

Bah! Essas coisas da atualidade são opinião minha, não do Hélio Guimarães.

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Quem lê hoje? Quem lê, lê o quê, hoje? Saio para andar ao redor de meu mundo. Os motoboys leem? As meninas que atendem no comércio local leem? Se quiserem ler, leriam quando? Toda essa classe trabalhadora miserável trabalha e se locomove por umas 14 a 16 horas por dia. A troco de vinténs.

Quem lê? Por que guardar centenas de quilos de textos sobre a história do movimento de luta dos trabalhadores? Toda vez que pego isso pra jogar fora, picar, ensacar, fico com dó e a coisa continua lá, aos quilos.

Quem quer saber de história? Quem quer saber de literatura? Quem quer saber de cultura?

Nem história virtual serve mais. Os sites do meu lado da classe apagam nossa história com mais rapidez que os sites da outra classe, da classe de nossos inimigos.

Quem lê? Quem se interessa por nossa história?

William


Bibliografia:

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial: Edusp, 2004.

domingo, 19 de setembro de 2021

O Diabo, a venalidade e o fim da solidariedade



Refeição Cultural

Domingo, 19 de setembro de 2021. Osasco, São Paulo.


Silêncio relativo na varanda de casa. Sol forte lá fora, calor de quase 30º. Além do som dos carros na avenida lá embaixo, os sabiás da região seguem cantando, cantando, cantando. Nessa época do ano, eles cantam a noite toda. É maravilhoso! No meio da madrugada, o canto dos sabiás predomina sobre qualquer outro som que venha de forma episódica. 

Agora mesmo - onze e meia da manhã -, os joões-de-barro cantam também. Os bem-te-vis idem. As maritaquinhas conversam entre si. Uma sirene de ambulância; os motoboys trabalhando sem direito algum. Um helicóptero que passou no céu: a repressão ou algum magnata passeando. Mas, de fundo, segue o canto dos sabiás...

Reli o conto machadiano "A igreja do Diabo" (1883). Quando lemos obras fantásticas, inteligentes, simbólicas e metafóricas como essa, ficamos perplexos com a existência de seres humanos como Machado de Assis. Ao ler o conto no meu contexto de mundo, de vida, de localização, é como se tivéssemos encomendado ao Machado o texto para publicar neste domingo de sol e canto do sabiá no Brasil pós golpe de 2016.

O Diabo avisa a Deus que vai fundar uma igreja na Terra, com todos os dogmas e liturgias que as igrejas de Deus têm. O Diabo se estabelece e domina o mundo. Ele explica o sucesso de sua estratégia de expansão dos empreendimentos. Ele trabalha fortemente com a venalidade e com o fim da solidariedade humana, essa praga. 

NO CAPITALISMO, TUDO SE VENDE E SE COMPRA

Se os homens podem vender as coisas materiais que dizem ser suas, por que não poderiam vender seu corpo, sua honra, seus desejos, seus princípios...

"Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório..." (p. 187)

A SOLIDARIEDADE, ESSA PRAGA COMUNISTA

"Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença, em alguns casos, ódio ou desprezo..." (p. 188)

MACHADO E SEUS LEITORES

O escritor mulato sabia de duas coisas ao escrever seus romances, contos, crônicas e reflexões: o Brasil era uma terra de analfabetos miseráveis (censo de 1876) e os poucos que sabiam ler eram os da "burguesia", essa gente burra, ignorante, iletrada que não mudou nada em 150 anos. 

Por isso sua leitura não é simples. Sua técnica narrativa tinha que fazer como nossos artistas fizeram na ditadura civil-militar de 1964-1985, eles tinham que escrever com mensagens nas entrelinhas, pra essa gente burra e troglodita não entender a mensagem, a ironia.

BRASIL É GOVERNADO PELO ANTICRISTO

Enfim, dias atrás li o editorial de Mino Carta na revista Carta Capital nº 1172 (ler aqui) e ele citava Celso Amorim e Leonardo Boff, que explicou o que é ser anticristo e deixou claro que o sujeito que ocupa a cadeira da presidência do país é o anticristo.

Ler Machado de Assis com o olhar e a experiência do leitor que teve a oportunidade na vida de se alfabetizar e de se politizar é descobrir que desde sempre nós tivemos pessoas que fizeram a sua parte e o que era possível para criticar a situação miserável em que a ampla maioria dos povos vivem, não por ser natural, mas porque os valores que prevalecem naqueles contextos são os de minorias privilegiadas.

CENTENÁRIO DE PAULO FREIRE - Que posso dizer sobre nosso educador maior? Paulo Freire vive! Eu esperancei e vivenciei a experiência do método de Freire ao atuar na formação sindical por muitos anos. Viva Paulo Freire! 

NOMADLAND - Assisti ontem ao filme Nomadland (2020), ganhador do Oscar 2021 e fiquei pensativo, fiquei triste, constatei o que já sabia. Mas as reflexões ficam para outra hora, se é que escrevo algo a respeito. No filme, vemos tudo que o Diabo introduziu em sua igreja, a venalidade, a questão da solidariedade, tudo. 

Aliás, no filme vemos as franjas, questão central do conto de Machado. Nem tudo está perdido, nem tudo. Caso queiram ler o conto, é só clicar aqui.

Bom domingo!

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.

sábado, 18 de setembro de 2021

País laico? O Brasil é o país da hipocrisia!

 


"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil" (Preâmbulo da Constituição Federal de 1988)


Não é uma piada, infelizmente. A introdução da lei maior do Estado brasileiro cita textualmente "Deus" e aí dizem que o Brasil é um país laico. 

Eu queria ver se a Constituição Federal fosse promulgada no dia 5 de outubro de 1988 com uma leve alteração nessa entidade citada. Algo como:

"sob a proteção de Exu..."; 

"sob a proteção dos orixás"; 

"sob a proteção de Alá..." etc.

Já pensaram nisso? Queria ver se haveria alguma gritaria ou não por grafarem na Carta Magna uma outra nominação das diversas existentes das religiões ao invés de "Deus".

Que moral nós temos para dizer que o Brasil é um país laico? Vá pra casa do chapéu!

Aí reclamam de o genocida larápio indicar para uma das vagas da maior corte de justiça do país um sujeito que diz que os picaretas dos bispos da linha religiosa dele estão acima dele mesmo e das leis terrenas. Meu, vá pra...

O Brasil não é para amadores!

William

Post Scriptum: não tenho nada contra religião alguma ou as mais diversas formas de fé. Cada homo sapiens está imerso em sua cultura humana.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Ulysses - Ítaca (A Casa)



Refeição Cultural

E então começamos o penúltimo capítulo do livro Ulysses, de James Joyce, a epopeia de Leopold Bloom pela Dublin de um dia comum de junho de 1904, uma quinta-feira, dia 16. De Bloom e de Stephen Dedalus. E também, de Molly Bloom, que aparece mais na primeira parte da obra e que fecha a epopeia de Bloom num monólogo interior surpreendente (isso não é um spoiler, seria se eu dissesse a vocês o que ela pensa durante 70 páginas rsrs).

Já estamos na madrugada de 17 de junho. Bloom está em casa na companhia de Stephen. Nessa parte, um narrador descreve as cenas para nós, leitores. Muito interessante! O narrador faz perguntas e ele mesmo as responde.

"Que cursos paralelos seguiram Bloom e Stephen ao voltar?" (p. 942)

"Sobre o que deliberou o duunvirato durante seu itinerário? (p. 943)

Bloom esqueceu a chave de casa no bolso da outra calça... e o narrador nos conta isso. É muito engraçado! Bloom teria ficado puto da vida porque ele pensou duas vezes que não podia esquecer a chave e esqueceu a chave. Acabou pulando o muro para entrar.

E as perguntas do narrador e as respectivas respostas seguem:

"O que Bloom viu no fogão?" (p. 949)

" O que Bloom fez no fogão?" (Bloom pegou a chaleira e foi até a torneira para pegar água. Na pergunta e resposta seguinte por parte do narrador, ficamos sabendo que o período é de estiagem e que há racionamento de água)

"E fluiu?

Sim. Do Reservatório Roundwood (...) ainda que devido à prolongada estiagem de verão e a um suprimento diário de 47,3 milhões de litros a água houvesse caído abaixo da linha do vertedouro de transbordamento razão pela qual o responsável pela municipalidade e engenheiro de saneamento, senhor Spencer Harty, C. E., sob instruções do comitê de saneamento, proibira o uso de água do município para propósitos outros que não os de consumo (vislumbrando a possibilidade de se ter de recorrer à água impotável dos canais Grand e Royal como em 1893)..." (p. 949)

COMENTÁRIO: um século atrás já era sabido por autoridades públicas de cidades e países do mundo que é necessário regrar o uso de água em períodos de estiagem. MENOS NO BRASIL DE TEMER E BOLSONARO! Não teremos água e luz porque não há planejamento algum focado na população do país. Enquanto as águas secam nos reservatórios, vemos o prédio ao lado gastando o resto da água potável lavando o chão e o parquinho da área comum...

AS PROPRIEDADES DA ÁGUA

Uma das partes mais legais até agora no capítulo, é a descrição das propriedades da água, nas páginas 950 e 951 da edição que estou lendo. Como no Ulysses tudo é muito grande, não dá para colocar o excerto aqui, só citar as páginas.

Aliás, o capítulo no qual estou tem cem páginas, é um livro!

Vejam só o começo:

"O que na água Bloom, aguamante, extrator de água, aguatransportante, retornando ao fogão, admirava?

Sua universalidade: sua equanimidade democrática e constância e sua natureza ao buscar seu próprio nível (...) sua preponderância de 3 para 1 sobre a terra firme do globo (...) sua violência em maremotos, trombasdágua, poços artesianos, erupções, torrentes, redemoinhos, inundações, enchentes, tsunamis, divisores de água, diques, gêiseres, cataratas, turbilhões, maelstroms, alagamentos, dilúvios, clataclismos..." (p. 950/951)

9 MESES SEM BANHO

Fecho a postagem com uma curiosidade sobre o jovem Stephen Dedalus. O rapaz não toma um banho desde outubro do ano anterior. Ele é hidrófobo, nos diz o narrador. Aff... cada lugar do mundo com seus costumes!

"Que razão Stephen forneceu para declinar da oferta de Bloom?

Ser ele hidrófobo, odiando o contato parcial por imersão ou total por submersão em água fria (tendo seu último banho tido lugar no mês de outubro do ano anterior), opondo-se às substâncias aquosas do vidro e do cristal, desconfiando de aquosidades de pensamento e de linguagem." (p. 952)

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É isso! Seguimos lendo os diversos livros produzidos pelas diversas culturas da sociedade humana. 

William

Post ScriptumA última postagem pode ser acessada clicando aqui.


Bibliografia:

JOYCE, James. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

150921 - Diário e reflexões (Carta Capital)



Refeição Cultural - Carta Capital 1172


O CUSTO BOLSONARO

Começo esta refeição cultural com o início do editorial de Mino Carta a respeito do sujeito no comando do país:

O ANTICRISTO

"Conta um caríssimo amigo, Celso Amorim, ter ouvido de Leonardo Boff a seguinte definição da natureza de Jair Bolsonaro: 'Trata-se do anticristo'. Talvez seja este o perfil mais convincente para qualificar o presidente brasileiro, eleito, como sabemos, ao cabo de uma série de golpes de Estado que reduziram o Brasil à situação atual. Que quer dizer anticristo? O destruidor de tudo aquilo que na vida faz sentido, da razão e de qualquer nobre sentimento, como a solidariedade e a compaixão."

Gostei muito desse conceito de anticristo, um conceito para lá da religião e do sobrenatural. Hoje, de fato, convivemos com uma horda de anticristos, principalmente os animais humanos que denominamos no Brasil como "bolsonaristas". Essa gente é do mal, é uma gente que segue o anticristo, cujo objetivo diário é destruir tudo o que dá sentido à vida humana, solidariedade, amor, fraternidade, tolerância, amizade etc.

A matéria de "Capa" traz o custo que estamos pagando pelo golpe de Estado que interrompeu a democracia e a esperança que avançava no Brasil com os governos petistas. O quadro na página 13 traz números que desesperam qualquer pessoa que segue os princípios cristãos, independente da religião ou fé pessoal. O povo está sem emprego, sem direitos, sem oportunidades, o povo está na merda por causa do que fizeram com o Brasil os bandidos da Lava Jato, os meios de comunicação comercial e os partidos de direita como o dos tucanos.


Eu tenho tido até dificuldades para ler a edição impressa de Carta Capital porque a leitura nos traz informação factual, informação dolorosa, mas é preciso ser firme e conhecer a realidade. Estou demorando, mas acabo lendo a revista uma ou duas semanas depois que chega. Não tenho o direito de me alienar. Senão viro um desses zumbis aí fora.

Termino o comentário recomendando o artigo de Lídice da Mata, excelente como sempre. "Estado em desconstrução" é um texto para reflexão e para nos manter indignados. Ela fala dos riscos da Reforma Administrativa (PEC 32) que vai acabar de vez com os serviços públicos do Estado brasileiro. Sem se indignar com as injustiças e com o que é ruim para o povo, a gente corre o risco de virar aqueles zumbis lá fora.

"A taxa de funcionários de estatais e órgãos dos governos federal, estaduais, municipais, além de autarquias e entes como o Judiciário e o Ministério Público, não corresponde a 5% do total de habitantes no Brasil, quando o porcentual ideal seria em torno de 10%, como vemos em países desenvolvidos, como Alemanha, Espanha, Itália e Estados Unidos, dentre outros." (p. 29)

Enfim, a edição 1172 está muito boa (a capa com a efígie está demais!), mas não dá para comentar cada uma das seções. 

Gostei das indicações de livros da seção "Plural", tem um livro novo de Alberto Manguel, o autor de um dos melhores livros que já li: Uma história da leitura, de 1996 (ler a respeito aqui). O livro Encaixotando minha biblioteca eu gostaria de ler. Mas eu efetivamente preciso parar de comprar comprar e comprar livros, é um abuso isso. Além de não conseguir ler tudo o que tenho, é uma coisa que tem me incomodado muito - comprar - em meio a tanta miséria do povo de meu país.

É isso. Fico por aqui.

William


Diários com Machado de Assis (VIII)



Refeição Cultural

Quarta-feira, 15 de setembro do 2º ano da pandemia mundial de Covid-19.


UNS CUBAS!!! AQUELA MESA DE JANTAR DE GENTE BRANCA DECRÉPITA...

Pela manhã, li a apresentação de John Gledson ao livro de Hélio de Seixas Os leitores de Machado de Assis (2004). É leitura de poucas páginas e muita reflexão. Talvez eu demore anos para ler o livro, se é que um dia termino a leitura. O que importa é cada página lida, e a reflexão.

Em minha reflexão anterior sobre Machado (ler aqui), disse que fiquei pensando como ele deveria se sentir em relação a ser amigo e apadrinhado de um escravagista como o escritor José de Alencar. Difícil essa situação para um mulato, descendente de escravos.

Gledson também imagina como deve ter sido difícil para Machado ler as críticas de seus colegas da época, porque alguns eram francos até demais no dizer o que achavam do escritor mulato:

"(...) e alguns já terão lido na biografia de Magalhães Júnior a terrível referência ao escritor mulato, autor de Ressurreição, como um 'feio candelabro que despede raios de vivíssima e deslumbrante luz' (Machado teria rido ou chorado diante disso?)." (p. 18)

Na apresentação que elogia o imenso trabalho de pesquisa feito por Hélio de Seixas Guimarães, Gledson nos lembra das "mudanças claras e consistentes" na forma como os leitores eram evocados e imaginados nos romances e contos de Machado. Também afirma que o escritor buscou experimentar o novo a cada obra após Memórias póstumas de Brás Cubas (1880).

Uma informação relevante na página 20: o censo de 1876, que revelou o analfabetismo no Brasil, mexeu com os propósitos e ideais literários dos escritores naquela época. Éramos um bando de analfabetos (éramos?).

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MÉMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

A leitura dos capítulos XXVIII a XXXV de Memórias póstumas de Brás Cubas me deixou pensando muito a respeito do Brasil, a respeito de nós. 

Me fez pensar naquele jantar cujo vídeo circula pela internet com aqueles homens brancos e decrépitos, com o golpista Temer à frente, jantar oferecido pelo sujeito acusado de quebrar a Bolsa de valores do Rio, com o dono de um canal de TV, e aquele nojo todo que estava ali. Os donos do Brasil.

Todos eles são Cubas, todos eles. Todos eles tratam as mulheres e os pretos e as gentes como Brás Cubas trata.

E se pensarmos bem, nós todos somos as eugênias, somos os almocreves dos capítulos anteriores, somos as borboletas pretas. Todos nós que não somos aqueles Cubas da mesa de jantar. A culpa daquela gente existir e viver e viver e viver às custas da gente é nossa! A culpa é nossa. Borboletas pretas! E de almas sensíveis (uns idiotas!).

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. - São Paulo: Panda Books, 2018.

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial: Edusp, 2004.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Superman: entre a foice e o martelo



Refeição Cultural

Ganhei de meu filho um belo presente de Dia dos Pais, um HQ muito interessante: Superman: entre a foice e o martelo, criação de Mark Millar, com ilustrações de Dave Johnson, Kilian Plunkett, Andrew Robinson e Walden Wong. A edição colorida e com capa dura foi lançada pela Panini em 2017, mas a obra é do início dos anos dois mil, pelo que se vê na introdução de Tom DeSanto, de outubro de 2003.

A postagem não será uma sinopse a respeito da obra como se costuma fazer. É provável que haja boas matérias sobre as qualidades e críticas desse roteiro de Mark Millar. Meu filho mesmo me enviou um vídeo muito bom sobre esse HQ, feito pelo youtuber Elba. Vale a pena assistir. Aliás, a edição que Elba usa para comentar não é a que tenho, que é mais recente, de capa dura. 

Após ler durante vários dias a estória, reli hoje de uma só vez. A segunda leitura foi bem melhor que a primeira, isso posso dizer. As ilustrações são muito legais. O roteiro deve ter efeitos diferentes de acordo com o conhecimento de cada leitor. Como não conheço o mundo dos HQ e dos super-heróis, perco referências na narrativa. Mas isso não atrapalhou o entendimento da estória.

O que mais fiquei pensando a partir da ideia de Superman: entre a foice e o martelo foi a respeito da ideologia, uma das abstrações humanas que sempre pesaram na definição da história das sociedades e que hoje voltou a ser determinante no século XXI nessa nova guerra estúpida que vivemos no seio do capitalismo mundial. A ideologia da classe dominante, o chamado 1%, está destruindo o planeta Terra e as chances de vida para as mais diversas espécies que existem até o momento.

De forma simples, a estória é a seguinte: a nave com o bebê extraterrestre sobrevivente do planeta Kripton não caiu em uma fazenda em Smallville, no Kansas, EUA. Caiu em uma fazenda de produção coletiva na Ucrânia, URSS. Anos trinta. E daí a estória se desenvolve. Superman é o herói e líder da União Soviética de Stalin e pós Stalin e não um herói norte-americano na luta contra os comunistas no auge da guerra fria. 

O quadrinho tem 3 capítulos: "Amanhecer", "Zênite" e "Poente". Na primeira parte conhecemos Superman e seu mundo soviético. Conhecemos os Estados Unidos do cientista Lex Luthor, casado com a jornalista Lois Lane Luthor. Na segunda parte temos as lutas entre os dois lados e na terceira o desfecho da estória. Tem de tudo na trama, tem o Batman, tem um tal Brainiac, que pesquisei depois para saber que é um dos inimigos de Superman assim como Luthor. Enfim, como a narrativa é uma inversão do que conhecemos, todos têm papéis trocados ao que se conhecem deles.

Resumi bastante, porém quero falar meu sentimento em relação à questão da ideologia.

IDEOLOGIA E DOMINAÇÃO CULTURAL

A primeira coisa que fiquei pensando durante e após a leitura do quadrinho foi a respeito de ideologia. Ideologia é tudo no mundo da sociedade humana. Ela está por trás de tudo. Ideologia é até a ferramenta básica para manipular as pessoas contra a questão da "ideologia". 

E penso mais: vamos nos acabar em nome das ideologias. Quem sabe outras formas de vida sigam adiante no planeta Terra se nós mamíferos humanos nos acabarmos logo, antes de inviabilizarmos de vez qualquer forma de vida neste "Pálido Ponto Azul" no universo, como dizia Carl Sagan.

DESDE CRIANÇA, TORCEMOS PELOS INVASORES

Quando eu era criança, no final dos anos setenta, eu acreditei por um momento no Superman. Sério! Eu achava que aquilo que vi de alguma forma na TV era uma informação do mundo para nós que víamos deslumbrados aquilo: havia um super-homem que voava, que tinha poderes incríveis e ele era um extraterrestre criado numa fazenda no interior dos Estados Unidos da América. E ele nos salvava dos criminosos e dos malvados do mundo.

A vida seguiu. Eu me tornei adulto. Fui entendendo como a vida funcionava desde que me mudei de São Paulo para Minas Gerais, aos dez anos de idade. Passei a ver o mundo de forma muito mais real e dura. Já de volta a São Paulo, com quase 18 anos, me politizei e vivi parte substancial da minha vida nos movimentos de lutas da classe trabalhadora, nos movimentos estudantis e no movimento sindical.

Nos anos dois mil, no século XXI, eu devia ter talvez uns quarenta anos de idade quando vi um vídeo do nosso fantástico Ariano Suassuna fazendo uma palestra e falando sobre a sutileza da ideologia e da dominação cultural dos impérios capitalistas, o inglês e o americano. Ele explicava ao público que o via sobre a importância de a gente defender a cultura local em relação às culturas imperialistas. Vale a pena vocês assistirem ao vídeo na internet, é fácil de achar.

Amig@s leitores, a ideologia é uma coisa tão forte, tão profunda, que a gente nem percebe a ideologia funcionando no processo de dominação cultural em nós mesmos. No vídeo de Suassuna, ele fala da dominação inglesa em relação aos indianos citando um filme de época e, de forma mais rápida, ele fala do Indiana Jones... sim, o arqueólogo norte-americano que quase todos nós conhecemos e "torcemos" por ele. É o poder da indústria cultural de Hollywood, nos faz torcer pelos ladrões e invasores.

É demais a explicação de Ariano Suassuna: o personagem é um ladrão, rouba artefatos culturais e históricos das mais diversas partes do mundo, e nós telespectadores torcemos por ele! (tanto os do Norte, beneficiários, como nós os invadidos há séculos). É incrível! E como não torcer por ele - e pelo que ele significa, o império norte-americano - da forma como o filme é feito? Tem arte naquilo, tem técnica! A gente se vê adulto, achando até que é politizado e, no fundo, estamos no cinema ou em casa torcendo pelo Indiana Jones... é foda!

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"SUPERMAN: ENTRE A FOICE E O MARTELO" ME FEZ PENSAR SOBRE IDEOLOGIA

Por que essa lembrança do super-homem quando vi a questão com os olhos de uma criança com menos de dez anos e depois, ao levar um "puxão de orelha" de Ariano Suassuna já estando com mais de quarenta anos?

Para lembrar do poder da ideologia! Ela está nos valores e na cultura cotidianamente. Ela está na pauta cotidiana das pessoas e na agenda diária em nossas vidas, queiramos ou não, façamos de conta que não percebemos isso ou tendo consciência disso.

Foi por essa abstração humana, essa técnica de fazer as pessoas se engajarem em ideias e valores, que chegamos até aqui na sociedade humana. É pela ideologia que o animal humano está destruindo aceleradamente as condições de vida neste único planeta do universo com possibilidades de vidas, como disse Carl Sagan em seu "Pálido Ponto Azul".

É isso, me alonguei. Mas é um registro, uma reflexão. Ideologia é muito muito mais que razão, que racionalidade; é contradição porque é algo do animal humano, classificado como racional, sapiens, mas completamente alheia à razão.

Em cinco décadas de vida, já alternei crenças antagônicas sobre os seres humanos. Ora achei que a história é feita por heróis e líderes que definiram épocas e mundos, ora achei que a história foi feita por indivíduos na multidão, de forma caótica e anárquica, sem organização e lideranças, com eventos nas esquinas que crescem e mudam tudo.

Ainda estou avaliando se é uma das coisas ou as duas ou nenhuma delas. 

William


Bibliografia:

Superman: entre a foice e o martelo. Roteiro por Mark Millar; arte por Dave Johnson; tradução por Jotapê Martins. - Barueri, SP: Panini Brasil, 2017.